Identificar e localizar o suspeito de receber da Carris, de formas variadas, indenizações de acidentes de trânsito que somaram pelo menos R$ 1,7 milhão não foi fácil para o Ministério Público (MP). Alexandre Marc Klejner não existia nos cadastros oficiais do Estado — nem pelo nome, nem pelo CPF que constava nos pagamentos feitos pela companhia. Foi a partir de buscas na internet que surgiu a primeira, e surpreendente, informação envolvendo o suposto beneficiário de indenizações: Alexandre estava sepultado no Cemitério São Miguel e Almas, no bairro Azenha, em Porto Alegre. O cemitério confirmou ao MP que os restos mortais foram depositados no local em 1964, três anos após seu falecimento — era uma criança.
Depois, em pesquisa no cadastro do Departamento Estadual de Trânsito (Detran), o MP descobriu que um carro havia sido comprado com aquele nome em 2015. Na transação, foi usada uma carteira de identidade (CI) confeccionada em 1996 em Santa Catarina e o mesmo CPF que constava em documentos de indenização da Carris, além de um endereço em Porto Alegre. Ao consultar o sistema de identificação catarinense, o MP verificou que a pessoa que fez o documento naquele Estado usou a mesma data de nascimento e o nome da mãe do morto. Ou seja: alguém havia assumido a identidade da criança falecida em 1961.
No endereço declarado na compra do carro, havia uma instalação de luz em nome de Ivsem Gonçalves, 58 anos, ex-funcionário da Carris e hoje lotado na Câmara de Vereadores. O MP acessou a ficha de identificação de Ivsem no Rio Grande do Sul e comparou a foto com a imagem usada em Santa Catarina para fazer a CI em nome da criança. Era a mesma pessoa — fato também confirmado pela análise das impressões digitais coletadas nos dois registros. Por fim, veio a descoberta de que Ivsem foi funcionário da Carris entre 2014 e 2017. Mais: a última função dele na companhia, a partir de 2015, foi a de coordenador da Unidade de Finanças, o que teria facilitado a concretização dos desvios, segundo o MP.
Para o promotor Flávio Duarte, que conduziu a apuração, Ivsem desviou da Carris, usando o nome da criança, cerca de R$ 1,7 milhão. Os cheques investigados emitidos pela companhia para pagar supostas indenizações de acidentes de trânsito foram depositados em uma conta aberta em nome do morto ou foram sacados por quem usava a identidade da criança. Ainda conforme a investigação, mesmo depois de sair da Carris, Ivsem seguiu movimentando uma conta bancária em nome da criança falecida.
A partir da operação desta quarta-feira nas casas de Ivsem e da filha e na empresa do filho, que visa a apreender joias, valores, computadores, telefones celulares e documentos, a investigação prossegue, já que há mais a ser esclarecido. O MP quer saber: em que outros negócios Ivsem usou o nome da criança, já que emitiu a carteira de identidade em 1996 e até 2017 seguia movimentando conta bancária em nome do falecido? quem são os outros envolvidos no esquema que permitiu os desvios na Carris, já que pagamentos deviam ser fiscalizados e aprovados por gestores da companhia? se há outros pagamentos irregulares feitos pela companhia e se alguém, entre os beneficiários de valores, também tinha conhecimento da fraude?. Por fim, o mistério a ser desfeito é o que levou Ivsem a se apropriar da identidade justamente daquela criança, morta na década de 1960. O MP não descarta que ele possa conhecer a família do menino que teve o nome usado.
*GaúchaZH passou a divulgar o nome da criança depois de obter autorização da família.
O esquema, passo a passo
- Ao assumir a Carris, no começo de 2017, a nova gestão detectou irregularidades em processos de pagamentos de indenizações por acidentes de trânsito causados pela companhia. Ao analisar documentação, descobriu cerca de R$ 800 mil em pagamentos irregulares.
- As suspeitas foram levadas ao Ministério Público, que abriu investigação.
- Ao investigar um nome que se repetia como beneficiário, como advogado de beneficiário ou como pessoa autorizada a receber valores destinados a outros beneficiários, o MP descobriu que o nome de uma criança morta em 1961 estava sendo usado na fraude. A lápide do menino falecido está localizada no cemitério São Miguel e Almas.
- Ao cruzar dados, a Promotoria Especializada Criminal verificou que um ex-funcionário da Carris, Ivsem Gonçalves, havia feito, em 1996, carteira de identidade em Santa Catarina em nome da criança e, com o documento, desviava valores de indenizações.
- Foi apurado que o documento do morto foi usado também para abrir conta bancária, comprar carro e doar dinheiro para campanhas do PMDB.
- O MP apurou que entre 2015 e 2017 a Carris pagou R$ 1,7 milhão em indenizações por acidentes de trânsito com base em documentação falsificada.
- O dinheiro teria sido todo revertido para Ivsem e familiares.
- Para justificar pagamentos, Ivsem usou, como beneficiários, nomes de pessoas mortas, de pessoa possivelmente ligadas à fraude e também de outros que sequer sabiam que tiveram os nomes usados. Processos judiciais foram inventados assim como sentenças, falsificadas.
- Além de Ivsem, o MP investiga, nesta etapa da Operação Antares, dois filhos dele, que teriam se beneficiado de valores. Gestores da Carris da época em que ocorreram os desvios serão chamados a prestar esclarecimentos. Quem recebeu dinheiro ou doações a partir do nome da criança morta também será chamado a depor.