Caxias do Sul será aquecida pela chama surdolímpica em exatos 30 dias. No dia 1º de maio começa a 24ª edição das Surdolimpíadas. Por duas semanas, os Jogos vão movimentar à Serra Gaúcha com a vinda de mais de 5 mil pessoas.
Os atletas brasileirão estão ansiosos. Nas redes sociais, eles postam imagens da convocação realizada pela Confederação Brasileira de Desportos de Surdos. O país contará com a sua maior delegação da história, com cerca de 320 surdoatletas. Para o presidente do Comitê Internacional de Esportes para Surdos, Gustavo Perazzolo (ICSD), essa Surdolimpíada carrega um sentimento especial. Pela primeira vez em 98 anos, a América Latina recebe o megaevento. E Caxias do Sul foi a escolhida, cidade natal de Perazzolo. Inicialmente, as provas seriam em 2021, mas foram adiadas pela pandemia.
— Na realidade não fomos nós que escolhemos. Tinha sido um outro país e foram sete cancelamentos. Naquele momento, estava como vice-presidente do ICSD e eu percebi que tinha essa negação de alguns países e fiquei pensando: sou caxiense e participei de muitas modalidades, de sul-americanos, pan-americanos, mundiais, todos aqui em Caxias. Com muita coragem, conversei com o pessoal da UCS e começamos a desenvolver esse movimento. Não tínhamos dinheiro e nada — explicou Perazzolo.
Caxias do Sul irá receber entre 70 e 80 países para os Jogos. A maior delegação é a da Turquia, com 357 integrantes, seguida do Quênia, que terá 355. Faltando apenas um mês para as provas, o presidente do Comitê não tem palavras para descrever esse momento. A ansiedade é um sentimento presente para receber todos os países.
— Me sinto ansioso para receber essas pessoas. É o momento que a nossa cidade e a região não conhecem tanto o que significa as Surdolimpíadas. Estamos com um dificuldade financeira, esse momento está mais complicado, mas vamos ter sucesso — declarou Gustavo Perazzolo.
EXCLUSÃO DA RÚSSIA E BELARUS
No final do mês de fevereiro, a Rússia invadiu a Ucrânia. Esse fato trouxe reflexos na edição dos Jogos. O conselho do Comitê Internacional decidiu excluir os atletas da Rússia e Belarus. O país de Putin tinha a maior delegação até então, com 456 participantes. Perazzolo reconhece que a decisão foi fácil de ser tomada.
— Foi sofrido, por uma questão de empatia. Eles treinaram por quatro anos. Se perdeu em um sonho. Foi muito difícil para mim, me senti muito desconfortável. Torço para que isso tudo se dissolva e na próxima Surdolimpíada fique tudo bem — desejou o presidente do Comitê Internacional de Esportes para Surdos.
Devastada pela guerra, a Ucrânia ainda não deu 100% de garantia que vem a Caxias do Sul. A delegação é composta por 320 profissionais. Segundo Perazzolo, a cidade está pronta para receber os surdoatletas dos país do leste europeu. Por outro lado, a exclusão russa gerou reflexos financeiros. O Comitê Internacional decidiu cortar a modalidade do boliche, pois necessitaria de um investimento superior a R$ 1 milhão com a construção de 16 pistas nos Pavilhões da Festa da Uva.
— Foi algo polêmico, muito difícil também. Era o maior investimento. O Brasil não tem culturalmente a prática do boliche. A gente havia acordado um valor. Perdendo também a equipe da Rússia e Belarus impactou muito. Em um acordo, vamos adiar essa modalidade para fazer em outro país onde a cultura é mais forte — argumentou o presidente do Comitê Internacional de Esportes para Surdos.
DISPUTA PELA SEDE E LEGADO
O presidente do ICSD revela que foram inúmeros desafios até a confirmação dos Jogos no Rio Grande do Sul. Nos bastidores da política brasileira houve uma movimentação para que a Surdolimpíada fosse realizada em uma capital, como Brasília ou Rio de Janeiro. Contudo, venceu a determinação de quem sempre lutou pelo esporte surdo.
— Não vou te contar todos os desafios, com tantos problemas (risos). Mas senti muito vitorioso por trazer para Caxias, tive alguns desentendimento e concorrências entre Brasília e Caxias, depois Rio de Janeiro e Caxias. Foi bem disputada, e Caxias se manteve firme como cidade sede. Teve envolvimentos políticos, pensando que talvez Caxias não tinha essa estrutura, querendo levar os Jogos para capital Brasília ou Rio de Janeiro que são grandes sedes, mas nós aqui nos mantivemos firmes, porque temos uma grande estrutura para fazer o evento — confessou Gustavo Perazzolo.
Na visão do presidente, a cidade não perde nada em infraestrutura esportiva. Caxias é a única da Serra com 16 ginásios com metragem oficial correta. Nem Porto Alegre possui tal estrutura.
— Fica como legado Caxias como o maior espaço de esportes do Rio Grande do Sul. O tiro esportivo, teremos alvos eletrônicos, o único lugar do Brasil com esses equipamentos. O Rio de Janeiro tem, mas está dentro do quartel militar. Teremos dentro de um clube e os surdos terão acesso — explicou.
Além do legado estrutural, existe um que não se pode mensurar, o reconhecimento da Serra Gaúcha e suas potencialidades mostradas ao mundo. Na visão de Perazzolo, é uma oportunidade para também fomentar a língua de sinais para se tornar uma prática usual na rotina da cidade. A empatia é o primeiro passo para transcender a barreira da comunicação.
EXPERIÊNCIA
A alegria do presidente em falar deste momentos histórico é refletida no olhar. Ele celebra ainda o fato de ser a primeira Surdolimpíadas transmitida ao vivo pela internet, através da Deaflympics Tv by XPlay. A iniciativa de ter uma Praça Surdolímpica nos Pavilhões da Festa da Uva é outro elemento de exaltação.
— É um marco da história, mais um. Nunca se teve uma situação assim, um espaço. Uma inclusão de duas comunidades, os atleta, o público e as famílias convivendo em uma mesmo espaço — vibrou Gustavo Perazzolo.
O atual presidente do ICSD carrega uma experiência de anos como atleta e coordenador trabalhando em outros comitês. Ele tem sete Surdolimpíadas. Essa bagagem é um dos diferenciais para traçar as estratégias de execução dos jogos. Ao longo do tempo, Perazzolo coletou informações para minimizar ao máximo a possibilidade de erros.
— Tenho uma experiência muito grande em diferentes culturas, locais e estratégias usadas em outros comitês, como questão de transporte e comunicação. Então, fui coletando as informações e ajustando para que em Caxias não aconteçam essas coisas negativas — expôs Perazzolo.
PRECONCEITO
Gustavo Perazzolo também fez questão de falar de um momento difícil, o preconceito sofrido quando era criança. Eram muitas limitação e o esporte não era valorizado como hoje. Ele recorda do apoio da família.
— Meus primos, ouvintes, e meu irmão, eles sempre me motivavam, brincávamos de se esconder, me chamavam para jogar futebol e isso foi uma evolução. Depois no Recreio da Juventude tinha o Professor Eduardo Fonseca me incentivando. Ele me motivou dizendo que era capaz e que meu futuro seria no handebol — observou Perazzolo.
O ex-atleta lembra que na época, alguns colegas não lhe passavam a bola ou não entendiam qual era o seu papel. Assim, ele decidiu participar de esportes individuais. Segundo Perazzolo era um desafio pessoal. Depois, fez natação, atletismo, ciclismo e virou triatleta. A barreira da comunicação sempre esteve presente. Na década de 1980, quando criança, a inclusão era mais difícil. Contudo, ele nunca esquece do incentivo familiar.
— Meu avô usa uma palavra muito forte. No meu primeiro campeonato de tiro de prato, meu avô me deu a arma e disse "vai treinar". Qual é a diferença, meu avô falou. E eu consegui acertar vários pratos e aquilo chamou atenção de muitos ouvintes que me dando parabéns. Aquilo fez eu ver que sou capaz. Esse foi um grande marco e comecei a incentivar outros surdos e colegas — lembrou Perazzolo.
O desejo de participar de uma Surdolimpíada veio quando tinha 13 anos. Em 1992, nos Jogos Olímpicos de Barcelona, Perazzolo colocou como objetivo de vida estar em uma Olímpiada. Ele conta que ficou muito feliz ao saber que havia uma competição exclusiva para os surdos.
— Fui treinando anos e não dando certo por questões como financeira, não tendo patrocínio, foi uma dificuldade grande. Quando consegui o valor, tirei do meu bolso. Eu coloquei como meta e fui em Taipei, Taiwan 2009. Infelizmente não tive medalha, mas estar lá e participar de uma Surdolimpíada foi como ganhar uma medalha de ouro — guarda com carinho o atual presidente do Comitê Internacional de Esporte para Surdos.
Por fim, Gustavo Perazzolo deixou uma mensagem aos surdoatletas que estarão nos jogos de Caxias do Sul:
— Primeiro, estou torcendo para que todos treinem bastante, que se desafiem e realizem seus sonhos. Segundo, quero que todos sejam tratados com amor, que toda cidade e região conheçam o esporte surdo, que tenham empatia —finalizou.