A gestão da Carris durante a qual ocorreu fraude com desvio de R$ 1,7 milhão em pagamentos de indenizações por acidentes em nome de um morto também foi a que mais desembolsou valores para este item desde 2001: foram R$ 13,2 milhões pagos entre 2011 e 2016, contra R$ 5,7 milhões nos seis anos anteriores, por exemplo.
Isso representa um aumento de 129,6% no valor pago por danos pessoais e materiais resultantes de acidentes envolvendo a frota da companhia.
Em contrapartida, o número de colisões e atropelamentos envolvendo ônibus da frota geral de Porto Alegre caiu 13% se comparados os mesmos dois períodos, segundo a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC). Na Carris, houve aumento de sinistros, mas de 22%, bem inferior ao total desembolsado em indenizações.
A empresa pública pagou, em 18 anos, R$ 25,5 milhões em indenizações por acidentes. Atualmente, 342 processos desse tipo tramitam contra a companhia. A Carris ressalta, no entanto, que nem todas ocorrências geram pagamento de indenização.
Ao deflagrar, na semana passada, a Operação Antares, o Ministério Público chamou a atenção para o descontrole que havia em torno destes processos. As indenizações, segundo a investigação, teriam sido a forma com que o então funcionário Ivsem Gonçalves, filiado ao MDB, desviava valores da Carris — ele teria usado, para isso, a identidade de um menino morto em 1961.
Entre 2011 e 2016, a empresa teve a gestão mais longeva de sua história, sob presidência de Sérgio Luiz Duarte Zimmermann (MDB), mas os pagamentos irregulares identificados ocorreram entre agosto de 2015 e janeiro de 2017. Na época, Vidal Pedro Dias Abreu (filiado ao PDT) era diretor administrativo e financeiro e Pedro Osório Rosa Lima ocupava o cargo de procurador. Abreu, coronel da reserva da Brigada Militar, disse ao GaúchaZH que foi convidado para o cargo pelo então prefeito José Fortunati. E que, depois, ele próprio convidou Lima, tenente-coronel da reserva da BM, para ser procurador.
Segundo o MP, os processos de pagamento deveriam ser fiscalizados pelo diretor e pelo procurador. Neste cenário, Ivsem teria desviado R$ 1,7 milhão. O MP apurou que além de comprar carros e jóias, Ivsem, que trabalhou na Carris entre 2014 e 2017, repassou valores para terceiros e fez doações para campanhas do MDB. Alguns destes terceiros que receberam transferências também doaram a candidatos. O MP está rastreando o caminho do dinheiro. Todos serão chamados a prestar depoimento.
Após fraudes, Carris aumentou controles
A fraude nos pagamentos começou a ser detectada pela própria Carris, no começo da nova gestão. Ao desconfiar de irregularidades, a administração levou o caso ao MP. Ao investigar os pagamentos irregulares, a Promotoria Especializada Criminal apontou que os indicativos de falsidades constantes nos procedimentos eram suficientes para que uma simples fiscalização dos setores responsáveis da Carris detectassem as mentiras e estancassem a fraude. Mas isso não ocorreu e, em um período de um ano e meio, 18 beneficiários receberam pagamentos irregulares. E esse número ainda pode ser maior.
Para reforçar controles e evitar novas fraudes, a nova gestão da Carris adotou uma série de medidas. Agora, todos os processos têm cópia extraída do site do Tribunal de Justiça (TJ) e guias de depósitos anexadas ao expediente. No caso dos desvios, a Carris pagou indenizações em processos que simplesmente não existem. Os números das ações ou as sentenças eram inventados e ninguém fazia conferência.
Há também maior exigência da documentação suporte para aprovação e efetivação dos pagamentos: para qualquer solicitação de pagamento é realizado o registro no sistema de contas a pagar e, no momento da aprovação do repasse, toda a documentação e guias acompanham o processo para assinaturas de no mínimo dois diretores. Somente após isso é efetivado o pagamento.
Foram ainda eliminados pagamentos em espécie. Os por meio de cheques, que foi o método usado para os desvios, só ocorrem em casos excepcionais, quando não podem ser realizados de forma eletrônica. Outra medida é a que prevê cruzamento permanente de dados de pagamentos com informações da contabilidade e controles dos processos.
CONTRAPONTOS
O que diz Sérgio Luiz Duarte Zimmermann, ex-presidente da Carris:
"Eu não conheço esse dado (que mostra aumento do valor pago pago na gestão dele). Fizemos todos os esforços para reduzir acidentes, como reeducação de motoristas e prêmios para quem não tivesse ocorrências. Mas enfrentamos muitos problemas que facilitaram esse acréscimo, como obras em corredores".
O que diz o ex-diretor administrativo e financeiro da Carris Vidal Pedro Dias Abreu
"Eu me sinto tão vítima quanto a Carris e quanto a Administração Pública. Eu fui ludibriado. Eu assinava depois de passar por vários setores da casa e, depois de mim, ia para o presidente. O procurador assinava, avalizava e mandava para mim. Eu era a penúltima pessoa. E o presidente costumava dizer: eu só assino depois que o Vidal assinar. Muitas destas sentenças eu acompanhava (de valores mais altos), outras tantas eram corriqueiras."
O que diz Pedro Osório Rosa Lima, ex-procurador da Carris:
Zero Hora deixou recado na caixa postal do telefone celular e com o sócio dele, mas não obteve retorno.
O esquema de desvios, passo a passo
- Ao assumir a Carris, no começo de 2017, a nova gestão detectou irregularidades em processos de pagamentos de indenizações por acidentes de trânsito causados pela companhia. Ao analisar documentação, descobriu cerca de R$ 800 mil em pagamentos irregulares.
- As suspeitas foram levadas ao Ministério Público, que abriu investigação.
- Ao investigar um nome que se repetia como beneficiário, como advogado de beneficiário ou como pessoa autorizada a receber valores destinados a outros beneficiários, o MP descobriu que o nome de uma criança morta em 1961 estava sendo usado na fraude. A lápide do menino falecido está localizada no cemitério São Miguel e Almas.
- Ao cruzar dados, a Promotoria Especializada Criminal verificou que um ex-funcionário da Carris, Ivsem Gonçalves, havia feito, em 1996, carteira de identidade em Santa Catarina em nome da criança e, com o documento, desviava valores de indenizações.
- Foi apurado que o documento do morto foi usado também para abrir conta bancária, comprar carro e doar dinheiro para campanhas do PMDB.
- O MP apurou que entre 2015 e 2017 a Carris pagou R$ 1,7 milhão em indenizações por acidentes de trânsito com base em documentação falsificada.
- O dinheiro teria sido todo revertido para Ivsem e familiares.
- Para justificar pagamentos, Ivsem usou, como beneficiários, nomes de pessoas mortas, de pessoa possivelmente ligadas à fraude e também de outros que sequer sabiam que tiveram os nomes usados. Processos judiciais foram inventados assim como sentenças, falsificadas.
- Além de Ivsem, o MP investiga, nesta etapa da Operação Antares, dois filhos dele, que teriam se beneficiado de valores. Gestores da Carris da época em que ocorreram os desvios serão chamados a prestar esclarecimentos. Quem recebeu dinheiro ou doações a partir do nome da criança morta também será chamado a depor.