Dois estudos recentes apontam que o número de militares em cargos estratégicos na administração federal dobrou no governo Jair Bolsonaro.
Um deles, realizado pelo Tribunal de Contas da União, mostra que a quantidade de pessoas oriundas das Forças Armadas (da ativa ou da reserva) em cargos civis da administração federal saltou de 2,9 mil, em setembro de 2016 (governo Dilma Rousseff) para 6,1 mil, em setembro de 2020 (gestão Jair Bolsonaro). Eles representam hoje 14% dos cargos comissionados, segundo esse estudo. É necessário fazer uma ressalva: 1,9 mil desses militares chamados pelo governo atual fazem parte da força-tarefa que tenta normalizar o atendimento ao público no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
O outro levantamento foi solicitado ao governo federal por parlamentares, por meio de um Requerimento de Informação. As respostas permitiram constatar que o percentual de militares em postos-chave (de chefia, coordenação e direção) em repartições governamentais mais do que dobrou no governo Bolsonaro. Eles eram 102 no governo Dilma Rousseff, passaram a 123 na gestão Michel Temer e chegam a 343 CCs com chefia no governo Bolsonaro. O estudo foi requisitado por pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e pela deputada Tábata Amaral (PDT-SP).
Mais do que numerosos, são cargos relevantes. Além do presidente e do seu vice, o general Hamilton Mourão, são oriundos dos quartéis 10 dos 21 ministros. No segundo escalão, a concentração de veteranos das Forças Armadas é estelar. No Ministério da Saúde, por exemplo, o ministro é general e as principais coordenadorias estão com outros militares. É o caso da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), foco do combate à pandemia de coronavírus, chefiada por um almirante.
Caso seja aprovada a escolha do general da reserva Joaquim Silva e Luna para a Petrobras (já anunciada por Bolsonaro), mais de um terço das estatais federais ficará sob controle de militares. Pelos dois estudos analisados por GZH, é perceptível que a nomeação de militares se dá sobretudo em áreas estratégicas. Na Presidência da República, o percentual de militares da ativa e da reserva que ocupam cargos comissionados de chefia passou de 2,4% no final do governo Dilma para 3% com Temer e, agora, está em 14% com Bolsonaro.
Em alguns ministérios, caso de Ciências e Comunicações, os militares saltaram de 1% dos CCs de chefia (em 2016) para 9,8%. Em Minas e Energia, passaram de 0,4% (no governo Dilma) para 10,9% (no governo Bolsonaro). Na Saúde, os militares CCs não ocupavam cargos comissionados de chefia em 2016 e agora são 7,8% dos CCs da pasta. No Meio Ambiente, o número saltou de zero para 8,3%.
A reportagem foi atrás de explicações. Especialista em assuntos da caserna no país, Nelson Düring, editor do site Defesanet.com.br, pensa que a razão pode ser resumida em uma palavra: confiança.
– Bolsonaro se difere por ter chegado ao poder sem um grande partido. Assumiu sem quadros políticos, enquanto o PT tinha, e ainda tem, uma massa de seguidores, simpatizantes e técnicos já integrados ao governo. O presidente decidiu recrutar operadores nas fileiras das Forças Armadas, de onde é oriundo. Agora, com dois anos, o governo começa a ter algum controle da máquina pública – diz Düring.
Professor de Direito Constitucional e Internacional na Ulbra, o ex-militar Demetrius Teixeira (foi do Exército durante 25 anos) está convencido de que um dos principais critérios para escolha do staff no Planalto é o sujeito ser militar. Bolsonaro, interpreta Teixeira, se sente seguro de que assim terá disciplina e hierarquia na estrutura de governo.
– Mais ainda porque o presidente quer se afastar da máquina política, que ele vivenciou dentro do Congresso. Ele também procura passar a imagem de que ainda é capitão do Exército, embora não o seja mais. Tenta colar sua imagem às Forças Armadas – analisa o professor, que serviu na Marinha e, depois, virou sargento do Exército.
Outro docente, Eduardo Svartmann, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que preside a Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed), tem opinião diferente: não acha que Bolsonaro escolheu militares por preferência ou identificação, mas pelo engajamento político de generais ainda antes das eleições. Com o deslocamento dos “olavistas” e “lavajatistas” em favor de políticos do tradicional “Centrão”, os militares ganharam peso como base fundamental para o governo.
O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, gaúcho que foi ministro de Bolsonaro e com quem ele rompeu, não vê problema no aproveitamento de militares no governo, pela capacidade que costumam demonstrar. Mas não se pode deformar a representação social nos diversos escalões, alerta.
Cruz teme que a população confunda as Forças Armadas com uma prática de governo “que não tem nada de admirável, com crise todo dia, show todo dia”. O general considera que os militares não podem ser arrastados para a política, “mesmo que o governo tente levá-los para a correnteza”.
Assim como Bolsonaro se nutre do prestígio dos militares, eles também são beneficiados pelo governo. A reforma previdenciária não sobrecarregou-os com o mesmo nível de sacrifícios impostos às categorias civis – a aposentadoria é com o último soldo, no caso dos militares. O orçamento do Ministério da Defesa saltou de R$ 100,9 bilhões em 2018 para R$ 114,6 bilhões em 2020.
Os temas caros às Forças Armadas nem sempre são os mesmos de outros integrantes do governo, nota Demetrius Teixeira. Ele vê conflito de interesse deles com a agenda ultraliberal prometida durante a campanha de 2018 e que tem no ministro da Economia, Paulo Guedes, seu último expoente no primeiro escalão do governo.
– Os generais e coronéis têm no DNA a importância do Estado na economia, o que vai contra o pensamento de Guedes e gera incerteza, por exemplo, sobre qual rumo será tomado na Petrobras – aponta Teixeira.
Nelson Düring confirma que há uma briga no governo sobre vender ou não Eletrobras e Petrobras e assinala que certas estatais, sobretudo as de energia, “são encaradas como caso de segurança nacional e, por isso, são chefiadas por militares”.
– O caso Petrobras indica um distanciamento do liberalismo. O petróleo não é visto pelas Forças Armadas como commodity: é estratégico – pontua Düring.
Uma História particular
Com o advento da redemocratização, em 1985, os militares passaram a conter suas manifestações políticas. Começava ali um período de concentração das Forças Armadas em questões profissionais, como a participação em Missões de Paz da Organização das Nações Unidas (ONU). Isso propiciou a reconciliação com parcelas da sociedade após o período de ditadura. Mas nem sempre esse distanciamento político existiu, recordam os entrevistados pela reportagem.
Militares e política se misturam de tempos em tempos, desde a proclamação da República – que, aliás, nasceu de uma agitação nos quartéis que forçou o Imperador Pedro II a deixar o governo e o país. Foram comandados ou integrados por militares os maiores movimentos políticos aos quais o Brasil assistiu. Na proclamação da República e nos anos subsequentes (com dois marechais como presidentes). No sufoco a rebeliões regionais e religiosas. No tenentismo da década de 1920 (quando oficiais do Exército representaram a vanguarda de protestos contra uma política de eleições fraudadas). Na rebelião comunista fracassada em 1935 e na tentativa de golpe direitista-integralista de 1937. Na guerrilha esquerdista aniquilada nos anos 1960.
Eram também militares os responsáveis por 21 anos de regime autoritário, a partir de 1964. Aí fica a pergunta: afinal, é saudável que os militares se misturem com a política?
Demetrius Teixeira acredita que presença de militares no governo não pode ser considerada sinônimo de retrocesso institucional. Ele salienta que sempre que há um arroubo de segmentos autoritários apoiadores de Bolsonaro, por exemplo, a contenção de ânimos é feita pelos militares. Mas admite que a sociedade perde e as Forças Armadas se desgastam com a participação nos principais cargos de um governo polêmico. Como acontece com a situação do Ministro da Saúde, muito questionado pela gestão no combate à pandemia.
– Ao longo dos tempos, os militares tiveram papel preponderante na política brasileira, desde a proclamação da República, e não necessariamente com rupturas. Não há risco de tê-los na política. O marechal Rondon foi relevante na coesão nacional, no mapeamento e na consolidação das fronteiras brasileiras. O vice-presidente Mourão, para ficar em tempos atuais, é muito preparado – pondera o professor da Ulbra.
Já Eduardo Svartman, da UFRGS, caracteriza a politização da caserna como danosa para a hierarquia, a disciplina e também a efetividade do trabalho.
– Como as Forças Armadas detêm recursos humanos e materiais (tropas e armamentos) com grande poder de destruição, é importante que estejam afastadas do campo político. Em muitos países, por exemplo, é obrigatória uma quarentena de alguns anos para que um militar da reserva ocupe um cargo governamental.
Svartman lembra que ocorreu o oposto nas eleições de 2018 no Brasil, com uma geração de generais servindo de base de apoio ao então candidato Bolsonaro. O professor acha importante entender por que militares foram protagonistas em vários processos da nossa história. E elenca alguns fatores, entre os quais as crises institucionais que levaram atores políticos a recorrer às Forças Armadas e o culto e incentivo, no meio militar, ao engajamento político, citando aí os generais Cordeiro de Farias e Ernesto Geisel como exemplos de militares com carreiras híbridas, entre o Exército e a política.
Svartman ressalta que o fim da Guerra Fria e a consequente agenda de reformas do setor de segurança (que incentivou a criação do Ministério da Defesa e a subordinação militar à direção civil) promoveu uma “volta aos quartéis” em vários países.
– Contudo, como no Brasil o processo de transição para a democracia foi em grande medida controlado pelos militares, essa agenda reformista foi superficial. Isso ajuda a entender a continuidade da disposição para interferir na política – diferencia o professor da UFRGS.
Considero um número válido (os 343 militares em cargos de alto escalão no governo). Eles representam a confiança de quem os nomeou em sua capacidade técnica.
HAMILTON MOURÃO
Vice-presidente da República
As dúvidas levantadas pelo professor Svartman não parecem incomodar a maioria da população brasileira. Nelson Düring acredita que o povo tem aplaudido o ingresso de militares no governo. Cita um levantamento recente da Paraná Pesquisas no qual 50% dos entrevistados considera positiva a presença de integrantes das Forças Armadas na administração pública, contra 36,4% que consideram negativa. A mesma pesquisa apontou que 62,1% dos entrevistados não enxergam risco de golpe militar no país neste momento.
Düring crê que o apreço popular pode fortalecer a presença militar no governo. O núcleo mais ideológico, ou os “olavistas”, que tinham protagonismo no início do mandato de Bolsonaro, perderam força, repara o analista. O superministro Sergio Moro, que personificava a promessa de combate à corrupção, pediu demissão e, pela popularidade que ainda detém, se tornou adversário do presidente.
– Já o núcleo militar cresceu e conquistou espaços, não apenas em cargos, mas em missões consideradas estratégicas do ponto de vista político. A mais recente delas, por exemplo, é a que envolve a Petrobras – cita.
Düring ressalva que integrantes das Forças Armadas em cargos estratégicos não são necessariamente políticos de direita. Para além a Venezuela, pode-se citar o México, do presidente Manoel López Obrador, que é de esquerda e também aumentou o emprego de militares no governo, não só na segurança pública (rompendo uma promessa de campanha de “tirar o Exército das ruas”), mas em obras em ferrovias, portos e aeroportos.
“Preconceito”, diz Mourão
General que chegou ao topo da hierarquia funcional, o vice-presidente Hamilton Mourão é contra a politização dentro dos quartéis. Considera que essa é uma posição clara dos militares, principalmente após o regime militar (1964-1985). Em novembro, após uma cerimônia no Exército, lembrou que as Forças Armadas já tiveram um “um problema muito sério de politização, que só serviu para causar divisão”, pouco antes da derrubada do governo civil em 1964:
– A política tem paixões, então você vai ter dentro dos quarteis um cara é que é do partido A, outro que é do partido C. Vai ter uma discussão que termina por causar divisões.
Quanto à participação de reservistas na política, ele se mostra favorável, tanto que concorreu nas últimas eleições (e se elegeu). Questionado pela reportagem para explicar o porquê de tantos militares terem sido escolhidos para ocupar cargos estratégicos no governo atual, responde ser esta uma “questão de confiança na capacidade técnica”.
– Tome, por exemplo, a minha equipe, onde tenho uma mistura de civis e militares. Os civis controlam as assessorias Jurídica, Parlamentar, Diplomática e Administrativa. Sob a batuta dos militares estão a Chefia de Gabinete e as Assessorias de Temas Institucionais, Comunicação Social e Especial – explica o vice-presidente.
Mourão discorda do “famoso número de 6 mil militares em cargos civis do governo Bolsonaro” e acredita que a explicação possa ser a força-tarefa de 1,9 mil chamados para atuar no INSS (que é temporária e ele não considera cargo de confiança).
– Esse dado teria que ser colocado de forma muito clara, até porque nos atos de nomeação sai apenas o nome do cidadão, sem posto ou graduação. Quanto aos 300 e alguma coisa que ocupam cargos de direção, considero um numero válido. Eles representam a confiança de quem os nomeou em sua capacidade técnica.
Com relação às críticas à militarização do governo, Mourão é taxativo:
– Tudo que vem sendo polemizado faz parte do velho preconceito que ainda vigora sobre o meio militar.