Após a disputa mais radicalizada em quase quatro décadas, desde o fim da ditadura militar, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 77 anos, voltou a recuperar a cadeira presidencial. A diferença entre os dois candidatos foi de 1,8 ponto percentual, 2,1 milhões de votos, indicando matematicamente um país absolutamente dividido: um em cada dois brasileiros pensa diferente do seu vizinho ou familiar.
Amparado numa coalizão que vai dos sem-terra à centro-direita, ele foi eleito pela terceira vez para governar o país – é o primeiro na história a alcançar o feito. No pleito deste domingo (30), teve apoio de 60,3 milhões de eleitores, perfazendo 50,90% do total de votos válidos (às 19h54 foi anunciado matematicamente eleito). O seu arquirrival, Jair Bolsonaro (PL), que teve dificuldades para aglutinar forças moderadas ao seu amplo domínio sobre o eleitorado conservador, conquistou 58,2 milhões de votos (49,10% do total de válidos). Foi o primeiro presidente a perder a disputa à reeleição.
Mais de 120 milhões de eleitores participaram desta que foi a sexta disputa presidencial de Lula, um filho de migrantes nordestinos que fez a vida como líder sindical dos metalúrgicos na Grande São Paulo. Ele chega ao terceiro governo com proposta de frente ampla. Retrato disso é o vice, Geraldo Alckmin (PSB), que no passado, no PSDB, foi adversário renhido do PT.
A eleição de Lula foi mais apertada do que outra disputa histórica, a de 2014, quando Dilma Rousseff (PT) venceu Aécio Neves (PSDB) por 2,3 pontos percentuais - 3,45 milhões de votos. Lula saiu na frente neste domingo, nos votos no Exterior, e começou atrás nas urnas no Brasil. A contabilidade assim perdurou por mais de uma hora e meia, até que às 18h44min virou a seu favor: com 67,7% dos votos apurados, Lula atingiu 50,02% dos votos válidos, contra 49,93% de Bolsonaro. Foi o início de foguetório, gritos e choro nas ruas pelos apoiadores. E a contagem foi aumentando até o anúncio oficial da vitória, por volta das 20h.
Das três vezes em que Lula conquistou a Presidência da República, essa foi de longe a mais difícil. Até porque, antes de conseguir ser candidato, ele sofreu um baque gigantesco em sua biografia política. Foi apontado como chefe de um esquema de desvio de dinheiro da Petrobras, passou 580 dias preso, condenado em duas instâncias por corrupção em episódios de lavagem de dinheiro investigados pela Operação Lava-Jato. As denúncias acabaram caindo: condenações foram anuladas ou as investigações retornaram a etapas iniciais. Em parte devido a acusações de parcialidade levantadas contra o juiz que o condenou, Sergio Moro (que acabou virando ministro da Justiça do seu adversário Bolsonaro, quando Lula ainda estava preso).
A saída de Lula da prisão não o livrou dos prejuízos na imagem. Nos programas eleitorais obrigatórios e nos debates na TV, foi repetidamente chamado de “ex-presidiário” e “corrupto” por Bolsonaro. O atual presidente também explorou contradições ideológicas do petismo, que reluta em condenar ditaduras de esquerda mundo afora (como Cuba e Venezuela).
Lula, por sua vez, fez campanha lembrando os bons momentos da economia em seus dois governos (do início de 2003 ao final de 2010), sua inserção internacional, os programas sociais que criou e que o petismo promete ampliar (como o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida). Também foi hábil ao acusar Bolsonaro de posturas que mesclam polêmicas ideológicas e traços de personalidade: falta de empatia para com parentes de mortos pela covid, atitudes machistas em relação a candidatas e jornalistas mulheres, ligação com milícias paramilitares do Rio, aparelhamento das polícias, suspeitas de enriquecimento ilícito de familiares e lançamento de programas de ajuda econômica e rompimento de tetos de gastos às vésperas da eleição.
Entre os fatores que parecem ter ajudado na derrota do atual presidente constam sua relutância em encarar a gravidade da covid-19 e seu rastro de mais de 600 mil brasileiros mortos, a virtual paralisação da economia durante a pandemia, seu estilo defensivo-agressivo de “bateu-levou” e as acusações de corrupção envolvendo verbas de ministérios (como nas pastas de Educação e Saúde). Mesmo assim, Bolsonaro conseguiu aglutinar milhões em seu repúdio à volta do petismo e com o discurso anticorrupção.
Polêmicas
O certo é que a vitória do lulismo foi por pontos e não o nocaute que muitos esperavam, após a coleção de polêmicas dos quatro anos de governo bolsonarista. A campanha foi tensa, por vários motivos. Um deles, a animosidade entre militantes, que resultou em quatro assassinatos ao longo do semestre (morreram três simpatizantes de Lula e um apoiador de Bolsonaro).
Um dos sustos da campanha lulista foi na apuração do primeiro turno: grande parte das pesquisas de institutos consagrados apontavam diferença de 10 pontos ou mais. E os petistas acreditavam que a vitória poderia acontecer ali, em 3 de outubro. O resultado das urnas, porém, foi de 48,3% dos votos válidos para Lula e 43,2% para Bolsonaro. Uma ducha de água fria nos petistas, uma injeção de ânimo nos bolsonaristas.
Veio o segundo turno e alguns fatos podem ter ajudado Lula. Um deles foi o episódio da reação tresloucada do ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) à prisão, decretada após ele descumprir diversas determinações do Supremo Tribunal Federal (STF), como seguir usando as redes sociais, mesmo em prisão domiciliar. Jefferson, aliado de Bolsonaro, reagiu à bala contra agentes da PF. Feriu dois deles ao jogar três granadas e disparar mais de 50 tiros contra os policiais designados para prendê-lo. Tudo narrado ao vivo pelo Twitter da filha dele. Bolsonaro tentou se distanciar do episódio e determinou que o ex-aliado recebesse “tratamento de bandido”. Mas as pesquisas de opinião realizadas três dias depois mostraram que os tiros atingiram a campanha presidencial.
A disputa parecia se encaminhar para um desfecho mais calmo quando outras situações sacudiram a tranquilidade dos apoiadores de Lula. A primeira foi a denúncia, feita pelo QG de Bolsonaro, de que mais de 150 mil inserções da sua propaganda eleitoral obrigatória nas rádios deixaram de ser inseridas nas programações — sobretudo no Nordeste.
Algumas das rádios que não teriam veiculado a propaganda apresentaram provas de que teriam feito as inserções. O próprio partido de Bolsonaro, o PL, teria deixado de enviar as publicidades eleitorais, em alguns casos, alegaram os veículos. Pressionado, o ministro das Comunicações, Fábio Faria, recuou na intensidade da denúncia que fizera (em entrevista nacional para TVs) e disse que apenas quisera alertar as autoridades para possíveis falhas. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) descartou a denúncia como inconsistente. Integrantes da campanha bolsonarista chegaram a cogitar pedir o adiamento das eleições, mas recuaram ante três fatores: a indecisão de Farias (que apresentara a denúncia sobre falhas na inserção da propaganda), a falta de apoio entre a cúpula militar para uma saída não eleitoral e a movimentação intensa de políticos (inclusive governistas) pressionando pela manutenção do pleito.
Outro embaraço aconteceu em São Paulo um dia antes da eleição e envolveu uma ardorosa defensora de Bolsonaro, a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP). Hostilizada por um apoiador de Lula, ela sacou de uma pistola e perseguiu o homem por mais de 100 metros, com a arma na mão.
Um segurança dela chegou a disparar um tiro, sem deixar feridos. O segurança, um PM de folga, foi preso e a deputada teve a pistola apreendida. O episódio foi campeão de tuítes, a maioria com críticas à postura da parlamentar.
Por fim, chegou o dia do segundo turno e nova polêmica surgiu. A Polícia Rodoviária Federal (PRF), orientada pelo Ministério da Justiça, realizou centenas de blitze nas estradas, parando ônibus suspeitos de irregularidades. Muitos dos quais, repletos de eleitores. O PT chegou a pedir a prisão da chefia da PRF, o TSE chegou a cogitar ampliar o horário de votação nos Estados onde ocorreram mais barreiras policiais, mas nada disso aconteceu. Predominou a constatação de que as ações retardaram mas não impediram a votação.
Abertas, as urnas revelaram poucas surpresas. Lula venceu em todos os nove Estados do Nordeste e fez grandes votações em locais onde os governadores eleitos são seus adversários. Ganhou por menos de um ponto percentual em Minas Gerais (mantendo a tradição de que o vitorioso entre os mineiros ganha no país). No Rio Grande do Sul, Bolsonaro foi vencedor, com 56% dos votos válidos, contra 43% de Lula.
Lula não terá caminho fácil para governar. Bolsonaro venceu em quatro das cinco regiões e tem maioria entre os parlamentares eleitos no Congresso Nacional. Ele venceu também nos Estados mais poderosos economicamente. Tudo indica que serão mais quatro anos de racha ideológico e embates políticos na governabilidade do país.
No Estado, definição foi mais tranquila
Se a indecisão sobre os rumos do país preponderou por mais de duas horas, no RS a eleição mostrou uma tendência desde a abertura das urnas. Eduardo Leite (PSDB) saiu na frente para a corrida ao Palácio Piratini e em momento algum teve sua liderança na apuração ameaçada pelo bolsonarista Onyx Lorenzoni (PL). Às 19h, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) considerou Leite matematicamente eleito.
A festa foi grande no QG governista e Leite até se animou a tocar pandeiro, num sambão improvisado pelos apoiadores . Afinal, nunca um governador gaúcho tinha sido reeleito na pós-redemocratização.
O candidato do PSDB venceu por 57,11% contra 42,89% dos votos válidos. Uma virada histórica, para alguém que saiu bem atrás no primeiro turno. Em 3 de outubro, Onyx fez 37,5% dos votos, contra 26,8% de Leite, que quase empatou com Edgar Pretto (PT), que fez 26,7% dos votos.