Há diversas formas de sentir as sensações da vida. Observamos os detalhes do mundo não apenas com os olhos. É possível enxergar com o toque ou falar com o olhar. A mesma mão que afaga, se comunica pelos sinais. Conseguimos sentir o abstrato, como o vento.
A vida é mais simples do que pensamos. Para quem não tem receio de encarar a vida como ela é, não existem barreiras. A força de vontade supera qualquer medo de ser feliz. Força essa que vem dos braços de Guilherme Maia, 32 anos. O nadador é o maior medalhista do Brasil em Surdolimpíadas. De suas mão vieram a histórica medalha de ouro, única do país nos Jogos.
O surdoatleta está em Caxias do Sul há dois meses e iniciou uma preparação especial para a 24ª edição das Surdolimpíadas. Ele tomou a iniciativa de treinar na cidade que receberá os Jogos entre 1º e 15 de maio. Com o trabalho da intérprete Tatiana Nascimento, da Semearhis, Maia conversou com o Pioneiro. Um dos motivos para trocar de cidade foi o fato de não querer treinar sozinho.
— Antigamente, treinava sozinho e era muito difícil. A comunidade ouvinte e a comunidade surda têm uma dificuldade de comunicação. Recebi a proposta do treinador Régis e do Recreio da Juventude e decidi vir trabalhar aqui em Caxias do Sul. Cheguei há dois meses e estou conhecendo ainda a cidade — contou o nadador.
O profissional realiza oito sessões de atividade por dia na piscina coberta do Recreio da Juventude na sede Guarany. Ele celebra a integração e a troca de experiências muito positivas com os alunos do clube.
ÚNICO MEDALHISTA DE OURO
Maior atleta brasileiro nesses 98 anos de Surdolimpíadas, Maia foi o único a subir no lugar mais alto do pódio. Em 2017, na Turquia, conquistou a inédita medalha de ouro, nos 200 metros livre, uma façanha comemorada até hoje.
— Sempre quero mostrar que o surdo é capaz de fazer esporte com foco e desenvolver o seu trabalho. Na Turquia, participei e consegui duas medalhas. Uma de bronze e uma de ouro. No total de medalhas olímpucas são cinco: três bronze, uma prata e uma de ouro — destacou o nadador.
Maia revela que foram oito anos de trabalho até chegar na medalha de ouro. O peso da conquista é refletida no orgulho de estar na história. Segundo ele, o mais importante é mostrar que os surdos têm capacidade e podem ser grandes atletas. O Brasil tem dez medalhas na história em Surdolimpíadas, sendo uma de ouro, uma de prata e oito de bronze. O detalhe é que Maia trouxe metade dessas conquistas, desde 2013.
:: Surdolimpíadas Bulgária (Sofia) - 2013
Prata - Guilherme Maia - Natação 100m livre
Bronze - Guilherme Maia - Natação 200m livre
Bronze - Guilherme Maia - Natação 200m borboleta
:: Surdolimpíadas Turquia (Samsun) - 2017
Ouro - Guilherme Maia - 200m livre (recorde olímpico da prova com 1:52.55)
Bronze - Guilherme Maia - 100m livre
O nadador também participa das Surdolimpíadas Nacional. Entre os competidores do país, ele tem seis medalhas de ouro. Já durante participações em Sul-Americanos são 15 medalhas (12 de ouro e 3 de bronze). Em Mundiais, o atleta tem oito conquistas, com três de prata e cinco de bronze.
NATAÇÃO VEM DE BERÇO
Os primeiros mergulhos foram poucos meses após nascer. Com um ano, sua mãe já lhe colocou na água. A irmã, Beatriz, foi mais cedo para a natação, com apenas quatro meses. Professora de natação, Andrea Maia incentivou os filhos e o resultado veio cedo.
— A minha mãe, quando estava gravida de mim, já era professora de natação. Ela me incentivou e começou a fazer esse treinamento comigo. Com quatro anos, consegui a primeira medalha, em 1993 —descreveu Guilherme Maia.
O apoio da mãe não foi apenas para superar os adversários das piscinas. Maia já nasceu sem audição, e ainda quando criança passou por diversos exames. Entretanto, ele não lamenta o fato de não ouvir e diz ter muito orgulho de ser surdo. Junto com os primeiros concorrentes das provas, o jovem teve de encarar um inimigo da vida, o preconceito.
— Na escola, sofri demais, muito preconceito e bullying. Então, eu conversava com a minha mãe quando chegava em casa e ela falava que eu não poderia desistir, que tinha que mostrar que era capaz. Ela sempre me apoiou. Na faculdade, foi um pouco mais difícil. Era muito aprendizado, coisas diferentes. Hoje, sou formado em educação física — destaca o nadador.
Maia costuma dizer que a vida não vem com manual, mas vem com uma mãe. Andrea não apenas lhe ensinou as primeiras braçadas, mas também foi o amparo necessário para superar o preconceito. Ela revela ter sido um período muito triste:
— Nunca deixei ele encarar como um "defeito". Eu dizia que os aparelhos eram como um óculos nas outras crianças. Foi um momento muito difícil para mim como mãe. Chorei muito. Ele entendia, mas no dia seguinte as crianças faziam chacotas novamente — relembra Andrea.
A mãe do nadador lembra de um diálogo divisor de águas. Esgotada com o sofrimento do filho, ela recorda ter fixado o olhar nos olhos do filho pequeno e obteve uma promessa do garoto.
— Não chore! Você é filho de Andrea Maia e a sua mãe nunca desiste e nunca vai desistir de você. Você nunca irá desistir de me dar o maior troféu da natação, de campeão mundial. Você nunca irá desistir da sua vida, de lutar sempre. Promete ? — recorda Andrea.
Após engolir as lágrimas, o pequeno menino levantou a cabeça e respondeu:
— Eu prometo mãe, e esse será o nosso sonho. Eu vou trazer o 1º lugar do pódio para você — relembra a mãe.
Atualmente, Andrea é dentista no município de Santos-SP. Na última Surdolimpíada, ela não conseguiu viajar para torcer presencialmente pelo filho. Através da televisão, vibrou com a medalha de ouro.
— Até hoje eu me emociono. Não estava lá, nunca consegui ir junto. Era muito difícil conseguir verba para ele, imagina para mim. Fazia rifas e pedia ajuda para amigos, pacientes e empresas. O dinheiro era contadinho. Eu assisti pela TV a vitória. E pela primeira vez a intérprete cantou o hino em libras, emocionadíssima também — contou Andrea.
RECADO ESPECIAL
Quando se mudou para Caxias do Sul no começo do ano, o nadador veio acompanhado da mãe. No dia 14 de janeiro, Maia iniciou os treinos no Recreio da Juventude. A tecnologia encurta a distância para amenizar a saudade. O Pioneiro pediu um recado especial da mãe para o filho.
— Treine com toda a sua garra. Tenha força, fé e muita determinação. Quando estiver exausto treine mais e mais. Nosso sonho se realizou com o ouro. Então, agora, o desafio é o bicampeonato. Estarei aí desta vez nas arquibancadas, orgulhosa de você meu filho. Não esqueça de arrebentar a borda da piscina, na batida com a mãos na chegada! Amo você filho! —declarou Andrea Maia, que também é formada em Educação Física.
DIFICULDADES DE UM SURDOATLETA
Nem a medalha de ouro inédita na última Surdolimpíada fez Guilherme ter o apoio financeiro e o reconhecimento que a conquista merece. Após o pódio, muitas promessas, mas as palavras se perderam no tempo.
— A gente sempre passa por momentos difíceis. Eu tenho patrocínio de vitaminas e sungas, mas no esporte ainda estou lutando para conseguir um patrocinador. Quando consegui a medalha na Turquia, foram muitas promessas e nenhum patrocínio. Não quero desistir, quero continuar nessa luta, com esse foco. São promessas, é um sofrimento, mas vou lutar — desabafou o nadador brasileiro.
Enquanto a iniciativa privada demora em dar uma resposta, vem do poder público o auxilio essencial para manter o sonho e as medalhas. Maia tem um apoio importante da Prefeitura de Santos através da Fundação Pró-Esporte de Santos. Inclusive, ele recebeu o prêmio Melhores do Esporte de Santos na temporada de 2021. Por outro lado, ele não pode participar do Bolsa Atleta, programa do governo federal de incentivo aos competidores de alto rendimento, como dos jogos Olímpicos. Atualmente, são pagos R$ 3, 1 mil por mês para atletas Olímpicos e Paralímpicos. Já a categoria Atleta Pódio recebe R$ 15 mil por mês. O Projeto de Lei 330/2020, para a inclusão dos surdos, ainda tramita no congresso nacional, mas está longe de um desfecho positivo.
— É muito importante conseguir a bolsa do governo brasileiro. Antigamente, tínhamos bolsa, mas foram cortadas e não conseguimos mais. É um processo que está parado, não tem aprovação da lei. Estamos esperando liberar para termos um apoio — resumiu Maia.
O atleta também se posicionou quanto às exclusões da Rússia e Belarus desta edição dos Jogos devido à invasão na Ucrânia. A iniciativa foi tomada pelo Conselho do Comitê Internacional de Esportes para Surdos no dia 5 de março. Nenhum surdoatleta, de ambos os países, está autorizado a participar da 24ª Surdolimpíadas. O pedido da comunidade desportiva é de paz.
— Neste momento de guerra é impossível eles participarem. A Rússia tem a maioria dos atletas. Eles foram suspensos junto com Belarus, é um momento difícil, mas nós atletas queremos paz entre os países agora — clamou o nadador.
DE SÃO PAULO PARA A SERRA GAÚCHA
Por enquanto, na estrada de Santos, Maia não vai mais passar. Porém, ele nasceu no lugar certo, pois como diria o Rei Roberto Carlos, "a velocidade anda junto a mim". O nadador foi mais rápido das piscinas na Turquia quando bateu o recorde mundial nos 200 metros livres, com tempo de 1min 52s 55.
Personagem importante na vinda de Guilherme Maia ao Rio Grande do Sul, o técnico Régis Mencia trabalha no Recreio da Juventude desde 2021 e classifica como uma oportunidade única estar auxiliando o nadador nesse planejamento de treinos.
— O Guilherme é um atleta que tem um nível de resultado bem importante. Ele é o atual recordista mundial na provas dos 200 metros livre. Nosso foco nesses dois meses é de colocá-lo nas melhores condições para estar no pódio, e que seja o maior medalhista das Surdolimpíadas de todos os esportes — projetou Mencia.
O profissional já trabalhou como head coach de outro campeão olímpico, César Cielo. As curvas do destino os trouxeram à Serra Gaúcha. Faltando pouco mais de um mês para os jogos, o treinador, natural de São Paulo, detalha o planejamento de treinos. Agora, o foco são os trabalhos específicos para o desenvolvimento de força, velocidade e ritmo.
— Guilherme tem cinco pódios em todas as Surdolimpíadas que já participou. Em mundiais ele não tem esse desempenho. Ele foi convocado e eu também pela Confederação, como técnico. Já vai ser um desafio em oito dias fazer cinco provas. A preparação é para superar o maior número de medalhas que ele já teve — comentou o treinador de Guilherme Maia.
Com 28 anos de carreira, Mencia torce para que o seu atleta quebre mais um recorde mundial em Caxias do Sul. Ele vê como ponto positivo o fato de estar treinando na mesma piscina onde as provas serão realizadas.
— Acho uma vantagem tremenda. Dele estar aqui, conhecer cada espaço, estar ambientado e saber o seu momento de se retrair para ter a sua hora de concentração e mentalização de prova. Então, ele vai ter essa condição. E sendo um atleta da casa tem o apoio de todas as pessoas — destacou o treinador Régis Mencia.