O retirante nordestino, metalúrgico, sindicalista e pragmático político de centro-esquerda Luiz Inácio Lula da Silva (PT) novamente fez história ao vencer a eleição contra Jair Bolsonaro (PL) no segundo turno e conquistar o seu terceiro mandato de presidente da República do Brasil.
Na corrida eleitoral mais agressiva desde a redemocratização, Lula confirmou o ligeiro favoritismo. Com 99,7% dos votos computados, obtinha 50,88%, contra 49,12% do presidente Bolsonaro, derrotado na tentativa de reeleição.
Lula governou o país por dois mandatos, entre 2003 e 2010. Agora, depois de ter visto a ascensão da direita radical, enfrentado desgastes políticos e 580 dias de prisão sob acusação de corrupção, volta ao poder prometendo enfrentar a miséria, recuperar a economia e pacificar o Brasil. Derrotar o bolsonarismo, movimento de profundo enraizamento social, não apenas é uma mudança de rota política do país, mas também uma redenção para Lula e o lulismo. No primeiro pronunciamento após a vitória, Lula reforçou a tarefa de pacificar o país, combater a fome, gerar crescimento na economia e proteger a Amazônia.
— A partir de 1º de janeiro de 2023, vou governar para 215 milhões de brasileiros, e não apenas para aqueles que votaram em mim. Não existem dois Brasis. Somos um único país, um único povo, uma grande nação. Este país precisa de paz e união. Esse povo não quer mais brigar. É hora de baixar as armas, que jamais deveriam ter sido empunhadas. Armas matam. E nós escolhemos a vida — afirmou Lula, rodeado por aliados em um hotel em São Paulo.
A vitória, na avaliação de aliados, passou pelo acerto em manter o foco na pauta econômica e em ampliar a chamada frente ampla no segundo turno. A sucessão de crises que atingiu a campanha de Bolsonaro nos últimos dias também foi decisiva. O candidato à reeleição, logo quando ensaiava um leve crescimento e seus apoiadores se animavam projetando uma virada, se viu atado em polêmicas que o afastaram dos indecisos e dos moderados. Os fatos mais desgastantes foram a revelação de planos do Ministério da Economia para desvincular o reajuste do salário mínimo e das aposentadorias da inflação, o que poderia desvalorizar os vencimentos no futuro, e o atentado a tiros de fuzil e granadas do bolsonarista Roberto Jefferson contra policiais federais, mas houve outros.
— Eleição envolve errar o menos possível. Bolsonaro passou o segundo turno envolvido em pautas negativas que ele e seus apoiadores criaram. Teve o caso das meninas venezuelanas, o Bibo Nunes (deputado federal) dizendo que estudantes deveriam morrer queimados. Bolsonaro não conseguiu tratar uma pauta — afirma o deputado federal Paulo Pimenta, presidente do PT no Rio Grande do Sul.
O deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP) considera que o candidato do PL não conseguiu se desvencilhar de temáticas negativas.
— Se observarmos os fatos do segundo turno, eles acabaram fragilizando Bolsonaro. Quando o Guedes fala da política para o salário mínimo, tem um impacto muito grande, pega forte na vida das pessoas — diz Orlando.
As polêmicas do ministério de Guedes ajudaram o PT a recolocar a campanha no eixo econômico, após deslizes na largada (leia mais sobre isso na sequência da reportagem). Neste aspecto, se sobressaíram propostas como regulamentar a equiparação de salários entre mulheres e homens, a correção da tabela do imposto de renda para aliviar os que ganham menos e o programa de renegociação de dívidas das famílias.
Lula fez movimentos aos religiosos, declarando-se cristão, favorável às liberdades de culto e desmentindo boatos de que fecharia igrejas. Ele lançou uma carta aos evangélicos com esses compromissos e buscou apoio de algumas lideranças do segmento, que é amplamente favorável a Bolsonaro. É difícil medir a eficácia dos atos, mas aliados acreditam que a postura ajudou a conter acusações que poderiam desgastar mais a imagem do petista entre o eleitorado de fé.
Para o novo governo Lula, entre 2023 e 2026, aliados projetam as seguintes tarefas urgentes: retomar o desenvolvimento, combater a pobreza e reconciliar o país.
— O papel do Lula vai ser semelhante, guardadas as proporções, ao que o Mandela (Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul no pós-apartheid) cumpriu. A reconstrução de um projeto de nação. Esse ambiente de ódio e intolerância é algo que não conhecíamos no Brasil. O governo vai ser de unidade nacional — diz Pimenta.
Nos bastidores, sempre circulou a avaliação de que vencer a eleição era um dos desafios. À sombra do que ocorreu na invasão ao Capitólio, nos Estados Unidos, aliados de Lula entendem que é preciso construir mais pontes desde já para pavimentar o caminho da posse.
Tebet e a ampliação da frente ampla ao centro e liberais
Vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB-SP) foi, no primeiro turno, a representação maior da frente ampla, definida como uma soma de forças políticas contra o que consideravam ser uma ameaça à democracia e aos direitos fundamentais representada supostamente por Bolsonaro. Já no segundo turno, lastreada na mesma argumentação de defesa da democracia, somou-se à campanha, de forma engajada e decisiva, a senadora Simone Tebet (MDB-MS), candidata à Presidência que marcou 4,16% dos votos válidos no primeiro turno. Tebet tomou lugar na linha de frente e, junto disso, agregaram-se o PDT, com apoio tímido de Ciro Gomes, além de diversas manifestações de voto do liberalismo, alcançando criadores do Plano Real, nomes históricos do PSDB e o fundador do Novo João Amoêdo.
Lula reiterou que será presidente de apenas um mandato e fez manifestações de que sua candidatura era maior do que o PT, sinalizando moderação e união com diferentes setores da sociedade. Mas há, também, a avaliação de que somente Lula era capaz de reunir a força necessária para vencer o bolsonarismo. Apesar da rejeição, Bolsonaro comanda um grupo fiel e mobilizado de seguidores que, pelo resultado das urnas, indica representar, com folga, mais de um terço do eleitorado.
— Eu coloco, em primeiro lugar, a figura do Lula. A biografia e a história de vida dele tem muita força, sobretudo nos segmentos carentes da população que reconhecem nele um representante legítimo. E, sem dúvida, a construção da frente ampla. A candidatura do Lula é muito maior do que a esquerda. Temos liberais e centristas — avalia Flávio Dino (PSB), ex-governador do Maranhão e senador eleito.
Como esperado, o Nordeste foi decisivo e deu ampla maioria de votos a Lula. Pernambucano de nascimento, ele deixou a região ainda criança em um pau de arara rumo a São Paulo, mas manteve a identificação com os conterrâneos enquanto político. Bolsonaro apostou em medidas econômicas para reduzir a força de Lula no Nordeste em meio às eleições, como o aumento do Auxílio Brasil para R$ 600 e uma série de outras bonificações. Com o segundo turno correndo, foram liberados, em 11 dias, R$ 4,2 bilhões em empréstimos consignados para 1,6 milhão de beneficiários do Auxílio Brasil pela Caixa Econômica Federal. O Nordeste, região pobre do país, manteve a majoritária votação em Lula.
— Se enganou quem pensou que o povo pobre estava à venda. Os beneficiários fizeram a opção de confiar no compromisso e no legado do Lula. Até podem ter enganado alguns, mas a maioria disse o que eu ouvi em uma caminhada da campanha: "Recebo por necessidade, mas sei que é eleitoreiro. É R$ 600 no bolso (referência ao valor aumentado do Auxílio Brasil) e 13 na urna — afirma Wellington Dias (PT), ex-governador do Piauí e senador eleito.
Para Dino, as medidas econômicas de Bolsonaro no período eleitoral, somadas ao corte do preço dos combustíveis, representaram “os mais intensivos e abusivos usos da máquina pública na história brasileira”.
— Leis foram rasgadas, gerando espécie de vale-tudo. Isso explica o fato de Bolsonaro ter tido patamar de votação mais alto do que teria se fosse considerado apenas o seu desastroso governo — afirma Dino.
Além do combate à abstenção, que costuma ser maior entre eleitores pobres e menos escolarizados, outro acerto da campanha de Lula no segundo turno foi a adoção das caminhadas. Ao contrário do primeiro turno, quando a opção foi pelos comícios, um carro de som seguia à frente e Lula, logo atrás, fazia os trajetos montado em uma caminhonete. Ao estilo papamóvel, percorreu trechos de vias de importantes cidades, sempre reunindo multidões. Na avaliação de aliados, isso resultou em uma campanha vibrante e envolvente, que causou entusiasmo na militância e imagens impactantes para a TV e as redes sociais.
Para falar fora da bolha e alcançar além dos convertidos, a estratégia foi colocar Lula a conceder entrevistas em rádios de todo o Brasil e participar de lives e podcasts. Diferentemente de 2018, quando apanhou na disputa pela internet, a esquerda passou a dominar as ferramentas e diminuiu a diferença para a direita nesse campo de batalha. O impulso na internet contou com atuação decisiva do deputado federal André Janones (Avante-MG). Embora tenha sofrido críticas de setores da esquerda por adotar métodos questionáveis, o fato é que Janones gerou engajamento em favor do candidato do PT e rivalizou com o bolsonarismo em alcance.
Isca dos costumes: o momento mais difícil
Antes de retomar o foco na pauta econômica, a estratégia da propaganda de Lula no início do segundo turno havia migrado parcialmente para uma discussão de costumes, terra fértil da direita brasileira, buscando vincular Bolsonaro a maçonaria, canibalismo, pedofilia e ao ex-ditador paraguaio Alfredo Stroessner. Foi nesse período, coincidentemente, que Bolsonaro apresentou crescimento nas pesquisas, o que alimentou esperança de virada em seus apoiadores. O alerta soou no bunker petista. Entre os aliados de Lula, há divergência sobre a conveniência do movimento, que envolveu a fase mais difícil da etapa final da eleição.
— Na retomada do segundo turno, o bolsonarismo veio com força nos temas de comportamento, e a impressão que tenho é de que patinamos ao topar discutir nesse terreno. Esse terreno não é do interesse do povo. Isso é do interesse do Bolsonaro, que vive de enfrentamento para manter sua base ativa — avalia Orlando, que destaca a posterior correção de rota, facilitada pela revelação dos planos de Paulo Guedes no Ministério da Economia.
Michele Prado, pesquisadora sobre a extrema-direita e integrante de grupo de pesquisa do Instituto Brasil-Israel (IBI), autora de dois livros sobre a temática, tem avaliação semelhante.
— Chegou um momento em que se criou a ilusão de que usar os mesmos métodos da extrema-direita traria resultados positivos. Quando você cai na narrativa da extrema-direita, você já perdeu porque eles vão estar pautando o debate na sociedade. Quando o PT entra nessa área, perde de lavada — analisa Michele.
Entre os aliados, muitos saem em defesa da estratégia e dizem que ela foi necessária para mostrar contradições de Bolsonaro e manter a rejeição dele em alta.
— Nenhuma campanha pode ter tática única de mensagem. É uma tema forte da agenda bolsonarista e tínhamos de enfrentar. Mostramos que havia muito farisaísmo. Ele não tem autenticidade na defesa dos valores cristãos. Nunca teve militância religiosa e criou isso como personagem. É puro marketing — avalia Dino.