Um beneficiário que recebeu da Carris, entre 2015 e 2017, R$ 1,7 milhão em indenizações por acidentes de trânsito causados pela empresa está morto desde 1961. Na verdade, trata-se de Alexandre Marc Klejner, falecido aos três anos em decorrência de complicações de uma encefalite viral. Nenhuma relação, portanto, com acidentes.
Foi assim, usando o nome de uma criança morta, que o ex-funcionário da Carris Ivsem Gonçalves, 58 anos, desviou valores da empresa, conforme afirma o Ministério Público Estadual (MP). E não só isso. O nome do menino morto — cuja foto pode ser vista em uma lápide do Cemitério São Miguel e Almas, em Porto Alegre — também serviu para Ivsem emitir carteira de identidade, abrir conta em banco, fingir ser advogado, comprar carro e doar dinheiro para campanhas eleitorais do PMDB.
Na manhã desta quarta-feira (9), o MP deflagrou a Operação Antares para cumprir mandados de busca e apreensão na casa de Ivsem, no bairro Hípica, na Capital, na casa da filha dele e na empresa do filho, ambos também investigados. O dinheiro desviado teria sido usado para adquirir bens como joias e carros. Parte teria sido repassada a campanhas de candidatos do PMDB em 2016. Ivsem saiu da Carris no começo de 2017. No mês passado, ele foi nomeado assessor parlamentar na Câmara Municipal de Porto Alegre.
O esquema foi esmiuçado pela Promotoria Especializada Criminal a partir de denúncia feita no ano passado por uma integrante da nova gestão da Carris. O prefeito Nelson Marchezan tinha conhecimento da apuração. Ao fazer uma análise de rotina, por amostragem, em apenas cinco processos de pagamentos da companhia, a administração da Carris detectou desvios em torno de R$ 800 mil. São comuns condenações judiciais ou acordos de pagamento por conta de acidentes envolvendo veículos da frota. A fraude descoberta consistia em falsificar informações sobre ações e sentenças judiciais para justificar os pagamentos, que acabavam sendo direcionados ao fraudador — segundo o MP, Ivsem, que usava a identidade da criança.
Disfarce para buscar documentos
A documentação fictícia (ou com parte falsificada) tramitava dentro da companhia determinando que a Carris deveria desembolsar valores para indenizar supostas vítimas de acidentes — casos de colisões entre ônibus e veículos ou de atropelamentos. Uma segunda etapa do esquema era quanto aos beneficiários. Foram usados os nomes de pessoas mortas, de laranjas ligados à fraude ou, simplesmente, de supostos beneficiários inexistentes ou que desconheciam estar envolvidos nas falsificações. Em alguns casos, foram apresentadas sentenças verdadeiras, referentes a acidentes que realmente ocorreram, mas os nomes dos beneficiários foram trocados a fim de permitir o desvio do pagamento.
A investigação começou ano passado, em meio a turbulências na empresa, época de troca de gestores e de notícias sobre ameaças no ambiente de trabalho. Nos primeiros seis meses da nova gestão, em 2017, o diretor-presidente e uma procuradora da Carris, nomeados pela gestão Marchezan, pediram demissão. O clima era tão tenso que, para pegar documentos contábeis para a apuração, o MP e a administração da companhia criaram um disfarce. A versão oficial foi de que 291 caixas de material estavam sendo levadas para que os documentos fossem digitalizados. O MP temia que, se o teor da investigação fosse conhecido, provas pudessem desaparecer.
O MP optou por analisar pagamentos feitos entre 2012 e 2017, mas o foco maior foi a partir de 2015. Até o momento, foram identificados 18 beneficiários que teriam recebido valores irregularmente entre agosto de 2015 e janeiro de 2017. Na análise da documentação, um nome, o do menino morto, chamou a atenção, já que aparecia de três formas na contabilidade de pagamentos feitos pela Carris: como acidentado e beneficiário direto de indenização, como advogado de supostos beneficiários e como destinatário final de pagamentos por meio de endossos em cheques emitidos em nome de outros beneficiários.
O esquema, passo a passo
- Ao assumir a Carris, no começo de 2017, a nova gestão detectou irregularidades em processos de pagamentos de indenizações por acidentes de trânsito causados pela companhia. Ao analisar documentação, descobriu cerca de R$ 800 mil em pagamentos irregulares.
- As suspeitas foram levadas ao Ministério Público, que abriu investigação.
- Ao investigar um nome que se repetia como beneficiário, como advogado de beneficiário ou como pessoa autorizada a receber valores destinados a outros beneficiários, o MP descobriu que o nome de uma criança morta em 1961 estava sendo usado na fraude. A lápide do menino falecido está localizada no cemitério São Miguel e Almas.
- Ao cruzar dados, a Promotoria Especializada Criminal verificou que um ex-funcionário da Carris, Ivsem Gonçalves, havia feito, em 1996, carteira de identidade em Santa Catarina em nome da criança e, com o documento, desviava valores de indenizações.
- Foi apurado que o documento do morto foi usado também para abrir conta bancária, comprar carro e doar dinheiro para campanhas do PMDB.
- O MP apurou que entre 2015 e 2017 a Carris pagou R$ 1,7 milhão em indenizações por acidentes de trânsito com base em documentação falsificada.
- O dinheiro teria sido todo revertido para Ivsem e familiares.
- Para justificar pagamentos, Ivsem usou, como beneficiários, nomes de pessoas mortas, de pessoa possivelmente ligadas à fraude e também de outros que sequer sabiam que tiveram os nomes usados. Processos judiciais foram inventados assim como sentenças, falsificadas.
- Além de Ivsem, o MP investiga, nesta etapa da Operação Antares, dois filhos dele, que teriam se beneficiado de valores. Gestores da Carris da época em que ocorreram os desvios serão chamados a prestar esclarecimentos. Quem recebeu dinheiro ou doações a partir do nome da criança morta também será chamado a depor.
Por que "Operação Antares"?
O nome da operação foi inspirado no romance Incidente em Antares, de Érico Verissimo. A obra retrata a história de uma cidade imaginária do interior do Rio Grande do Sul onde duas famílias disputam o poder. Na história, por conta de uma greve geral, sete mortos ficam insepultos e vagam pela cidade causando pânico. Depois de visitarem parentes e descobrirem novos segredos, eles se reúnem e, observados pela população, fazem acusações e denúncias envolvendo os moradores. Um deles, o advogado Cícero Branco, revela provas de enriquecimento ilícito de poderosos locais, pessoas para as quais ele havia trabalhado.