Quem pode escolher, não anda mais de ônibus. Essa é a realidade que tem se expressado nos números do transporte público de Porto Alegre. No último ano, 10,7% dos passageiros pagantes deixaram de utilizar o sistema de ônibus da Capital, agravando uma debandada contínua iniciada em 2013.
Com a perda de um em cada 10 usuários em apenas um ano, as empresas de ônibus dizem ter acumulado um déficit de R$ 126 milhões. Mas o assunto não diz respeito só a um setor empresarial. O declínio de passageiros alimenta uma reação em cadeia perigosa. Quanto menos pessoas pegam ônibus, mais cara fica a passagem e menores são os investimentos no sistema de ônibus. Um serviço pior e mais caro afugenta usuários e alimenta o círculo vicioso.
— Com certeza, o alto custo é um fator que tira as pessoas do ônibus. No momento em que entram os apps de transporte, elas se juntam e vão pagar o preço de uma passagem, ou menos. A gente defende que a passagem tem que ser mais barata e o ônibus precisa rodar, não ficar parado. Hoje, pelas isenções e pelo trânsito, o sistema fica caro para quem paga e insuficiente para quem opera. Os recursos são poucos para manter a qualidade — explica o diretor executivo da Associação dos Transportadores de Passageiros (ATP), que reúne as concessionárias da Capital, Gustavo Simionovschi.
Desde o começo do ano, a crise motiva discussões. A prefeitura enviou à Câmara projetos para extinguir gratuidades, que hoje representam 35% de todas as viagens realizadas na Capital, e decretou o fim da segunda passagem gratuita. Na Câmara, não houve consenso para votar as propostas; a Justiça garantiu a manutenção do benefício. A justificativa é reduzir o custo para os passageiros pagantes — sem nenhuma medida para frear o aumento, a passagem de ônibus em Porto Alegre, segunda mais cara entre as capitais brasileiras, pode ir a R$ 4,60 no próximo ano.
— É um somatório: temos a crise econômica, a questão da qualidade e a questão da segurança. E alternativas: desconto em aplicativos, no táxi, ciclovias melhores, Bikepoa a R$ 10 por mês. Tem alternativas. Além disso, ainda existe a facilidade na compra de carro e motos. Se taxa o transporte coletivo e se financia compra de moto e carros — diz o diretor-presidente da EPTC, Marcelo Soletti.
Razões muito além do preço da passagem
Os fatores enumerados por Soletti em Porto Alegre ecoam um problema nacional. Pesquisa recente da Confederação Nacional do Transporte (CNT) com mais de 3 mil pessoas em cidades com mais de 100 mil habitantes mostrou que há uma tendência geral de abandono do ônibus no Brasil. E não é só por conta da tarifa: passageiros também apontam o mau serviço oferecido — com atrasos e demora nas rotas — e o desconforto como as maiores razões para buscarem outro jeito de se mover.
Em algumas cidades, a queda é mais intensa pelos serviços ruins.
PASTOR WILLY GONZALES TACO
Especialista da UNB
— O operador, de forma geral, é muito tradicional: cumpre características operacionais, mas não procura operar com mais qualidade. Investir em ar condicionado, wi-fi, maior proximidade com os locais de moradia, mais informação ao usuário — diz o professor Pastor Willy Gonzales Taco, coordenador do Centro Interdisciplinar de Estudos em Transporte da UNB (CEFTRU).
Apesar disso, os coletivos ainda são o principal meio de transporte público utilizado no Brasil. Ou seja, encontrar uma saída para o sistema é decisivo para o futuro da mobilidade urbana no país. Por isso, especialistas alertam: o assunto deveria ser priorizado pelos governos. Gonzales Taco diz que deslocar pessoas é um fator importante para a capacidade produtiva de uma cidade. A quebra do sistema de ônibus, além de aumentar a instabilidade social, também traria consequências do ponto de vista econômico:
— Teria um efeito significativo. Muitas pessoas simplesmente não teriam como se deslocar até os seus postos de trabalho. Também ocorreria um fortalecimento do transporte informal, pirata, que é favorecido por uma legislação obscura. As prefeituras prendem uma van hoje e amanhã ela já está operando.
Priorizar carros aumenta o caos urbano
Um cenário urbano com o sistema de ônibus em colapso teria, ainda, implicações ambientais e de saúde pública, alerta a mestre em engenharia de transportes e professora da Unisinos Nívea Oppermann. Isso porque a escassez de transporte coletivo significa um aumento dos modais individuais _ carros e motocicletas, que, junto com os coletivos, já são os maiores responsáveis pelas emissões de poluentes na cidade. Resultado: mais congestionamentos e mais poluição nos anos à frente.
Se nada for feito, o serviço vai piorar cada vez mais
NÍVEA OPPERMANN
Professora da Unisinos
— A crise é decorrente de uma falta de priorização do transporte coletivo. Não é só fazer a manutenção: tem de qualificar o sistema. Se nada for feito, o serviço vai piorar cada vez mais, e a população perder muito mais tempo no transporte, porque a maior parte dela não vai poder deixar de andar de ônibus — alerta Nívea.
— As pessoas saírem do sistema é um problema, porque existe um perigo, a médio prazo, de o sistema começar a sangrar. Isso está acontecendo no Brasil todo. Alguns vão exagerar para proteger seu próprio negócio, mas é um problema real. Estamos preocupados com a continuidade do sistema de ônibus — complementa Eduardo Alcântara Vasconcellos, assessor da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP).
GaúchaZH ouviu passageiros, especialistas e consultou dados do setor e mostra os motivos da crise, sua influência na vida da Capital e quais são as possíveis soluções para evitar seu aprofundamento. Clique e entenda:
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