Os diretores da regulação estadual da Secretaria Estadual da Saúde (SES-RS), os coordenadores da central de atendimento do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), dois médicos reguladores e o enfermeiro que repassou as informações do caso ao Grupo de Investigação (GDI) do Grupo RBS foram apontados como responsáveis pelo escândalo do descumprimento de horários na central estadual do Samu em Porto Alegre, em sindicância do governo do Estado. Os dados constam em relatório de quase cem páginas obtidos pelo GDI — toda a sindicância tem quase 1.500 páginas de apuração. No início deste ano, Processos Administrativos Disciplinares (PADs) foram abertos contra parte destes responsabilizados.
Foram ouvidas durante o processo 33 pessoas, a maioria formada por médicos reguladores suspeitos de descumprir o horário, além de diretores, coordenadores e enfermeiros que tinham atuação direta ou indireta na central estadual do Samu localizada na Capital. A unidade atende ligações de centenas de municípios gaúchos. O relatório ainda buscou apurar outras situações citadas na série de reportagens veiculadas desde agosto do ano passado pelos jornais do Grupo RBS. Entre elas, estão o envio de uma escala falsa ao Ministério da Saúde, com médicos que não atuavam no Samu cadastrados como se o fizessem, o uso de meios ilegais para permanecer logado no sistema, como colocar uma garrafa de água sobre o teclado do computador, e a ausência de médicos reguladores na mesa durante cerca de meia hora.
Muitos dos reguladores ouvidos confirmaram que cumpriam parte da carga horária em casa, em regime chamado por eles de "sobreaviso". Esta combinação teria surgido no início da pandemia, para evitar aglomeração de médicos na central. Segundo os profissionais, mesmo após o fim da crise sanitária, o combinado permaneceu. Isso, segundo eles, por não haver comunicação clara da chefia para que os médicos voltassem e cumprir horários oficiais da escala presencialmente. Os profissionais assumiram que a maioria dos descumprimentos ocorria nos plantões noturnos, quando os médicos dividiam-se em três turmas das 19h às 7h, quando todos, na verdade, deveriam trabalhar 12 horas integralmente.
"No final da noite, no horário das 4h às 7h, ficavam entre um ou dois médicos, que é o horário que tem menos demanda", disse um dos reguladores à sindicância. "O número (de médicos por plantão) era determinado pela chefia, mas qual horário (cada um trabalhava dentro dessa subdivisão da escala) ficava a cargo dos médicos decidirem, normalmente combinavam no local", relatou outra reguladora.
A sindicância confirmou que "os médicos que faziam o plantão noturno revezavam-se em uma escala, cumprindo ao menos um terço da jornada no que eles chamavam de sobreaviso. Contudo, não se tratava de sobreaviso, tampouco de trabalho remoto, eis que os médicos reguladores não tinham acesso ao sistema". O documento ainda diz que "especialmente no último período da madrugada, entre quatro e sete horas da manhã, na maioria das vezes ficava somente um médico na mesa reguladora. Tal situação é especialmente grave se considerarmos que a pessoa pode passar mal ou precisar ausentar-se sem que tenha alguém para substituí-lo".
Em relação aos gestores, a apuração do Estado afirma que "resta demonstrada sua total falta de gestão, a irresponsabilidade e a gravidade de sua omissão, eis que todos sabiam dessa situação e nada fizeram". A sindicância ainda pontua que "as imagens veiculadas na reportagem confirmam a prática". E alega que não há como aceitar o argumento de que os médicos estavam esperando a publicação que declarou oficialmente o término da pandemia para voltarem a cumprir suas jornadas.
"A situação há mais de dois anos já está normalizada. Desde 2022 não é obrigatório o uso de máscaras. A partir de fevereiro 2023 nem nos hospitais se exige tal medida, não havia mais excepcionalidade que justificasse o cumprimento do plantão que não fosse o totalmente presencial", diz o documento.
Quem foram os responsabilizados
Eduardo Elsade — diretor do Departamento de Regulação Estadual (DRE)
O médico Eduardo Elsade foi afastado do cargo quando veio à tona um áudio no qual ele orientava que não fossem punidos os médicos que descumpriam horários. Na sindicância, Elsade foi responsabilizado "por permitir que os médicos cumprissem sua carga horária em sobreaviso, criar uma fórmula de atender a necessidade da portaria do Ministério da Saúde, com a totalidade de médicos que trabalhavam na emergência, o que acabou por gerar uma escala fictícia onde constam médicos do DRE que não trabalhavam na emergência, e criar escalas que beneficiavam os interesses pessoais dos médicos ao invés de atender o interesse público". A sindicância sugeriu "o término da cedência do servidor e o encaminhamento a ciência do município de Porto Alegre, pois, pelo que consta, trata-se de servidor daquele ente púbico". Desde o afastamento da diretoria no DRE, Elsade já havia retornado para a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), onde é concursado.
Laura Sarti de Oliveira — diretora-adjunta da regulação
Laura Sarti de Oliveira foi responsabilizada por "permitir que os médicos cumprissem sua carga horária em sobreaviso, permitir que fosse enviada uma escala fictícia para atender necessidade da portaria do Ministério da Saúde que previa a exigência de um determinado número de médicos, onde constam médicos que sabidamente não trabalhavam em emergência". A sindicância sugere a abertura de PAD contra a médica. Laura pediu exoneração do Estado em novembro.
Jimmy Luiz Herrera Espinoza — coordenador da central do Samu
O médico Jimmy Luiz Herrera Espinoza foi apontado pelas mesmas razões que Laura, com o adicional de "não trabalhar presencialmente, sendo que detinha dois contratos de 30 horas com o Estado". Ele pediu exoneração do cargo.
Carla Berger — coordenadora da central do Samu
A médica Carla Berger, que ainda é médica reguladora do Estado mas não atua mais no Samu, foi citada por "justificar no livro ponto as irregularidades" cometidas pelos médicos, além das mesmas situações dos colegas, como permitir que os médicos cumprissem sua carga horária em sobreaviso e atestar a escala fictícia enviada ao Ministério da Saúde.
Mara Regina Aquino Costa e Giordana Vargas Correa — médicas reguladoras
Somente duas médicas reguladoras foram responsabilizadas. Mara Regina Aquino Costa, "por ter se utilizado de ardil para burlar o sistema colocando a garrafinha de água no teclado". Mara Regina não atua mais no Samu, mas ainda é concursada do Estado como auditora, por isso, a sindicância orienta a abertura do PAD, pois "os fatos relacionados a esse vínculo podem refletir no seu outro vínculo tendo em vista que a falta foi cometida contra a própria administração e pode incompatibilizar a servidora ao cargo que ora ocupa". A outra profissional citada é Giordana Vargas Correa, que ainda é médica reguladora, responsabilizada por ter "se ausentado da mesa de regulação sem ter avisado a ninguém".
Cleiton Félix — enfermeiro denunciante
O enfermeiro Cleiton Félix, que repassou ao GDI as informações que deram início a série de reportagens, pediu exoneração do cargo, também foi responsabilizado na sindicância estadual. Segundo o documento, Cleiton não teria chamado Giordana de volta para a mesa reguladora durante a ausência da médica. Outros depoimentos, contudo, apontam que não seria função do enfermeiro este chamado. A sindicância ainda cita que Cleiton "teria acessado o sistema e ingressado no DRE, sem ser convidado, sem aparente motivo, após sua exoneração". Além disso, aponta que o profissional não buscou formas oficiais de denunciar a situação. O GDI mostrou que Cleiton escreveu e-mails a chefia sobre o caso e chegou a procurar o gabinete do vice-governador, Gabriel Souza (MDB), para tentar uma comunicação.
Outros desdobramentos
Atualmente, há Processos Administrativos Disciplinares (PADs) em andamento contra todos os responsabilizados na sindicância, exceto contra o ex-diretor Eduardo Elsade, que atualmente trabalha na Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Porto Alegre. A pasta municipal respondeu que Elsade já foi notificado, seguindo a orientação da sindicância estadual, e apresentou suas considerações. O secretário municipal de Saúde, Fernando Ritter, fará a análise da resposta, segundo a SMS.
Em relação aos demais profissionais que foram ouvidos, inclusive alguns dos flagrados pelo GDI descumprindo horários, o documento aponta que "os médicos reguladores que trabalham no plantão noturno identificados nas escalas que não cumpriram a carga horária devem responder, sendo que contra os efetivos, sugere-se a abertura de PAD; já contra aqueles que detêm contrato emergencial, considerando a vinculação com falta funcional, sugere-se a realização de um procedimento simplificado garantindo a ampla defesa". Entre as punições possíveis, a sindicância sugere "que os médicos da regulação sejam instados a devolver proporcionalmente o equivalente as horas não trabalhadas".
Respostas da sindicância sobre revelações do GDI
Confira a seguir trechos da sindicância sobre as principais supostas irregularidades apontadas pela apuração do GDI.
Descumprimento de horário
"Em que pese a manifestação de Elsade, Laura e Carla, no sentido que desconheciam a existência de sobreaviso, restou claramente demonstrado que todos sabiam das irregularidades e que nada fizeram para solucioná-las. Jimmy Herrera também nada fez, embora tenha admitido o descumprimento da carga horária por seus pares.
Durante a instrução verificou-se que os médicos que faziam o plantão noturno revezavam-se em uma escala, cumprindo ao menos 1/3 da jornada no que eles chamavam de sobreaviso. Contudo, não se tratava de sobreaviso, tampouco de trabalho remoto, eis que os médicos reguladores não tinham acesso ao sistema. Além dessa irregularidade, especialmente no último período da madrugada, entre quatro e sete horas da manhã, na maioria das vezes ficava somente um médico na mesa reguladora. Tal situação é especialmente grave se considerarmos que a pessoa pode passar mal ou precisar ausentar-se sem que tenha alguém para substituí-lo. No que concerne às chefias, resta demonstrada sua total falta de gestão, a irresponsabilidade e a gravidade de sua omissão, eis que todos sabiam dessa situação e nada fizeram.
Contudo, em que pese mesmo após o término da pandemia permaneceram utilizando-se do referido expediente. Dessa feita, as imagens veiculadas na reportagem confirmam a prática, exatamente porque se visualiza alguns médicos chegando à meia-noite e outros indo embora a uma da manhã. Não há como aceitar o argumento que estavam esperando a publicação do Decreto 57.087 de 30/06/2023, que declarou oficialmente o término da pandemia. A situação há mais de dois anos já está normalizada. Desde 2022 não é obrigatório o uso de máscaras. A partir de fevereiro 2023 nem nos hospitais se exige tal medida, não havia mais excepcionalidade que justificasse o cumprimento do plantão que não fosse o totalmente presencial.
(...) Sugere-se que os médicos da regulação sejam instados a devolver proporcionalmente o equivalente as horas não trabalhadas."
Escalas enviadas ao Ministério da Saúde
"Releva salientar que tais médicos (citados na escala enviada ao ministério, mas que não atuavam no Samu) recebiam em função dessa lotação no Samu a gratificação de 200% que não é devida aos médicos que atuam em outros setores. Em resumo, o encaminhamento da referida listagem visando a atender as exigências do Ministério da Saúde inclusive para repasse de verbas não espelhava a realidade.
Sugere-se sejam os médicos que constavam da lista encaminhada ao Ministério da Saúde instados a devolver a gratificação de regulação, uma vez que declararam em documento que nunca trabalharam na regulação, sendo indevida tal gratificação."
Garrafa sobre o teclado
"Quanto a utilização de garrafinha para login, em um primeiro momento não foi possível identificar o responsável através dos depoimentos, contudo, as imagens encaminhadas a esta comissão a Auditoria da Secretaria da Saúde, em vídeo, no canto esquerdo do monitor é possível visualizar quando uma servidora utiliza a garrafinha para manter-se logada. Também os demais documentos encaminhados, como a escala e relatório de login encaminhados pela mesma empresa demonstram que foi a servidora Mara Aquino a responsável pelo fato. Tal situação revela-se de todo inadequada, pois trata-se de burla ao sistema objetivando demonstrar que a pessoa está logada."
Abandono do posto de trabalho
"É fato incontroverso que a médica Giordana Vargas Correa se ausentou por aproximadamente vinte minutos da mesa de regulação. Também restou comprovado que ao se ausentar não avisou ninguém. (...) Ou seja, pelo relato dos fatos verifica-se que enquanto a médica ausentou-se da mesa, a população ficou desassistida, sem que nenhuma medida para resolver o problema fosse adotada."
Gestão dos relatórios de pontos
"Quanto à atestação do ponto, em evidente fraude, a médica Carla Berger autorizava o registro das ocorrências e atestava a efetividade dos médicos, mesmo sabendo do sobreaviso. Para tal eram utilizadas justificativas como 'esquecimento' ou problemas no ponto. Basta um simples exame do ponto de qualquer médico regulador do Samu para se concluir que ali existe uma irregularidade, pois não passam de uma colcha de retalhos repleta de 'esquecimentos'".
Demora no atendimento de ocorrência
"Nessa linha, a prova dos autos não permite concluir que o tempo reposta esteja elevado, sendo, ao que parece os casos da reportagem isolados."
Contrapontos
O que diz Carla Berger
A defesa da médica Carla Berger respondeu, em nota, que "não teve acesso ao relatório da sindicância e aos autos do expediente. No entanto, reitera que nenhuma infração funcional foi praticada pela servidora, o que será devidamente demonstrado no curso do processo".
O que diz Eduardo Elsade
O ex-diretor da regulação Eduardo Elsade enviou nota afirmando que "a correção de todas as ações da diretoria ocorreram dentro da legislação vigente e dos decretos do governador. Sempre tive e mantenho a confiança nas equipes médicas do DRE, que, com trabalho e responsabilidade, salvaram mais de 6 mil vidas na pandemia. Quanto à sindicância, reitero que não tive acesso completo aos autos, mas que esta conclusão sem provas materiais está sendo questionada nas esferas administrativa e judicial".
O que diz Mara Aquino
A ex-servidora da central do Samu, Mara Aquino, enviou nota dizendo que "não teve acesso ao relatório, mais com certeza nenhuma infração foi cometida". "Inclusive passei muito tempo afastada do trabalho na Samu por doença de burnout e fui exonerada em fevereiro de 2023, estando eu afastada por moléstia acima citada e ainda em estágio probatório", cita o texto. Segundo Mara, "o motivo alegado foi por incompatibilidade de horário sendo que sempre cumpri meu horário e isso pode ser provado na avaliação do estágio probatório onde não consta qualquer tipo de ocorrência". "O fato de eu ter aberto processos contra o estado e relatado as ausências do coordenador foi a causa dessa calúnia."
Outros citados
Jimmy Luiz Herrera Espinoza, Giordana Vargas Correa e Laura Sarti não responderam. Cleiton Félix informou que não irá se manifestar.
O que diz o governo do Estado
O gabinete do vice-governador, Gabriel Souza, enviou nota, leia a íntegra.
"O governo do Estado publicou em 12 de setembro de 2023 a Ordem de Serviço 18/2023 que orienta sobre os procedimentos que devem ser adotados no recebimento e no encaminhamento de denúncias de irregularidades no serviço estadual, inclusive as meramente verbais.
A OS determina que o servidor deve disponibilizar ao denunciante acesso a computador com internet para envio de formulário eletrônico ou para a descrição do ocorrido em mensagem de e-mail. Pode, também, ser oferecido formulário em papel. Nessa opção, depois de preenchido, deverá ser encaminhado imediatamente, de forma digitalizada, para o e-mail da Ouvidoria.
No caso de relato verbal, se o denunciante se recusar ou desistir de formalizar a denúncia ou a proceder da forma orientada, isso deve ser registrado em termo a ser assinado por pelo menos dois servidores públicos presentes no momento do fato e encaminhado para a Ouvidoria-Geral do Estado (OGE).
No mês de outubro do ano passado, a OGE realizou um treinamento com o detalhamento dos procedimentos que devem ser adotados em caso de denúncias. A qualificação reuniu gestores locais, designação para quem atua em cargo de gerenciamento em secretarias e órgãos públicos estaduais.
Também foi produzida e distribuída a cartilha "Guia das Ouvidorias", que integra o projeto 'O Rio Grande Te Escuta'. A iniciativa é uma ação integrada entre as Ouvidorias das instituições públicas gaúchas, envolvendo os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Assessoria de Comunicação do Gabinete do Vice-Governador."