Fundamental para equilibrar a economia e o ambiente das cidades, o transporte coletivo vive uma crise em Porto Alegre — 10,7% dos passageiros pagantes deixaram o sistema de ônibus em 2017. Se as melhorias necessárias são muitas, a saída para reconquistar usuários passa por um verbo ainda pouco usado pelo poder público: priorizar. Para especialistas, só será possível melhorar o transporte público — e, consequentemente, a mobilidade urbana da cidade — se o assunto assumir caráter de urgência nas políticas públicas.
— A cidade contemporânea é oxigenada pelo sistema de transporte. Temos de ter clareza de que pagamos caro por ele e, portanto, ele tem de servir à população de forma adequada. Não é só uma atividade comercial: é uma política pública. Uma cidade sem o sistema de ônibus entraria em colapso — destaca o professor da Faculdade de Arquitetura Mackenzie Valter Caldana.
Veja a seguir algumas alternativas para tornar o transporte mais eficiente.
Integração entre meios de transporte
O sistema de ônibus é essencial, mas não é autossuficiente. Para especialistas, uma das formas de torná-lo mais eficiente é pensar no seu funcionamento conjugado com outros modais, como o metrô, a bicicleta ou até mesmo o táxi ou apps de transporte.
— O brasileiro tem uma cultura de pensar por modal, pensar o deslocamento com um tipo de meio só: ou vai de carro, ou vai a pé, ou vai de ônibus. Mas o sistema precisa estar a associado a outros modais, a um sistema tarifário de bilhete único. E a intermodalidade não precisa ocorrer só entre sistemas públicos, pode ocorrer entre o público e o privado — defende o professor da Faculdade de Arquitetura Mackenzie Valter Caldana.
o sistema precisa estar a associado a outros modais, a um sistema tarifário de bilhete único. E a intermodalidade não precisa ocorrer só entre sistemas públicos.
VALTER CALDANA
Professor da Faculdade de Arquitetura Mackenzie
Subverter uma mentalidade voltada para o deslocamento por meio de um modal único por viagem, segundo o pesquisador, é tarefa de quem pensa as políticas públicas de mobilidade urbana. Integrar o sistema de ônibus com a malha cicloviária, por exemplo, exigiria a implantação de mais ciclovias, além da estruturação dos terminais com bicicletários ou com um sistema de aluguel de bicicletas que o servisse.
Em Porto Alegre, uma possível conjugação com o metrô, como ocorre em São Paulo, é carta fora do baralho: o projeto de construir linhas na Capital foi abandonado depois de quase três décadas de discussão. O BRT, visto com bons olhos por estudiosos do sistema de transporte, teve sua execução adiada.
Pouco praticada no Brasil, a implantação de redes de transportes modernas, integradas, multimodais, racionais e de alto desempenho é vista pela CNT como uma das condições para captação e recuperação de demanda de usuários do ônibus.
Discutir isenções
Elaborados para ajudar quem mais precisa, mas financiados por todos os usuários, as gratuidades e descontos na passagem entraram na mira do Executivo neste ano: o prefeito Nelson Marchezan enviou à Câmara Municipal um pacote de projetos que propõe alterações drásticas no modelo atual, reduzindo-o. Também elaborou um decreto que põe fim à segunda viagem gratuita na Capital.
Os projetos, que motivaram protestos de insatisfeitos por, entre outras razões, não terem sido discutidas com os usuários, são, de fato, polêmicos. Mas a discussão sobre quem subsidia as gratuidades, que hoje representam mais de um terço das viagens realizadas em Porto Alegre, segundo a prefeitura, faz-se necessária.
É preciso ter isenções, mas deveria haver mais critério sobre quem tem direito a elas, e sobre quem banca isso. O trabalhador não pode bancar sozinho.
NÍVEA OPPERMANN
Professora da Unisinos
Em um sistema de tarifa única, como o da Capital, o maior problema de as gratuidades entrarem no "racha" geral da tarifa é que elas encarecem o sistema para os usuários que não são beneficiados por ela. E o alto custo da passagem é dos fatores que mais repele usuários — três em cada quatro pessoas que disseram ter abandonado o sistema de ônibus, voltariam a usar somente se a passagem fosse reduzida, segundo o estudo da CNT.
— É preciso ter isenções, mas deveria haver mais critério sobre quem tem direito a elas, e sobre quem banca isso. Funcionários do Estado, por exemplo, têm viagens pagas por todos os cidadãos que pagam impostos. Alguém mais precisa ajudar a pagar a conta. O trabalhador não pode bancar sozinho — destaca Nívea Oppermann, mestre em engenharia de transportes e professora da Unisinos.
Para a pesquisadora, discutir alternativas à tarifa única também é uma pauta possível. Embora uma passagem com valor igual para todos beneficie quem mora mais longe — que na maior parte dos casos são, de fato, pessoas de menor poder aquisitivo —, ele acaba por tornar as viagens curtas caras demais, espantando uma parcela dos usuários. Conforme a professora, uma possibilidade é pensar na progressão da tarifa por distância, o que ocorre em cidades como Londres e Paris.
Cidades mais inteligentes
Um dos maiores vilões da mobilidade urbana foi o crescimento desordenado das metrópoles brasileiras. Isso porque, via de regra, a periferia foi ocupada tardiamente, pela parcela mais pobre da população. Como resultado, grande parte das pessoas moram longe do trabalho, precisando realizar deslocamentos muito grandes no dia a dia.
Precisamos ter cidades com desenhos inteligentes: mais completas, bairros com acesso a comércio, serviços e equipamentos que não demandem grandes deslocamentos.
NÍVEA OPPERMANN
Professora da Unisinos
Em Porto Alegre, não foi diferente: atualmente, quase 90 mil pessoas moram no bairro Rubem Berta, no norte da Capital, enquanto mais de 50 mil vivem na Restinga, no extremo sul. Em horários de maior movimento, os deslocamentos dessas áreas da cidade para a Região Central, e vice-versa, ultrapassam com facilidade uma hora. É quase o dobro do tempo médio de deslocamento em outras cidades da mesma proporção que a capital gaúcha.
— É preciso mudar a maneira de conceber os bairros. Deixá-los mais densos, com usos mistos. Precisamos ter cidades com desenhos inteligentes: mais completas, bairros com acesso a comércio, serviços e equipamentos que não demandem grandes deslocamentos — analisa Nívea Oppermann.
Novos modelos de financiamento
Não é apenas em Porto Alegre que a passagem de ônibus é considerada cara pelos usuários. Estudo da CNT mostra que nas grandes cidades de todo o Brasil mais de um terço dos usuários acha que paga muito pelo transporte coletivo.
A percepção é real: na maior parte dos casos, quem paga a conta do sistema de ônibus é quase só o usuário. Não há outras fontes que financiem esse tipo de transporte, o que faz com que o custo da manutenção do sistema, que deveria ser acessível a todos, tenha de ser bancado por uma parte dos usuários, tornando-o caro.
Em Porto Alegre, não há subsídio público direto para o transporte público, mas as empresas de ônibus são isentas do Imposto Sobre Serviço (ISS) cobrado pela prefeitura — cerca de R$ 18 milhões. O valor, porém, não é suficiente para conter o aumento da tarifa diante do alto número de isenções e da perda de passageiros.
Em várias cidades onde a tarifa não cobre os custos do transporte existem outras fontes de subsídio: alguma usam taxas municipais, outras subsídio cruzado.
GUSTAVO SIMIANOVSCHI
Diretor-executivo da ATP
— É preciso pensar em formas de financiar o sistema. Vai ter um custo maior para os governos, mas temos que calcular o custo do tempo perdido em um congestionamento. Não faz sentido o governo estimular o individual, através de isenções, e não fazer isso com o coletivo. Tem de ter um conjunto de medidas — sinaliza a professora Nívea Oppermann.
Para a prefeitura da Capital, o aporte financeiro — como ocorre em São Paulo, onde o poder público investe cerca de R$ 1 bilhão por ano no sistema — está descartado. A Associação das Transportadoras de Passageiros (ATP) defende que há outras possibilidades, como o financiamento cruzado, que pode se dar através da aplicação de verbas de multas de trânsito, estacionamento ou pedágio urbano no sistema de ônibus.
— Em várias cidades onde a tarifa não cobre os custos do transporte existem outras fontes de subsídio: alguma usam taxas municipais, outras subsídio cruzado. Sem outras formas de financiamento, não se consegue dar qualidade — disse o diretor-executivo Gustavo Simianovschi.
Na Europa
Onde os impostos subsidiam o transporte público...
Praga: 74%
Turim: 68%
Varsóvia: 60%
Budapeste: 56%
Madrid: 56%
E onde o passageiro custeia o sistema
Cádiz: 72%
Hamburgo: 68%
Stuttgart: 59%
Londres: 53%
Paris: 40%
Fugir do convencional
Há tempos o ônibus deixou de ser a opção óbvia de quem precisa se deslocar pela cidade sem gastar muito. O advento dos aplicativos de transporte, a facilidade em adquirir um veículo próprio ou mesmo a tomada de consciência de parte da população sobre meios de transporte não poluentes, como a bicicleta, estabelece cada vez mais concorrentes ao sistema de transporte coletivo.
Para especialistas, a clara dificuldade das empresas de ônibus em fazerem frente às novas opções não tem a ver só com dinheiro. Na visão do professor Pastor Willy Gonzales Taco, o apego a modos tradicionais de operação tem prejudicado o sistema de transporte coletivo.
— Trabalhar só com o tradicional é um problema. Os usuários não querem depender de uma linha definida, um horário definido. Precisam de itinerários e horários adaptados a sua necessidade. Temos de pensar soluções paralelas — diz o pesquisador.
Os usuários não querem depender de uma linha definida, um horário definido. Precisam de itinerários e horários adaptados a sua necessidade. Temos de pensar soluções paralelas.
PASTOR WILLY GONZALES TACO
Pesquisador da UNB
Coordenador do Centro Interdisciplinar de Estudos em Transporte da UNB (CEFTRU), Taco trabalha, em Brasília, com um projeto piloto para que empresas de ônibus utilizem alguns veículos para atuar de forma semelhante a um sistema de transporte executivo, pegando usuários no ponto que desejam e deixando no destino escolhido, em faixas de horário flexíveis. A ideia é criar um serviço que seja mais barato que os aplicativos de transporte, reconquistando uma parcela dos usuários que migrou do ônibus para esse tipo de plataforma.
Políticas inovadoras voltadas a usuários de faixas de renda mais abrangentes também são viáveis. Diminuir o valor da tarifa aos finais de semana e feriados, por exemplo, pode ser alternativa para estimular o uso nesses dias, quando o movimento cai significativamente. Criar linhas específicas voltadas para o lazer, como linhas que percorram museus aos sábados e domingos, podem atrair, inclusive, um público diferente daquele que utiliza o ônibus durante a semana.
Estimular transportes que não poluem
Há quem acredite que o ônibus é a solução para os problemas de mobilidade, mas a realidade é mais complexa, e a resposta tende a desagradar boa parte da população: é preciso deixar o carro na garagem. Atualmente, mais de 70% de todos os deslocamentos realizados nas grandes cidades são feitos por transporte motorizado. O resultado são vias congestionadas, um ar mais poluído e o poder público correndo atrás para tentar amenizar uma situação já caótica.
Conforme especialistas em transporte e mobilidade, é preciso inverter a lógica. Voltar a cidade para pedestres e ciclistas, permitindo que eles tenham acesso fácil ao transporte público quando necessário, é o jeito mais saudável de melhorar a mobilidade na cidade.
Enquanto houver facilidade pro particular, as pessoas vão querer utilizá-lo. Hoje, ficam rodando horas atrás de uma vaga para não pagar estacionamento. Se tivessem que pagar, fariam outra escolha.
NÍVEA OPPERMANN
Professora da Unisinos
— Tem medidas simples que podem ser feitas: melhorar os passeios, fazer uma rede cicloviária, restringir estacionamentos. São coisas que não exigem grandes investimentos. Enquanto houver facilidade pro particular, as pessoas vão querer utilizá-lo. Hoje, ficam rodando horas atrás de uma vaga para não pagar estacionamento. Se tivessem que pagar, fariam outra escolha — avalia Nívea Oppermann.
Em uma cidade sem grandes elevações, como Porto Alegre, as ciclovias podem ter diversas funções: além de permitir aos ciclistas deslocarem-se de um bairro a outro, podem servir de ligação entre zonas de moradia e terminais de ônibus. Apesar disso, seu potencial ainda é pouco explorado: quase uma década depois da elaboração do plano cicloviário, a Capital se encaminha para os primeiros 50 quilômetros de malha cicloviária — pouco mais de um décimo do previsto no plano inicial.
Corredores e faixas exclusivas
Ficar preso no trânsito é ruim, mas ficar preso no trânsito dentro de ônibus lotado é um verdadeiro teste de paciência a quem acabou de encerrar sua jornada de trabalho. Tornar o sistema de transporte coletivo mais ágil é considerado fundamental para que as pessoas sintam-se impelidas a optar pelo ônibus em detrimento de outros modais.
Segundo a CNT, a implantação de sistemas BRT, corredores e faixas exclusivas dão formas de priorizar a circulação dos ônibus nas vias e, consequentemente, aumentar sua velocidade operacional, reduzir os tempos de viagens e otimizar a utilização da frota. A ideia concorda com o que pensa a ATP: na visão do diretor-executivo Gustavo Simianovschi, corredores e faixas exclusivas são fundamentais para melhorar a circulação dos coletivos que, hoje presos no trânsito, muitas vezes não conseguem cumprir a tabela horária.
Atualmente, a Capital conta com pouco mais de 7 quilômetros de vias destinados à circulação exclusiva de ônibus. A Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) pretende implantar faixas exclusivas para ônibus em horários de pico na Avenida Juca Batista, na zona sul de Porto Alegre, e na Rua Siqueira Campos, no Centro Histórico. O cronograma das alterações ainda está em elaboração.
Prevista para o fim do ano passado, uma faixa exclusiva na Avenida Ipiranga virou meta sem previsão de execução. A EPTC diz que a via ainda poderá receber uma faixa exclusiva para ônibus no futuro, mas destaca que a grande quantidade de árvores na calçada que cresceram em direção à via e as variações de largura exigem uma avaliação detalhada de cada trecho.
GaúchaZH ouviu passageiros, especialistas e consultou dados do setor e mostra os motivos da crise, sua influência na vida da Capital e quais são as possíveis soluções para evitar seu aprofundamento. Clique e entenda:
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