A repercussão do processo de transição de governo, dos primeiros passos do presidente eleito e de demais temas pós-segundo turno das eleições foi engolida por uma série de bloqueios em rodovias no país. Com largada no encerramento do pleito, o movimento ganhou corpo no início da semana, mas começou a perder fôlego. Agora, autoridades e entidades empresariais tentam estimar os estragos causados pela interrupção das estradas na economia e em demais áreas.
Insatisfação com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva e críticas aos trabalhos da Justiça estão entre os principais ingredientes que inflamam os participantes da mobilização. Além dos movimentos nas estradas, outra parcela dos descontentes com o resultado das urnas cerca quartéis do Exército em busca de intervenção federal. Não reconhecer o resultado da eleição e pedir intervenção militar são atos antidemocráticos.
Motivo
Os primeiros atos foram registrados ainda no domingo (30), logo após o resultado das eleições confirmarem a vitória de Lula sobre Jair Bolsonaro. A confirmação de Lula como presidente pelos próximos quatro anos é o principal alvo dos manifestantes. Eles afirmam que o fato de o presidente eleito ter sido condenado e preso no passado significa um problema moral para o país e risco de propagação da corrupção.
Alegação de fraude
Em alguns casos, parte dos manifestantes afirma, sem provas, que houve fraude no processo eleitoral e desequilíbrio no pleito diante de decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
O Tribunal de Contas da União (TCU) analisou boletins de urnas durante a eleição. A auditoria do órgão não encontrou irregularidades no processo.
O TSE também tem posição nessa linha. O presidente da Corte, Alexandre de Moraes, afirmou que o resultado das urnas é incontestável.
O que dizem as leis
O inciso XV do artigo 5º da Constituição prevê que “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”. O Código de Trânsito Brasileiro destaca que bloquear a via com veículo é infração gravíssima, com penalidade de multa, apreensão do veículo e medida administrativa com remoção do automóvel. Além disso, manifestantes podem sofrer outras sanções diante do desrespeito à ordem de autoridades públicas.
Falta de ação
Alguns setores da sociedade e de órgãos públicos citaram possível falta de ação por parte da Polícia Rodoviária federal (PRF) contra os bloqueios. Em alguns casos, foram registrados agentes da corporação ajudando manifestantes ou informando que estavam ali somente para acompanhar os atos.
Busca por solução
Na noite de segunda-feira (31), o ministro Alexandre de Moraes, que também atua do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que a PRF e as polícias militares dos Estados liberem imediatamente as rodovias bloqueadas por manifestantes bolsonaristas. A decisão foi confirmada pela maioria do plenário da Corte na madrugada de terça-feira (1º).
Ainda na terça-feira, a PRF começou a usar a força para desmobilizar os pontos de bloqueio. No Rio Grande do Sul, esse tipo de operação foi realizada, como foi registrado pela reportagem em ponto da BR-116, em Novo Hamburgo. A Secretaria da Segurança Pública do Estado também deslocou policiais militares para desbloquear rodovias.
O Ministério Público Federal (MPF) pediu à Polícia Federal (PF) abertura urgente de um inquérito sobre a conduta do diretor-geral da PRF, Silvinei Vasques, nas eleições. O documento aponta indícios de prevaricação, violência política e omissão na desmobilização dos protestos que bloquearam estradas.
Impactos econômicos
Com o impedimento da circulação de parte do transporte terrestre, as manifestações geram preocupações que vão desde o desabastecimento de combustíveis e alimentos até falta de insumos hospitalares. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou, na quarta-feira, que está monitorando os possíveis desabastecimentos de suprimentos de saúde diante dos bloqueios em rodovias. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) também destacaram receio em relação a problemas em cadeias de suprimentos.
Multas no RS e no país
A PRF informou que, até as 10h desta quinta-feira, foram extraídas 170 multas no âmbito do movimento de bloqueio de rodovias federais no Rio Grande do Sul, o que representa R$ 170 mil. O último balanço do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), divulgado na quarta, informou que 2 mil motoristas foram autuados, o equivalente a R$ 18 milhões, segundo a pasta. Nas rodovias estaduais, o Comando Rodoviário da Brigada Militar (CRBM) aplicou 372 multas por bloqueios até quarta-feira (2), mas sem estimativa de valores.
Posicionamento presidencial
Derrotado no domingo, o presidente Jair Bolsonaro permaneceu em silêncio até terça-feira. No período da tarde, em breve pronunciamento, ele afirmou que as manifestações mostravam o descontentamento de parte da população com o resultado do pleito, mas condenou atos que impediam o direito de ir e vir.
Na quarta-feira (2), o chefe do Executivo nacional voltou a rechaçar os bloqueios de rodovias. Em vídeo, ele fez "um apelo" aos apoiadores para que "desobstruam as rodovias".
— Sei que vocês estão chateados, estão tristes e esperavam outra coisa, eu também, estou tão triste quanto vocês, mas precisamos ter a cabeça no lugar. Os protestos e manifestações fazem parte do jogo democrático e, ao longo dos anos, muito disso foi feito pelo Brasil. (...) Mas tem algo que não é legal: o fechamento de rodovias pelo país prejudica o direito de ir e vir das pessoas. E está lá na nossa Constituição — afirmou Bolsonaro.
Intervenção militar
Em paralelo aos bloqueios em estradas, uma série de manifestações no entorno de quartéis militares pedindo intervenção federal foi registrada em todo o país nos últimos dias.
Com base na Constituição Federal, o Exército não pode promover intervenção militar por conta própria. O artigo 34 da Constituição prevê a possibilidade de intervenção federal da União nos Estados e no Distrito Federal em casos excepcionais, como manter a integridade nacional e garantir a ordem pública. Um dos exemplos desse tipo de intervenção é a que foi realizada no Rio de Janeiro em 2018. Na ocasião, com a justificativa de resolver problemas de segurança pública, o Exército passou a ter responsabilidade sobre as polícias, os bombeiros e a área de inteligência do Estado, inclusive com poder de prisão.
Artigo 142
Algumas publicações em redes sociais contra a eleição de Lula afirmam que o artigo 142 da Constituição prevê a possibilidade de as Forças Armadas atuarem como um poder moderador, abrindo espaço para uma intervenção militar. No entanto, o artigo em questão é responsável pela regulamentação e estruturação das Forças Armadas, e não cita a intervenção militar. Esse dispositivo está dentro do título sobre defesa do Estado e das instituições democráticas.
“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”, destaca trecho do dispositivo.
Em entrevista ao programa Timeline, da Rádio Gaúcha, o vice-presidente da República e senador eleito, Hamilton Mourão, afirmou que existe uma interpretação errada do artigo:
— Algumas pessoas interpretaram de uma maneira errônea ou enviesada o que diz o artigo 142 da Constituição, quando coloca como ambição das Forças Armadas, uma delas, a garantia dos poderes constitucionais. Mas nenhum dos poderes constitucionais está ameaçado, hoje. Então, não existe essa possibilidade (de intervenção militar) — avaliou Mourão, que é general da reserva do Exército brasileiro.