Entre fevereiro de 2020 e julho de 2022, 7.766 horas foram registradas de forma irregular no ponto de médicos da UPA Central. Cerca de R$ 1,3 milhão teriam sido pagos indevidamente pelo município ao Instituto Nacional de Pesquisa e Gestão em Saúde (InSaúde), que faz a gestão da unidade de saúde. Os profissionais envolvidos são sócios da empresa JC Serviços Médicos S/S, contratada pela gestora da UPA Central para prestar os atendimentos no local. Esta irregularidade se tornou o tema central da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga a saúde pública da cidade na Câmara de Vereadores.
O Pioneiro teve acesso a uma lista, apresentada à SMS, com os nomes dos médicos, as respectivas horas irregulares e o custo gerado. O documento foi entregue à CPI da Saúde também. São 36 médicos, dos quais 26 fazem parte do quadro societário da JC. Um dos sócios-administradores e responsáveis pela empresa, o médico Jorge Benedito Mazzochi, é o segundo com mais irregularidades: são 924 horas extras registradas, que geraram um custo ilícito de R$ 168.312,00.
Na oitiva de segunda-feira (13), quem prestou depoimento foi a ex-diretora da UPA Central Ivete Borges, que comandou a unidade entre março e junho de 2023. Ela confirmou as quase oito mil horas extras irregulares, que seriam autorizadas com falsificação de carimbos e assinaturas.
— A direção solicitou uma conferência junto ao livro ponto e escalas de trabalho, em que foi identificada divergência de assinaturas pelo mesmo profissional. Diante disso, foi solicitada a busca de prontuários de atendimento pelo profissional escalado. Identificamos que em alguns horários havia assinaturas, carimbos, porém sem prontuários que pudessem comprovar atendimento, fato noticiado para a fiscal do contrato (entre InSaúde e prefeitura), Patrícia Mejolaro, representante da Secretaria (da Saúde, SMS). Tão logo teve ciência das irregularidades, o InSaúde rescindiu contrato com a JC — relatou Ivete.
Ainda no depoimento, a ex-diretora da UPA Central afirmou que o InSaúde determinou, em 5 de agosto de 2022, a correção dos valores na nota fiscal enviada pela JC, que encaminhou nova nota, já com os descontos solicitados, em 15 de agosto de 2022. Em entrevista ao Pioneiro, publicada em 11 de outubro, a secretária da Saúde, Daniele Meneguzzi, explicou que, ao receber a denúncia dos fiscais, determinou que se fizesse uma busca nos últimos dois meses (no caso, junho e julho de 2022) para verificar se as irregularidades eram recorrentes, o que ficou confirmado em notificação enviada pela fiscal do contrato à SMS em 9 de agosto.
— Neste momento, nós já notificamos o InSaúde a devolver o dinheiro que já havia sido pago nesses dois meses. Paralelo a isso, a gente determinou para a equipe que fizesse todo o retroativo desde o início da prestação de serviços dessa empresa à UPA Central, e aí que se chegou no R$ 1,3 milhão. Abrimos um processo de penalização e ressarcimento. As provas eram muito maiores. Nós, então, denunciamos a despesa e convocamos o InSaúde a restituir esse R$ 1,3 milhão — disse a secretária da Saúde, na entrevista.
Médico registrou 1.517 horas irregulares
- São 7.776 horas médicas registradas irregularmente, que geraram custo de R$ 1.314.533,98 aos cofres públicos e que já estão sendo ressarcidos pelo InSaúde.
- A lista com os médicos e as horas ilícitas tem 36 nomes no total. Os registros foram feitos entre fevereiro de 2020 e julho de 2022.
- A empresa JC Serviços Médicos S/S tem 51 profissionais no quadro societário. Destes, 26 fazem parte da lista entregue pela fiscal do contrato à SMS e pela prefeitura à CPI.
- A empresa foi aberta em 15 de março de 2013, registrada em endereço no Centro de Caxias. O CNPJ ainda está ativo.
- O médico com o maior número de horas irregulares acumulou 1.517 horas. O custo para os cofres públicos foi de R$ 231.770,00. Outro profissional registrou 645 horas, onerando o município em R$ 96.894,00.
Vereadores denunciam "escândalo"
Ao final da oitiva com a ex-diretora da UPA Central, Ivete Borges, o vereador Alberto Meneguzzi (PSB) disse, de forma exaltada, que considera a situação "escandalosa". Para o parlamentar, o fato de as horas irregulares terem sido registradas durante o período de pandemia é um agravante.
Identificamos que em alguns horários havia assinaturas, carimbos, porém sem prontuários que pudessem comprovar atendimento.
IVETE BORGES
Ex-diretora da UPA Central
— Começou isso justamente no período de pandemia, o que é pior. 2020 e 2021 no auge da pandemia, e os médicos ganhavam e não trabalhavam. As pessoas morrendo e o InSaúde não fazia nada. Apontou, apenas em agosto de 2022, que havia irregularidades, dois anos depois de um período de pandemia. É uma indignação contra o InSaúde pela falta de fiscalização, contra esses médicos. Sinceramente escandalosa esse tipo de situação. Dá náuseas ver esses números.
Na sessão da Câmara de terça-feira (14), o vereador e presidente da CPI, Rafael Bueno (PDT), também denunciou o que ele chamou de "escândalo com o dinheiro público".
— Se analisarmos as planilhas, teve um médico que trabalhou no mesmo dia 30 horas. Está aqui assinado. Esse se superou, ou alguém fez por ele. Foi feito um verdadeiro escândalo com o dinheiro público. Uma bofetada na cara do cidadão, dos trabalhadores da saúde e da classe médica. Apesar de um valor desviado estar sendo reembolsado aos cofres públicos, em favor da Receita Municipal, tivemos um crime. Quantas pessoas perderam a vida na pandemia, principalmente entre 2021 e 2022, por causa da falta de leitos, de medicação, de profissionais? Como vamos reparar isso? — questionou Bueno.
Contrapontos
Jorge Mazzochi e JC Serviços Médicos
À reportagem, Jorge Mazzochi negou qualquer irregularidade nas horas. Segundo o médico, todas as horas pagas foram trabalhadas pelos profissionais. Mazzochi explica que as notas fiscais de pagamento pelos serviços eram fiscalizadas por um fiscal da prefeitura, um fiscal do InSaúde, um diretor técnico e pela coordenadora do InSaúde, o que impossibilitaria que ele cometesse erros nos pagamentos.
— Quem trabalhava mais, ganhava por essas horas. Não tinha nada de desvio ou de horas. Como é que eu ia fazer uma nota com horas a mais, se tinham quatro pessoas que davam amém? Eu não podia fazer uma nota se não tivesse o aval. Só depois que eles davam o amém, e eu tenho os e-mails guardados, que eu fazia a nota — disse o médico, que também afirmou desconhecer os R$ 1,3 milhão cobrados pela prefeitura:
— Não tenho esse dinheiro, nem existe, nunca veio na minha conta. (Se existe) esse dinheiro, então alguém pegou. A mim, ele não veio — finalizou.
Prefeitura
Em nota, a SMS informou que o valor já começou a ser pago pelo InSaúde, em parcelas negociadas com a Secretaria da Receita Municipal. As restituições cobradas são de R$ 1.234.652,00, com uma correção monetária calculada em R$ 79.881,98. O total a ser ressarcido pelo InSaúde, portanto, é de R$ 1.314.533,98, que está sendo pago em 48 vezes sem juros. "Essa resolução ocorreu antes mesmo da abertura da CPI e seguiu o que prevê a legislação nacional", disse o texto enviado pela prefeitura.
InSaúde
Procurado, o InSaúde não retornou até a publicação desta reportagem.