Concha acústica, bancos, reforço na iluminação, banheiros públicos, praça com fonte d’ água... Se tudo isso sair do papel, a área da Estação Férrea de Caxias do Sul ruma para se transformar em um dos pontos mais nobres de lazer e convivência da comunidade.
Mas, enquanto o projeto de revitalização aguarda pelos interessados em assumir as obras (os envelopes serão abertos em 5 de agosto), retornamos ao cotidiano dos vagões de exatos 100 anos atrás. Foi quando o jornal caxiense "A Vanguarda" — cujas redação e oficina localizavam-se na então Rua Júlio de Castilhos, 103 — publicou a deliciosa crônica A senhora que perdeu o marido e as atribulações do gerente da estação.
Verídico ou semi-fictício e, infelizmente, carente de autoria, o texto da edição de 23 de outubro de 1922 é um primor em detalhes e curiosidades, uma “viagem” pelo cotidiano de quem se deslocava de trem pela Serra Gaúcha naqueles tempos.
A saber: o cenário do relato abaixo é a Estação Ferroviária de Montenegro (foto) – inaugurada em 1909 e cuja linha foi estendida a Caxias do Sul no ano seguinte, 1910.
Peripécias na Estação Ferroviária de Montenegro
“Quanta coisa se perde nos vagões da estrada de ferro. Os empregados e mesmo os passageiros encontram sobre os bancos brinquedos de crianças, pequenas gaiolas com pássaros, bengalas, máquinas fotográficas, livros, chapéus e jornais às dezenas. Mas um marido jovem de carne e osso? Pois foi perdido um, em Montenegro, e procurado afanosamente com o auxílio de pessoas desinteressadas.
Foi num dia desses que o agente da estação viu aparecer à porta do gabinete o rosto convulsivo de uma senhora. Era uma senhora jovem e graciosa, tímida e desembaraçada, que, convidada a entrar e expor o seu caso, despregou a língua e contou. Vinham juntos de Porto Alegre para Caxias, numa viagem de núpcias, e ao chegarem naquela estação (Montenegro), o marido saiu para ir ao buffet e perdeu-se. Ela ficou só, com as valises, a esperá-lo. A princípio, pacientemente, depois, com certa inquietação.
Passado algum tempo, o trem se pôs em movimento, sem o sinal da campainha ou do apito. Mas alguém que se achava perto tranquilizou-a, dizendo que se tratava de uma simples manobra e que ia entrar no desvio. Entraram pelo desvio, e o marido, nada. Então, a moça inquietou-se. Se ele não tivesse voltado à estação, como poderia achá-lo? Pobre esposinha. Ela viu fecharem algumas portas e acorrerem viajantes, e soube que a partida estava iminente. Não pode resistir: apanhou as valises e correu ao encontro do chefe da estação, a fim de pedir-lhe que ajudasse a encontrar o cônjuge perdido.
O chefe da estação, curioso e sensibilizado, disparou do escritório, pôs o boné vermelho e seguiu a senhora. Correram até os ferroviários e passageiros que tinham presenciado a história. O marido foi procurado no buffet, onde já não se achava; nos gabinetes, onde ninguém o tinha visto; na cigarraria, no restaurante, nos outros trens, até nas dependências das bagagens. Nada.
Entretanto, o trem para Caxias ia pôr-se em marcha. A esposa foi aconselhada a resignar-se e partir. Seguisse ela com as valises. O marido seguiria depois em outro trem. A moça saiu lacrimosa e amedrontada, mas ao chegar no corredor do carro, eis que encontra o marido, que a procurara ansiosamente e que, debalde, tinha devassado todas as toilettes.
Os presentes ouviram os “ohs” recíprocos dos esposos que, depois de tantos sustos, se haviam encontrado de novo, rindo de malícia e de satisfação. Mas o marido, sabendo dos acontecimentos, quis agradecer-lhe (o chefe da estação) carinhosamente: meteu a cabeça pela janela. Sem refletir que havia uma vidraça, bateu com a testa, quebrando-a e cortando a face. E o trem partiu, levando num de seus carros um rosto ensanguentado.
O agente da estação, quando deste fato, acrescenta que foi a única vez que viu um marido reclamar a mulher perdida e agradecer a quem a encontrou.
PROTESTOS
E já que falamos no agente da estação, não é de todo inoportuno mostrar as amofinações que enchem o dia do modesto funcionário procurado pelo jovem esposa que havia perdido o marido. Ei-lo no seu gabinete, que julga e manda, conforta e ilumina, provê, dá audiência entre duas telefonadas e quatro telegramas de serviço, berra e sorri, enfurece e se acalma em cinco segundos.
Chegam cobradores e viajantes para discutirem uma insignificante multa imposta e recusada; chegam cavalheiros graves que queriam fazer viajar de graça um cachorrinho e que foram surpreendidos por ter o bicho rompido o papel de embrulho e apresentado a cabeça; e um menino de idade duvidosa — dois anos e 10 meses, declara o pai —, que não quer pagar a passagem. Quatro anos no mínimo, declara o cobrador, que é pai de numerosa prole e quer zelar pelos interesses da estrada. Interrogado, o menino revela, ingenuamente, os seus três anos e meio e é afastado pela mãe furiosa, enquanto o pai, resmungando, abre a carteira.
Enfim, é um sujeito que reclama um compartimento reservado; outro que explica ter trocado, por engano, com o amigo que o acompanhou à estação, o bilhete do trem por uma senha de ingresso... São as atribuições do chefe da estação. E para acumulá-las, naquela desagradável manhã, aparece-lhe uma jovem para reclamar o extravio de... um marido.” (Jornal A Vanguarda, 23 de outubro de 1922)