As cenas de invasão do Capitólio que assombraram o mundo nesta quarta-feira (6) representam o ápice de uma história de erosão da democracia, que começou com uma ofensiva obscura construída por Donald Trump desde os tempos da campanha eleitoral de 2016, aprofundada durante seu mandato e elevada ao extremo depois de 3 de novembro.
Desde sua primeira corrida pela Casa Branca, quando Trump enfrentou Hillary Clinton, o republicano comportava-se como um "apolítico", um outsider, exibindo desprezo pelo establishment político, que ele chamava de "pântano de Washington", que pretendia, supostamente, "drenar". Para chegar ao topo do poder, megalomaníaco como é, usava de ataques baixos à rival e gabava-se do jeito machista de ser.
Empossado, o que eram rusgas de comícios viraram ataques orquestrados à imprensa profissional, tratada como inimiga. Trump adotou como nenhum outro presidente ocidental uma postura belicosa em relação ao trabalho dos jornalistas profissionais. Como conhecidos autocratas mundiais, como o russo Vladimir Putin, o turco Recep Erdogan, o filipino Rodrigo Duterte, o venezuelano Nicolás Maduro ou seus aliados da casa real saudita, o presidente americano tentou desacreditar o trabalho de jornais, rádios, emissoras de TV e sites noticiosos independentes. Apelidou redes como a CNN de "fake news", em uma corrupção do real sentido da palavra, além de banir correspondentes do The New York Times e do The Washington Post das coletivas da Casa Branca. Ao longo de todo o mandato, comunicou-se pelo Twitter, esquecendo-se de que, na rede social, falava para seus seguidores e não para todos os americanos que deveria representar.
No campo internacional, retirou o país dos principais arranjos globais que o próprio país ajudou a erigir no pós-Segunda Guerra, desdenhando de acordos e consensos em nome de um "America First" que, a julgar pelas imagens desta quarta-feira e pela postura presidencial, não representa os verdadeiros princípios dos Estados Unidos da América e de seus pais fundadores.
Para pavimentar seu caminho rumo à reeleição, negou a gravidade da maior pandemia em um século, que já tirou a vida de 359 mil cidadãos de seu país. Na disputa com Joe Biden, desacreditou o processo eleitoral, alimentou rumores de fraude e insuflou seguidores de extrema direita, brancos em geral e muitos deles armados. No meio de tudo isso, aprofundou as divisões raciais, colocando-se como presidente "da lei e da ordem" e menosprezando a força e relevância do movimento Black Lives Matter em um dos momentos mais dramáticos e inaceitáveis da violência policial contra negros.
Trump construiu conscientemente este momento de tensão máxima ao longo dos últimos quatro anos, desacreditando o processo eleitoral, aproveitando-se da polarização, negando-se a reconhecer o resultado das urnas e criando uma história fantasiosa de que houve fraude. Tudo isso contribuiu para que a caixa de Pandora fosse aberta nesse 6 de janeiro de 2021.