Um dos mais requisitados consultores políticos do país, o filósofo Denis Rosenfield passa os dias entre Porto Alegre, São Paulo e Brasília, ministrando palestras, projetando cenários, dando conselhos e, sobretudo, ouvindo algumas das principais autoridades civis e militares da República. Para Rosenfield, que ganhou projeção nacional no início dos anos 2000 com um dos mais contundentes críticos do PT e do lulismo, o governo Jair Bolsonaro investe contra determinados setores por conta da necessidade premente de estabelecer inimigos e estar em constante estado de confronto.
— Bolsonaro vive de movimento, de criação de caso. Está sempre tentando colocar o outro como inimigo — resume o professor aposentado da UFRGS.
Autor de mais de 20 obras sobre filosofia e política, Rosenfield tem trânsito fácil no generalato que ascendeu ao poder com Bolsonaro e foi o principal interlocutor entre a caserna e o Planalto durante o governo do ex-presidente Michel Temer, de quem é amigo.
Na entrevista a seguir, ele interpreta a ofensiva do presidente, comparada por ele às práticas nazistas e stalinistas de perseguição política dos adversários, mas ressalta que a democracia brasileira não está sob risco. Rosenfield só desconversa quando questionado sobre o que pensam os militares a respeito do temperamento de Bolsonaro e sua cultura beligerante.
— Mantenho uma rede que me mantém muito bem informado sobre tudo que acontece no país. Durante três anos, fui o elo entre o Exército e o presidente Temer, mas jamais falei sobre isso. Agora me afastei um pouco e prefiro não comentar.
Qual o significado dessa ofensiva do presidente?
Há uma questão genérica nas atitudes, mas não dá para misturar alhos com bugalhos. O fim da contribuição sindical vem do governo Temer e foi decisão da Câmara. Uma coisa é o governo atacar a imprensa. Isso é um problema. Ele também não precisava ter tomado decisões intempestivas sobre a Amazônia, mas havia, sim, uma indústria da multa.
As ações precisam ser relativizadas?
A questão da liberdade de imprensa, de manifestação e também cultural é um pacote. Se explica pela concepção política do bolsonarismo, avessa à crítica e à contestação. Toda crítica é compreendida pelo presidente como um ataque e ele passa a considerar aqueles que o atacam como inimigos.
Quais os riscos dessa postura?
Tratar como inimigo uma instituição como a imprensa, que é fundamentada na liberdade de expressão. Isso atenta a um aspecto central da vida democrática. O presidente é avesso à imprensa. Ele vê amigos de um lado e inimigos de outro, não tem mediação. É uma política autoritária.
Há ameaça à democracia?
Acho que não. As instituições estão funcionando. É a política dele, quer impor uma pauta de costumes. O problema é que ele não negocia e não demonstra visão de Brasil, então podemos rumar para uma polarização política à qual se acrescentaria uma crise econômica. Se tivermos esse cenário, aí teremos um risco.
O senhor teme que ele radicalize ainda mais?
É a tendência. Porque ele vive de movimento, de criação de caso. Sempre tentando colocar o outro como inimigo. É o PT, aquele que se associa ao PT. Mas na verdade ele está voltado para inviabilizar uma candidatura de centro, tipo (o apresentador de TV Luciano) Huck ou (o governador de São Paulo, João) Doria. Ele quer ter o PT no segundo turno das eleições de 2022, porque daí pode ganhar. Se for com Huck, Doria ou (o ministro da Justiça, Sergio) Moro, há risco muito grande para Bolsonaro.
Haveria reação a eventual radicalização?
O problema do Brasil hoje é que não há oposição. O PT está atrelado à figura de um condenado que autocraticamente determina os rumos do partido. Daí não se cria alternativa de poder. Então, Bolsonaro é obrigado a criar um inimigo. Na Alemanha nazista, os judeus eram 1% da população e estavam desarmados, mas eram os inimigos. Não faz nenhum sentido racional. Mas fazia todo o sentido para Hitler, que mantinha a sociedade mobilizada contra os judeus. Nos regimes stalinistas, vigorava o mesmo princípio. Lula também tinha isso: era o nós contra eles.
Lula não cooptou o "eles"?
Lula fez negócio, comprou o "eles", mas, nos processos eleitorais, a narrativa era nós contra eles, progressistas contra conservadores. Depois, ele ia lá e acertava com os banqueiros e os grandes empresários. Mas isso não entrava no discurso eleitoral nem no político, era por debaixo do pano. A Lava-Jato é que depois foi descobrir.
O Congresso seria eficaz para frear uma ação autoritária?
Um ganho que tivemos nesse período foi a autonomia do Legislativo. Foi o Congresso que fez a reforma da Previdência e está tocando a tributária. O problema é saber como passar os próximos três anos se Bolsonaro continuar buscando confrontos e a economia não deslanchar.
Economia salva a democracia?
Ela pode ser salva pelos atores políticos. O problema é saber até onde terão consciência. Por enquanto, está tranquilo. Os três poderes exercem suas funções, estando nós de acordo ou não. O embate está mais ou menos equilibrado.
A erosão da popularidade e esses confrontos podem criar ambiente pró-impeachment?
O presidente acaba de ser eleito. Você pode não estar de acordo com o governo, mas não derruba com oito meses de mandato. Ele tem 30% de aprovação popular, é muito para um impeachment, que se faz com quem tem de 5% a 10%. Bolsonaro também tem capacidade de mobilização de rua e emprego intensivo de redes sociais. Tudo isso é obstáculo. Impeachment só ocorre quando há uma crise e o detentor de poder não tem mais poder, caso da Dilma e do Collor. Bolsonaro tem poder e o exerce.