Consagrado pela maior votação já obtida por um candidato no primeiro turno de uma eleição presidencial, Jair Bolsonaro não esperou o fim da disputa para anunciar qual seria uma das prioridades de sua gestão. Em vídeo transmitido ao vivo em suas redes sociais na noite de domingo, 7 de outubro de 2018, foi taxativo ao comemorar:
— Vamos botar um ponto final em todos os ativismos do Brasil.
Bolsonaro subiu a rampa, vestiu a faixa e discursou que governaria "sem discriminação e divisão", mas em oito meses acumula frentes de atrito com diversos setores da sociedade. Em tom provocativo, já anunciou medidas que afetam universidades, jornais impressos, ambientalistas, artistas, estudantes e sindicalistas.
Vistas pelo presidente como adversárias, essas categorias ou organizações sociais vêm sendo alvo de decisões que restringem sobretudo suas finanças e autonomia. Com atuação política mais combativa, sindicatos e entidades estudantis também perderam fontes de receita. Nos órgãos ambientais, são reiterados os casos de transferências e exonerações de quem contraria decisões ou tem pensamento diferente à lógica governista.
— É uma tentativa de sufocar a inteligência. Este é um governo contra a ciência, a educação, a pesquisa, a cultura. São setores que poderiam inclusive fortalecer a economia. O povo queria uma nova política e hoje temos essa pauta insana — critica o cientista político e filósofo Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação no governo Dilma Rousseff.
— Posso ser mais ou menos favorável às medidas, mas reconheço que são compromissos de campanha. Não vejo objetivo de sufocamento, só uma tentativa de cumprir a agenda. Às vezes, ele acerta no mérito, mas erra na forma. Os governos do PT se orientaram ideologicamente e poucos se incomodavam — rebate a advogada e deputada estadual Janaína Paschoal (PSL-SP), autora do pedido de impeachment de Dilma.
Fato incontroverso entre apoiadores e desafetos de Bolsonaro são os efeitos políticos das falas do presidente. Por vezes, tal postura contamina a repercussão de medidas benéficas para enorme parcela da população. Foi o que ocorreu com o anúncio da carteira estudantil digital. Criado por medida provisória, o documento será emitido via aplicativos de celular e de graça, ante os R$ 35 cobrados pela União Nacional dos Estudantes (UNE), há décadas controlada pelo PCdoB. O comentário de Bolsonaro expõe seu alvo:
— Não vai ter mais que pagar para a UNE, que quem manda lá é o PCdoB. Vai faltar dinheiro para o PCdoB, hein.
Em quase 30 anos de vida pública, Bolsonaro sempre cultivou retórica beligerante: já foi condenado por racismo, admitiu ser homofóbico, defendeu torturas e ditaduras militares e disse que o país só melhoraria com uma guerra civil que "matasse uns 30 mil". No governo, ofendeu familiares de líderes internacionais. Mas desde que foi investido do mais alto cargo da República, em nenhum momento defendeu rupturas democráticas.
Na terça-feira (10), gerou polêmica uma declaração do filho vereador, Carlos Bolsonaro, para quem, "por vias democráticas, a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos".
O presidente não comentou a manifestação, repudiada por parlamentares à esquerda e à direita.
Para o jurista Dalmo Dallari, ligado ao PT, as ações de Bolsonaro contra instituições, combinadas à virulência do discurso oficial, representam uma crescente ameaça a preceitos fundamentais da democracia.
— Não existe um critério racional, ele apenas diz e faz coisas absurdas. Essa investida é extremamente grave, inclusive porque alimenta a fúria dos seguidores. Nossa sorte é que temos uma ótima Constituição — ressalva Dallari.
Com trânsito fácil no Palácio do Planalto e nos principais ministérios, o deputado Marcel van Hattem (Novo-RS) foi um dos entusiastas da candidatura Bolsonaro no segundo turno e tem alinhamento com a maioria das pautas do governo. Ao apontar um erro do Ministério da Economia que aumentou em R$ 671 milhões o fundo eleitoral para 2020, experimentou a ira dos bolsonaristas, muitos deles seus aliados políticos, como deputados do partido do presidente. Para ele, Bolsonaro não representa risco à democracia.
— É só liberdade de expressão. O presidente sempre foi assim e quem votou nele sabia como ele agia. Ele faz o enfrentamento com a esquerda. Mas penso que poderia se poupar. É preciso ajuste na comunicação — prega o deputado.
Aos 83 anos, o antropólogo Roberto DaMatta enxerga no comportamento de Bolsonaro traços do lacerdismo. Inspirado nos atos do governador fluminense Carlos Lacerda nos anos 1960, a corrente é fundada em posições morais extremamente conservadoras, recheadas de frases bombásticas e ataques à esquerda. Maior adversário político do populismo trabalhista de Getúlio Vargas, Lacerda apoiou o golpe de 1964 e depois foi cassado e preso pelo regime militar. Para Da Matta, Bolsonaro age com uma lógica binária semelhante:
— Para ele, é sim ou não, culpado ou inocente, está salvo ou condenado. Bolsonaro tem um ressentimento muito grande e pouca instrução. Não segue nem as regras de etiqueta. Mas não temo recaídas antidemocráticas. Espero que tudo isso seja reflexo de uma dialética moral que tem histórico pendular. Creio que vai encontrar sua zona de equilíbrio. No momento, porém, minhas esperanças são pequenas.
Os alvos mais frequentes
As universidades
Logo após tomar posse, em abril, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, congelou verbas de universidades por causa do que chamou de "balbúrdias" nos campi. Não tardou para instituir um corte generalizado de 30% nos orçamentos de todas as instituições federais de ensino. Com várias universidades reduzindo despesas para evitar colapso em aulas, pesquisas e serviços, o ministro anunciou três cortes em bolsas de mestrado e doutorado, extinguindo 11.811 financiamentos. Na quarta-feira, acabou reativando 3.182 bolsas, embora tenha reduzido à metade o orçamento da Capes para 2020.
Os estudantes
Para esvaziar uma das principais fontes de receita do movimento estudantil, Bolsonaro assinou medida provisória (MP) que cria carteira estudantil digital. A exemplo do documento tradicional, a nova versão permitirá pagamento de meia entrada em eventos culturais e deve começar a ser emitida em dezembro, num primeiro momento para estudantes do Ensino Superior. Por lei, desde 2013 somente três entidades podiam emitir as carteiras: União Nacional dos Estudantes (UNE), União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) e Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG). A carteira digital será de graça.
A imprensa
Duas iniciativas retiraram recursos de publicidade da mídia impressa. Em agosto, Bolsonaro desobrigou empresas de capital aberto de publicar balanços em jornais. A decisão permite que os balanços possam ser exibidos, de graça, no site da Comissão de Valores Mobiliários ou do Diário Oficial da União. Na semana passada, outra MP de teor semelhante acabou com a obrigação de que atos e procedimentos de licitação da administração pública também sejam divulgados em jornais impressos.
Os sindicatos
Bolsonaro editou em março MP restringindo pagamento da contribuição sindical. A reforma trabalhista já proibia cobrança compulsória, mas o ato dificultou a arrecadação dos sindicatos, ao vedar desconto na folha, mesmo se aprovado em assembleia, exigindo autorização por escrito e quitação via boleto. Em julho, a MP caducou. Nova reforma em estudo prevê fim da unicidade sindical. As entidades dizem que a pluralidade de sindicatos para cada categoria enfraquece movimentos.
Os ambientalistas
Desde a campanha, Bolsonaro manifestava intenção de afrouxar controle de violações ambientais, que considerava "indústria da multa". Exonerou todos os superintendentes do Ibama, alguns deles até hoje sem substituto, transferiu servidores considerados desafetos e proibiu ações legais, como a destruição de máquinas de desmatadores e garimpeiros. A medida de maior repercussão foi a demissão do diretor do Inpe após discordar dos dados sobre aumento das queimadas.
Os artistas
Principal fonte de financiamento da produção artística e alvo de Bolsonaro desde a campanha, a Lei Rouanet foi alterada em abril, reduzindo o limite de captação de R$ 60 milhões para R$ 1 milhão. A medida diminuiu de R$ 60 milhões para R$ 10 milhões o volume máximo que uma mesma produtora cultural pode receber. Houve ainda ataques à Ancine, imposição de filtros na escolha de séries e filmes que seriam contemplados e corte de 43% no orçamento do fundo audiovisual, cujas verbas caíram para R$ 112 milhões, menor valor desde 2012.