Ponto de hospedagem, refeições e reuniões sociais e políticas nos primórdios do século 20, o antigo Hotel Pelizzari - nas cercanias da Praça Dante Alighieri, em Caxias do Sul - também foi cenário para um episódio envolvendo “fake news”. Sim, calúnias, difamações e notícias falsas sempre existiram, sob as mais diversas formas e denominações.
A primeira menção ao ocorrido apareceu na seção “Diligências Policiais”, publicada pelo jornal “O Brazil” em 26 de fevereiro de 1910. Foi quando noticiou-se o sucídio da funcionária Ernesta Barbieri, 17 anos, encontrada morta após a ingestão de uma forte dose de arsênico.
Responsável pelo caso, o delegado de polícia Francisco Salerno ouviu as testemunhas - proprietários do hotel, criadas e hóspedes - e concluiu que a jovem tinha posto fim à existência em um momento de desespero, no dia 16 de fevereiro de 1910. A “fake news”, porém, começou no dia seguinte, conforme o texto original publicado pelo jornal “O Brazil”:
“A 17 (de fevereiro), o delegado recebeu denúncia de que Ernesta, achando-se em estado de gravidez, se propinara um medicamento abortivo e que, devido a engano na dosagem, deu causa ao envenenamento. Imediatamente, o delegado de polícia abriu rigoroso inquérito, mandando proceder a autópsia no cadáver, que teve lugar dia 18 no cemitério público desta vila. Os peritos nomeados, doutores César Merlo e Luiz Cardelli, após o necessário exame, declararam que Ernesta não estava e jamais esteve grávida”.
CARTA ANÔNIMA
O caso “esfriou” nos meses seguintes, até que uma correspondência anônima enviada de Caxias e publicada pelo jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, buscou atingir o delegado responsável pelo caso. A história foi tema da coluna “Esmagando a calúnia”, publicada pelo mesmo jornal “O Brazil” em 3 de setembro de 1910, conforme texto original abaixo:
“O nosso apreciado colega Correio do Povo, de Porto Alegre, publicou, em sua edição de 31 de agosto, uma longa correspondência de Caxias, em que se procura ferir essencialmente a personalidade do nosso devotado amigo Francisco Nicolau Salerno, delegado de polícia. Trata-se, nesse caso, como seria fácil demonstrar, de uma campanha de difamação, ingrata, aviltante, em que tem sido já experimentados os processos mais baixos, sem exclusão da carta anônima. Faltava unicamente, aos “remendões” de Caxias, a publicidade escandalosa das calúnias desprezíveis com as quais pretende alcançar o desprestígio de uma autoridade enérgica, modesta e cumpridora dos seus deveres. Veio a correspondência ao “Correio”, vazada nos moldes torpíssimos dos comunicados anônimos que constituíam a glória jornalística do Palma Cavalão”.
A saber: no romance “Os Maias”, de Eça de Queiroz, o personagem Palma Cavalão é o redator corrupto do jornal “A Corneta do Diabo”, especialista em maledicências, escândalos e picuinhas.
EXUMAÇÃO DO CADÁVER
O texto “Esmagando a calúnia”, de 3 de setembro de 1910, buscou esclarecer e extirpar qualquer dúvida em relação ao trabalho conduzido pelo delegado Francisco Salerno:
“Não valeria a pena rebater pela imprensa as imputações caluniosas do referido comunicado, visto como a verdade há de surgir, luminosa e esmagadora, quando os rabiscadores forem chamados a contas, perante quem de direito.Entretanto, como uma satisfação imediata à sociedade caxiense e ao público em geral, vamos destrinchar os fatos arguidos no negregado escrito, em que é frequentemente invocado o testemunho furtivo do “Zé Povinho” e dos “filhos da Candinha”.
Ocupa-se o missivista, em primeiro lugar, do suicídio de Ernesta Barbieri, joven empregada do hotel Pellizzari. Como os leitores recordam, varias versões surgiram acerca da causa determi-nante do suicídio e do modo por que este se consumou. Entre outras afirmações, sem fundamento seguro, dizia- se que Ernesta fora seduzida por hóspedes daquele hotel e que preferira morrer para ocultar a sua desonra, prestes a evidenciar-se, pois que a infeliz estava grávida. Imediatamente, sem a menor sombra de vacilação, o delegado abriu rigoroso inquérito e mandou proceder a exumação do cadáver, pelos drs. Cesar Merlo e Luiz Cardelli, que constataram apenas o defloramento.
Todas as providências cabíveis no caso foram tomadas, sendo as vísceras remetidas em tempo para o laboratório, a fim de ali serem examinadas. Ainda não recebeu a delegacia o resultado desse exame, para remetê-lo com o inquérito à Promotoria Pública da comarca. Mentiu, pois, descaradamente, o missivista anônimo quando disse que a autoridade pôs uma pedra em cima de suas investigações. Outra invencionice revoltante é a referencia que faz o correspondente ao suicídio de uma menor, criada de conhecida familia residente na Caipora (bairro Lourdes). A autoridade agiu, desde logo, com inteira correção, sendo falso que o atestado de óbito fosse dado a registro depois de o cadáver ser sepultado.
Refere-se ainda o despudorado ao presumível assassinato de Luiz Franchi, cujo cadáver foi encontrado no poço do Hotel Bersani (foto acima). Não é tudo: a correspondência irroga censuras ao delegado pelo malogro das diligências policiais e também quanto ao atentado covarde de que foi vítima o caixeiro-viajante sr. Otto Müssnich, gravemente ferido numa emboscada, na estrada que vai ter a Bento Gonçalves. Toda a população pode dar testemunho da solicitude e do zelo empregados pela delegacia para a descoberta dos autores do atentado. Finalmente, narra o comunicado, dando-lhe forma romanesca, com detalhes intencionais, os delicados motivos íntimos que induziram Maria Moré a atentar contra a existência.
Melhor seria que tais minudências não viessem a lume, à hora presente, agravando-se, por essa forma, o infortúnio de uma pobre moça, que devia merecer nossa piedade e nosso respeito. Não menos desastrado foi ainda o articulista. O procedimento do delegado foi corretíssimo, conforme verificou o subchefe de polícia, sr. coronel Álvaro de Moraes. Nenhuma formalidade legal foi omitida.
O sr. Chefe de Polícia está, de resto, perfeitamente a par de todos esses fatos, constatando a correção com que se tem conduzido, no exercício do cargo, nosso amigo e estimado patrício Francisco Salerno. Os caluniadores remendões hão de ser, oportunamente, chamados a contas. Cairá, então, sobre eles, inexorável e esmagadora, a merecida punição: o desprezo público”.
A saber: a Chefia de Polícia informou, conforme texto publicado no jornal “A Federação” de 5 de outubro de 1910, que “a autoria do defloramento, infelizmente, apesar do inquérito aberto e demais investigações, não foi possível apurar-se”.