Com mais de 8 mil páginas, o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Saúde foi aprovado pela manhã e apresentado em coletiva de imprensa na tarde desta segunda-feira (4), na Câmara de Vereadores de Caxias do Sul. As conclusões dos 160 dias de trabalho estão expostas em 125 páginas, nas quais os parlamentares apontam nove fatos que expõem as "maiores fragilidades" da saúde pública de Caxias do Sul, e indicam 41 pessoas para serem investigadas de maneira mais aprofundada pelo Ministério Público (MP), que receberá cópia de todo o relatório.
O fato mais grave, na avaliação dos 10 vereadores que compõem a CPI, foi a fraude na jornada de trabalho de médicos na UPA Central. Entre fevereiro de 2020 e julho de 2022, 7.766 horas foram registradas de forma irregular no ponto de médicos da unidadel. Cerca de R$ 1,3 milhão teriam sido pagos indevidamente pelo município ao Instituto Nacional de Pesquisa e Gestão em Saúde (InSaúde), que faz a gestão da unidade de saúde. Os profissionais envolvidos são sócios da empresa JC Serviços Médicos S/S, contratada pela gestora da UPA Central para prestar os atendimentos no local. Em 13 de novembro, em depoimento à CPI, a ex-diretora da UPA Central Ivete Borges, que comandou a unidade entre março e junho de 2023, confirmou as quase 8 mil horas extras irregulares, que seriam autorizadas com falsificação de carimbos e assinaturas.
— Nós observamos que um dos aspectos que mais causou tristeza foi a questão da fraude dos médicos, foi uma bofetada na cara da população. Foi no momento mais caótico que nós tivemos na saúde, de fragilidade mundial, em que muitas pessoas estavam procurando salvar suas vidas. Sabemos que os valores estão sendo devolvidos de forma parceladas, mas a gente quer responsabilizar as pessoas que fizeram (a fraude) — afirmou o presidente da CPI, vereador Rafael Bueno (PDT).
A coletiva de imprensa durou cerca de uma hora e meia, tempo usado pelos vereadores que integram a CPI para manifestarem suas opiniões a respeito dos trabalhos. O primeiro a manifestar-se na coletiva de imprensa foi o vereador Rafael Bueno, que avaliou positivamente o trabalho da comissão, afirmando que, a partir das investigações, foi possível "observar o caos, o precipício que está a saúde pública".
— Desde o início, a gente não quis achar culpados. A gente queria entender porquê a saúde está nesse ponto. Queremos olhar no retrovisor para que a gente possa num futuro breve trabalhar um novo rumo para a saúde pública de Caxias do Sul. O relatório foi elaborado pela pluralidade de ideias dos vereadores — destacou.
Na sequência, a relatora, vereadora Estela Balardin (PT), detalhou alguns números do trabalho da CPI, que resultaram nas mais de 8 mil páginas do relatório. Ela classificou a comissão como "importantíssima", antes de expor os nove fatos "que apresentam maior fragilidade" a respeito da saúde pública caxiense.
— Muitos pontos do relatório são em relação à UPA Central, porque é a que apresenta maiores fragilidades, tem muitos gargalos para serem resolvidos. Já a atenção básica não está elencada como um fato levantado, mas aparece na conclusão porque apareceu do início ao fim nas oitivas. Chega a até 80% dos atendimentos nas UPAs que poderiam ser realizados nas UBSs, mostra que a atenção básica precisa ser reformulada.
O relatório e as milhares páginas de anexos serão entregues ao MP para que investigue os fatos e as 41 pessoas apontadas no relatório. Segundo Estela Balardin, isso será feito pois não cabe à CPI fazer investigações criminais. O documento também será apresentado ao presidente da Câmara, vereador Zé Dambrós (PSB).
Resumo do relatório
Os números da CPI
- 160 dias — instalada em 3 de julho de 2023.
- 17 pessoas ouvidas, em mais de 53 horas de audiências.
- 41 documentos de diligências protocolados.
- Mais de oito mil páginas de processo.
Os fatos apontados
- Fraude no registro do ponto de médicos pediatras na UPA Central.
- Ilegalidade da subcontratação nas Unidades de Pronto Atendimento.
- Alta rotatividade no quadro de pessoal na UPA Central.
- Ausência de procedimento licitatório para gestão da UPA Zona Norte.
- Não cumprimento integral do Plano de Metas da UPA Central e fragilidade de fiscalização por parte do Poder Executivo.
- Indicadores de saúde divergentes dos parâmetros estabelecidos pelo Ministério da Saúde.
- Inauguração da nova ala do Hospital Geral sem condições de uso e descumprimento da Lei Municipal nº 8.888/22.
- Possível conflito de interesses no fornecimento de materiais para FUCS e para as obras do Hospital Geral.
- Atendimento materno-infantil na rede de saúde pública municipal.
As pessoas responsabilizadas
A responsabilização da CPI consiste em indicar para o MP quem poderia ser investigado na esfera cível ou criminal. Ou seja, não trata-se de uma acusação:
- 36 médicos sócios da JC Serviços Médicos, empresa que prestava serviço médico ao InSaúde na UPA Central. São estes médicos que teriam registrado 7.766 horas trabalhadas a mais no ponto. Um dos responsáveis, Jorge Mazzochi — que também é um dos nomes apontados —, disse ao Pioneiro em 15 de novembro que todas as horas pagas foram trabalhadas pelos profissionais. Mazzochi explicou que as notas fiscais de pagamento pelos serviços eram fiscalizadas por um fiscal da prefeitura, um fiscal do InSaúde, um diretor técnico e pela coordenadora do InSaúde, o que impossibilitaria que ele cometesse erros nos pagamentos.
- Ivete Borges, ex-diretora da UPA Central, pelos itens 1, 2, 3 e 5. Procurada, ela afirmou que “a efetiva explanação foi dada durante o decorrer do processo e teremos tempo para analisar com mais propriedade todos os apontamentos”. Em depoimento à CPI no dia 13 de novembro, Ivete confirmou as irregularidades, mas garantiu que o InSaúde rescindiu contrato com a JC Serviços Médicos assim que descobriu o caso. Ainda no depoimento, a ex-diretora da UPA Central afirmou que o InSaúde determinou, em 5 de agosto de 2022, a correção dos valores na nota fiscal enviada pela JC, que encaminhou nova nota, já com os descontos solicitados, em 15 de agosto de 2022.
- Nelson Alves de Lima, presidente do InSaúde, pelo item 2. Procurado, o setor jurídico do InSaúde não se manifestou até a publicação desta reportagem.
- José Quadros dos Santos, ex-presidente da Fundação Universidade de Caxias do Sul (FUCS), pelos itens 2, 7 e 8. Ele foi apontado por uma negociação em que poderia haver conflito de interesses, quando a fundação, durante a presidência de Quadros, comprou materiais de construção para a nova ala do Hospital Geral da empresa Serrana Materiais de Construção, que é do próprio Quadros. Procurado, ele reiterou suas manifestações durante oitiva à CPI da Saúde em 18 de outubro, quando afirmou que considerava "ética" a negociação entre as partes, já que não haveria "nenhum impedimento legal para que haja relação comercial com a Fundação, nem estatutariamente". Quadros também afirmou que a mesma prática é realizada com empresas de outros conselheiros da Fucs.
- Sandro Junqueira, diretor-geral do Hospital Geral, que teria inaugurado a obra da nova ala do hospital sem condições de uso, em descumprimento com a lei municipal 8.888/22, que proíbe a inauguração de obras públicas municipais sem condições de atender aos fins a que se destinam ou impossibilitadas de entrar em funcionamento imediato. A assessoria de comunicação do HG informou que Junqueira reitera o depoimento prestado à CPI, em 16 de outubro, quando explicou que "primeiro se constrói o prédio, depois fazemos a entrega, e só então que podemos pedir a habilitação no Ministério da Saúde". Segundo o diretor, o prédio estava pronto em 28 de abril, mas não foi ocupado porque faltava a autorização do governo federal. O primeiro paciente da nova ala foi internado em 22 de agosto, segundo Junqueira.
- Poder Executivo Municipal, pelos itens 1, 2, 3, 5 e 6. Em nota, a Secretaria da Saúde (SMS) reiterou que os fatos apontados pelo relatório da CPI já foram esclarecidos na documentação enviada à comissão e nas duas oitivas da secretária Daniele Meneguzzi. A respeito das horas médicas não trabalhadas, a SMS afirmou que a situação foi identificada antes da instalação da CPI no Legislativo, e que "foi realizado levantamento das horas, aberta possibilidade de defesa para o InSaúde e, quando comprovadas as irregularidades, o InSaúde foi inscrito em dívida ativa e notificado a devolver os valores".