A facilidade com que a fraude na Carris Porto-Alegrense foi detectada pela nova gestão indica, segundo o Ministério Público Estadual (MP), que mais pessoas, além de Ivsem Gonçalves, podem ter participado do esquema. Conforme o Ministério Público, ele recebeu — em nome de uma criança morta em 1961, aos três anos — R$ 1,7 milhão em indenizações por acidentes de trânsito causados pela empresa de Porto Alegre.
A sistemática para pagamentos de indenizações devidas por conta de acidentes de trânsito é embasada em documentos que tramitam em vários setores. Nos casos investigados, há falsificações grosseiras, como a do brasão do Poder Judiciário gaúcho que chegou a ser editado para dar aparência de oficial a sentenças de processos inexistentes.
Os pagamentos são ser precedidos por um kit de documentos, onde constam informações sobre o caso e do processo judicial. Primeiro, há um documento da própria Carris, chamado de Comprovante de Solicitação de Pagamento. É uma espécie de ficha em que constam dados como o nome do favorecido, nome do servidor envolvido no acidente, número do processo judicial que embasou a dívida da empresa e indicação sobre como fazer o pagamento, por exemplo: depositar na conta do autor (da ação) ou do advogado do autor. Também são juntados no kit cópia da sentença e de outros documentos, como cálculo do valor a ser pago.
Foi analisando esses documentos que a Carris e o MP se depararam com as falsificações. No caso em que o brasão do Judiciário foi alterado, havia outros detalhes: o acidente que motivou a indenização de R$ 189.193,82 teria ocorrido em 2008, só que a pessoa indicada como beneficiária do pagamento havia morrido 12 anos antes da data do acidente, conforme a investigação apurou. Como o pagamento era dividido em parcelas, para cada etapa foi feito um tipo de adulteração.
Em uma das parcelas, o número da ação era de um processo que não existe. Em outra parcela, se referia a um processo verdadeiro, mas de outro beneficiário, que já havia recebido a indenização, o que resultou, portanto, em pagamento em duplicidade. O que foi comum em todas as etapas do pagamento desse beneficiário, por exemplo, é que os cheques foram todos endossados em nome de Alexandre Marc Klejner, a criança morta. Desta forma, a pessoa que usava a identidade falsa podia receber os pagamentos diretamente. Para o MP, quem sacou os valores foi Ivsem, usando a identidade do falecido. Também houve um caso em que o nome da criança morta apareceu como sendo beneficiário direto de indenização, como se tivesse sido vítima de acidente causado pela Carris. O processo judicial que condenou a Carris a pagar a ele R$ 360 mil nunca existiu no Poder Judiciário, o número de identificação da ação era inventado.
Na avaliação do MP, os indicativos de falsidades eram suficientes para que uma simples fiscalização dos setores responsáveis da Carris detectassem as mentiras e estancassem a fraude. Mas isso não ocorreu e, em um período de um ano e meio, 18 beneficiários receberam pagamentos irregulares. E esse número pode ser maior. O promotor Flávio Duarte, que conduziu a investigação, não acredita que Ivsem tenha agido sozinho.
Outras falsificações
- Sentenças falsas ou relacionadas a outros acidentes.
- Cálculos falsos simulando terem sido feitos por um programa do Tribunal de Justiça. Situação em que a Carris era orientada por seu escritório de advocacia - por meio de um e-mail falsificado - a depositar a indenização na conta do advogado do beneficiário, identificado, claro, com o nome da criança morta. Para isso, Ivsem usou, segundo o MP, o nome da criança morta e também o número de inscrição da OAB de um advogado já falecido.
- Casos de acidentes verdadeiros usados para receber novamente os valores, mas em nome de outro acidentado.
- Sentenças constando um número de processo no cabeçalho e outro no rodapé.
- Situações em que a sentença tinha data anterior ao dia em que teria ocorrido o acidente e também à data de quando teria sido aberto a ação judicial.
- Pagamentos sem nenhuma documentação para justificar, nem mesmo o kit com informações básicas. Foi a situação, por exemplo, de uma beneficiária para quem foi autorizado o pagamento, em 2017, de R$ 89.568,04. Só que ela estava morta desde 2012. Mais um detalhe: tratava-se da sogra de Ivsem.
O esquema, passo a passo
- Ao assumir a Carris, no começo de 2017, a nova gestão detectou irregularidades em processos de pagamentos de indenizações por acidentes de trânsito causados pela companhia. Ao analisar documentação, descobriu cerca de R$ 800 mil em pagamentos irregulares.
- As suspeitas foram levadas ao Ministério Público, que abriu investigação.
- Ao investigar um nome que se repetia como beneficiário, como advogado de beneficiário ou como pessoa autorizada a receber valores destinados a outros beneficiários, o MP descobriu que o nome de uma criança morta em 1961 estava sendo usado na fraude. A lápide do menino falecido está localizada no Cemitério São Miguel e Almas.
- Ao cruzar dados, a Promotoria Especializada Criminal verificou que um ex-servidor da Carris, Ivsem Gonçalves, havia feito, em 1996, carteira de identidade em Santa Catarina em nome da criança e, com o documento, desviava valores de indenizações.
- Foi apurado que o documento do morto foi usado também para abrir conta bancária, comprar carro e doar dinheiro para campanhas do PMDB.
- O MP apurou que entre 2015 e 2017 a Carris pagou R$ 1,7 milhão em indenizações por acidentes de trânsito com base em documentação falsificada.
- O dinheiro teria sido todo revertido para Ivsem e familiares.
- Para justificar pagamentos, Ivsem usou, como beneficiários, nomes de pessoas mortas, de pessoa possivelmente ligadas à fraude e também de outros que sequer sabiam que tiveram os nomes usados. Processos judiciais foram inventados assim como sentenças, falsificadas.
- Além de Ivsem, o MP investiga, nesta etapa da Operação Antares, dois filhos dele, que teriam se beneficiado de valores. Gestores da Carris da época em que ocorreram os desvios serão chamados a prestar esclarecimentos. Quem recebeu dinheiro ou doações a partir do nome da criança morta também será chamado a depor.