Quatro semanas após ter a presença no segundo turno ameaçada por meros 2.441 votos, Eduardo Leite (PSDB) virou a eleição para o governo do Rio Grande do Sul e quebrou neste domingo (30) o maior tabu da história recente da política local, ao se reeleger amparado na escolha de 57,12% dos gaúchos. A inédita conquista da reeleição é o triunfo maior do tucano que, aos 37 anos, acumulou ousadias no governo e na campanha.
À frente de um Estado conservador na condução da economia e na pauta dos costumes, Leite privatizou estatais, reformou a carreira do funcionalismo, assumiu ser gay, renunciou ao cargo, tentou uma malfadada candidatura presidencial e descumpriu a promessa de não disputar um segundo mandato. Na atual eleição, superou ainda uma polarização nacional que cobrava posicionamento dos candidatos. Mesmo sem declarar apoio na eleição presidencial, Leite obteve 3.687.126 votos, 919.340 a mais do que Onyx Lorenzoni (PL).
Leite comemorou a vitória no comitê central de campanha, na zona norte de Porto Alegre. Com o resultado oficializado, ele surgiu diante da imprensa às 19h35min, após acompanhar a apuração ao lado da família, do vice Gabriel Souza e de aliados, como o governador Ranolfo Vieira Júnior. Vestindo calça jeans e camiseta branca com a inscrição "Agora somos todos nós por todos nós", Leite fez o primeiro pronunciamento como governador reeleito. Cercado por políticos da coligação, agradeceu aos apoiadores e fez um discurso conciliador.
— Essa terra quer a paz, quer a união, quer o respeito, O Rio Grande definitivamente falou mais alto nesta eleição.
Após os últimos compromissos da campanha, Leite viajou no fim da tarde de sábado para Pelotas, onde pernoitou. Pela manhã, concedeu entrevistas a emissoras de rádio e TV e votou em uma tradicional escola da cidade. Em seguida, voltou para a Capital a bordo de um jatinho KingAir, ao lado dos pais e do namorado, Thalis Bolzan. No comitê, reforçou o tom de conciliação política e agradeceu ao "voto crítico" do PT.
— Quero agradecer ao voto crítico do PT, que se não vem por convergência dentro da agenda e do programa que temos para o Estado, vem da convergência que temos em torno da democracia, do respeito e do diálogo que temos com os diferentes — afirmou.
— Tenho a consciência de que muitos votaram em nós mesmo tendo forte divergência com a nossa agenda para o Estado, mas votaram em nós pelo nosso respeito ao espírito democrático. Sou consciente de que seus votos não validam integralmente nossa agenda, o que reforça a necessidade que faça um governo ainda mais aberto ao diálogo. O Rio Grande nos deu uma grande vitória, mas não seremos governo para os 57% que votaram na gente, mas para 100% dos gaúchos — complementou.
A vitória de Leite foi construída após o susto tomado no primeiro turno. Embora tenha liderado todas as pesquisas até então, o tucano obteve 26,81% dos votos em 2 de outubro, ficando mais de 10 pontos percentuais atrás de Onyx e quatro centésimos à frente do terceiro colocado, Edegar Pretto (PT). O resultado foi um baque para o comando de campanha. Havia receio de uma virada de Onyx, mas em nenhum momento se cogitou tamanha dificuldade para chegar ao segundo turno.
Ao final da apuração, ainda atordoado, Leite falou rapidamente com a imprensa na porta da casa dos pais, em Pelotas, e adiou para o dia seguinte a entrevista coletiva que estava marcada para aquela mesma noite em Porto Alegre. Com a eleição presidencial extremamente polarizada e o PT gaúcho exibindo potencial para ser o fiel da balança no segundo turno, a o ordem no comitê era economizar palavras, principalmente diante dos sucessivos questionamentos sobre um eventual alinhamento nacional com Jair Bolsonaro (PL) ou Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Entre os estrategistas, a obsessão era entender o que havia ocorrido no primeiro turno. Para tanto, eles refizeram a pesquisa interna mais recente, finalizada três dias antes da eleição. Desta vez, porém, foram entrevistados apenas os eleitores que haviam garantido intenção de votar em Leite. Questionados em quem haviam efetivamente votado, 65% confirmaram o voto no tucano. Estava descoberta a sangria: em três dias, Leite perdera um terço dos votos.
Restava saber o que havia motivado a troca de candidato. As respostas eram as mais variadas, desde o pedido de um parente ao esquecimento do número. Mas uma situação se repetia: o sentimento majoritário de que Leite tinha vaga assegurada no segundo turno. A partir dessa impressão, na última hora 51% dos seus pretensos eleitores disseram ter votado em Pretto, alinhando o voto a governador com o dado a Lula e na intenção de tirar Onyx do segundo turno. Por outro lado, 38% disseram ter votado em Onyx, em coerência com o voto dado a Bolsonaro e na intenção de tirar Edegar da disputa.
As revelações da nova pesquisa clarearam o horizonte no comitê tucano, ampliando as explicações trazidas pela matemática. Como Onyx e Edegar haviam feito uma votação respectivamente abaixo das de Bolsonaro e Lula no Estado, era óbvio que Leite atraía eleitores de ambos os lados. A questão era como reter esse voto no segundo turno, recuperar o eleitor perdido às vésperas da eleição e ainda ampliar a votação o suficiente para vencer Onyx.
Por três dias, uma lei do silêncio imperou no comitê tucano. Leite e o vice Gabriel Souza pulavam de reunião em reunião, discutindo abordagem e estratégia. Havia uma pressão enorme para que se repetisse o tom adotado no segundo turno de 2018, quando Leite anunciou voto crítico em Bolsonaro.
O principal argumento era de que a esquerda não votaria no tucano, principalmente após as privatizações e reformas na carreira do funcionalismo levadas a cabo no governo. Como exemplo, esses conselheiros citavam a eleição de 2016, quando partidos de esquerda anunciaram apoio a Sebastião Melo (MDB) contra Nelson Marchezan (PSDB) na disputa pela prefeitura de Porto Alegre, mas a adesão não se confirmou nas urnas.
Gabriel ponderava que aquela havia sido uma eleição municipal, em cujo segundo turno o eleitor do PT não teve motivação para votar. Agora, Lula não só estava concorrendo como liderava uma militância constantemente mobilizada. Ao final de muita discussão, venceu a ideia de Leite declarar-se neutro na disputa nacional.
— Foi a decisão política mais difícil da minha vida — confidenciaria Gabriel a um interlocutor.
Com a decisão tomada, era preciso reposicionar a campanha. Para fugir à estratégia de Onyx de nacionalizar a eleição embalado na estética verde e amarela de Bolsonaro, Leite adotou as cores da bandeira do Estado e o slogan “O Rio Grande fala mais alto”. Cinco dias após quase ficar de fora do segundo turno, concedeu entrevista ao lado do governador, de parlamentares, secretários estaduais, prefeitos e dirigentes partidários, numa mobilização jamais vista no próprio comitê. Ao microfone, fez um discurso contundente, justificando a neutralidade com uma preocupação em “governar para todos”.
— Meu adversário quer discutir Bolsonaro ou Lula porque não tem ideias, não tem propostas, não conhece o Estado nem tem soluções, e quer um cheque em branco da população, e isso o RS não vai dar, porque aqui é o Rio Grande, não é um curral eleitoral. Foi forjado na luta, não no adesismo. Não vai ser com conversa mole, sem propostas, que nosso povo vai entrar numa canoa furada — disparou.
O episódio marcou uma inflexão na campanha tucana. Embora fosse o candidato mais visado pelos adversários no primeiro turno, Leite praticamente não revidara os ataques. Onyx, por exemplo, passou incólume. Leite decidira não bater no ex-ministro por entender que, num segundo turno, seria mais difícil enfrentar o PT, com a sobrecarga da pressão por aderir a Bolsonaro.
No segundo turno, não havia alternativa e Leite não deu trégua. Disposto a desconstruir o adversário, enfatizou seu uso confesso de caixa 2, atribuiu ao despreparo sua passagem por cinco ministérios e explorou o destempero dos aliados, como as agressões aos estudantes de Santa Maria e Pelotas e os próprios ataques homofóbicos que sofreu. Cada posicionamento era medido em pesquisas qualitativas diárias, para correção de rumo ou de intensidade.
Junto às investidas, Leite foi colhendo apoios. A despeito da defecção da ala bolsonarista do MDB, recebeu declaração de voto do PT, do PDT e do PSB, além do suporte de uma ala do PP e do Novo. Para capilarizar a campanha, municipalizou a propaganda, produzindo peças específicas e 497 vídeos, um para cada cidade gaúcha, com relatórios das obras e investimentos. Ao mesmo tempo, concentrou suas aparições na Região Metropolitana e nos maiores colégios eleitorais.
A certeza da vitória só veio na noite deste domingo, com a oficialização do resultado. Um episódio, porém, escancarou o otimismo nas hostes tucanas. Foi na terça-feira, quando Leite perguntou a Onyx, no debate da Rádio Guaíba, qual seria sua alternativa ao Regime de Recuperação Fiscal. A sequência de oito perguntas sem que o ex-ministro desse uma resposta efetiva viralizou nas redes sociais, tornando-se piada nacional. A partir dali, membros do comitê passaram a receber uma enxurrada de declarações de voto, sobretudo de bolsonaristas, decepcionados com a performance do candidato do PL.