A frota mais nova da Carris, formada por 98 carros adquiridos em 2020, tem problema no funcionamento do ar-condicionado e em outros componentes mecânicos desde os primeiros dias em que roda nas ruas de Porto Alegre. As falhas foram verificadas em todos os veículos. Na última semana de dezembro de 2023, 48 destes coletivos, quase a metade do total, trafegavam com o ar-condicionado desligado em função de pane. A informação foi confirmada à reportagem pelo diretor-presidente da Carris, Maurício Gomes da Cunha.
Os outros 50 ônibus da frota nova, neste mesmo período, estavam com o aparelho de climatização ligado, mas com "trepidação excessiva". A Carris relata que os solavancos ocasionam rompimento e desacoplamento de correias do equipamento de refrigeração, que deixa de funcionar. Num segundo momento, diz a companhia, são gerados efeitos em outros componentes do motor. Mas tudo começaria no ar-condicionado.
As informações constam na peça inicial de ação judicial movida pela Carris em agosto de 2023 contra a Mascarello Carrocerias e Ônibus, de Cascavel (PR), e a Divena Litoral Veículos, de Santos (SP). As duas empresas ganharam as licitações para fornecer os coletivos à empresa pública em 2020, na gestão do ex-prefeito Nelson Marchezan. A Mascarello negociou a carroceria, onde ficam os equipamentos de climatização, por R$ 21,2 milhões. Já a Divena revendeu os chassis, da marca Mercedes-Benz, por R$ 23,8 milhões. No total, os 98 ônibus que apresentam defeitos desde os primeiros quilômetros de rodagem custaram R$ 45 milhões à Carris, em valor de venda.
O presidente da empresa de ônibus da Capital diz que, em fevereiro de 2021, quando os veículos tinham menos de seis meses de circulação, as fornecedoras receberam a primeira notificação pelas falhas. Em outubro de 2020, quando os coletivos somavam dois meses de uso em Porto Alegre, uma troca de e-mails entre profissionais da Mercedez-Benz, fabricante dos chassis, revela que os defeitos começaram a aparecer desde o deslocamento de Cascavel, sede da Mascarello, até Porto Alegre. O trajeto foi realizado com os ônibus rodando na estrada.
"Percebeu no relatório que lhe enviei que o cliente recebe os carros com 900km, apenas com o deslocamento entre a Mascarello até Porto Alegre, já com o coxim do motor tensionado? Creio que tenha algo errado nessa montagem ou no projeto. Teria como envolver o time da engenharia deles (Mascarello) para debater sobre esse tema que afeta o nosso chassi?", registrou um consultor da Mercedes-Benz.
De lá para cá, foram realizados recalls pelas fornecedoras para a troca dos "calços do motor", danificados pelas trepidações, e manutenções gerais nos equipamentos de climatização, mas os problemas persistiram. A Mascarello chegou a enviar profissionais para tentar corrigir as falhas nos veículos no pátio da Carris. A companhia registrou, contudo, a continuidade das quebras.
Sem alcançar uma solução amigável em três anos, a Carris decidiu ingressar com ação judicial na Vara Cível do Foro Regional do Partenon, na Comarca de Porto Alegre. A empresa pública de transporte, que está em processo de privatização, requer a substituição dos 98 aparelhos de ar-condicionado, uma reparação de dano no valor de R$ 9,5 milhões e mais uma indenização a ser calculada no processo por lucros cessantes.
"Mesmo após a substituição dos calços, os problemas identificados permanecem ocorrendo, resultando no rompimento e desacoplamento das correias do compressor e do alternador do ar-condicionado, bem como a quebra do alternador, motor do condensador e deslocamento da mesa de fixação do ar-condicionado. Essa situação vem causando também danos significativos aos componentes periféricos do motor, como a ventoinha, sensores, chicotes elétricos, mangueiras, entre outros", diz trecho da ação da Carris, que alega sofrer prejuízos constantes com a necessidade de adquirir peças de reposição.
Nos primeiros despachos processuais, o juiz Ruy Rosado de Aguiar Neto rejeitou um pedido de liminar da Carris, cuja pretensão era obrigar a Mascarello e a Divena Litoral a realizarem todas as manutenções, sem custos, nos aparelhos de refrigeração que apresentarem problemas. O magistrado entendeu ser necessário aguardar que as rés apresentem as suas versões dos fatos e determinou que as partes prossigam à fase da produção de provas.
Também foi negado um requerimento da Divena Litoral para incluir a fabricante do chassi Mercedes-Benz na ação. Na peça inicial apresentada ao Judiciário, a Carris procura afastar a possibilidade de os defeitos terem sido iniciados por algum uso incorreto ou falta de manutenção.
Prejuízo ao usuário e multas
Além de piorar a experiência dos usuários de ônibus, a direção da Carris afirma que a companhia está sendo penalizada por receber multas aplicadas pela EPTC pelo tráfego de coletivos com o ar-condicionado desligado. Outra consequência é a possibilidade de apreensão do carro flagrado em circulação com o sistema de climatização desligado ou estragado.
— Os 98 ônibus, em algum momento, deram problema. Teve a pandemia, em que usamos bem menos o ar-condicionado. No final de 2022, ele voltou a ser usado por ordem da EPTC. Os problemas apareciam mesmo sem o ar. Quando ligamos, foi um terror — diz Cunha.
Apesar das falhas, ele afirma que os 98 ônibus estão circulando atualmente, salvo retenções pontuais. A questão é que a rodagem acontece de forma precária, com o ar-condicionado estragado em parte da frota e causando danos secundários a outros componentes mecânicos. Isso leva o veículo a sofrer pane cíclica.
— É uma certeza que a gente tem. Em algum momento, eles vão quebrar — reclama o diretor-presidente, mencionando que a situação pressiona a garagem da Carris e força a maior circulação de ônibus antigos da companhia.
A aquisição da frota pela Carris foi financiada em 2019 junto à Caixa Econômica Federal. Cunha afirma que a prefeitura quitou toda a dívida junto ao banco no final de 2023, o que era uma exigência contratual para transferir a companhia à Viamão, compradora da tradicional empresa pública de transporte. Entre o valor do principal e os juros, o custo total da frota foi de R$ 56 milhões.
Projeto-piloto
O diretor-presidente afirma que, no momento, a Carris desenvolveu um projeto-piloto em parceria com empresas especializadas em climatização para testar soluções em dois dos carros adquiridos em 2020. A iniciativa não tem custos e, caso haja sucesso, as parceiras poderão ser contratadas para fazer as reformas em toda a frota. Como a Carris está em processo de privatização, essa medida somente poderá ser levada adiante pela Viamão.
No final de dezembro de 2023, a Carris abriu procedimentos administrativos para verificar se algum servidor adotou conduta inadequada nas compras ou em algum procedimento de fiscalização do contrato e do bem adquirido. A medida foi determinada pelo prefeito Sebastião Melo após entrevista realizada por GZH com a direção da companhia.
Contrapontos
O que diz a Divena: "A Divena Litoral é apenas uma concessionária de produtos fabricados pela Mercedes Benz do Brasil. Considerando que tanto os chassis adquiridos quanto as carrocerias foram fabricados e/ou implementados por empresas terceiras, informamos desde já que não possuímos competência para reconhecer ou não a existência do problema relatado. Esclarecemos que a defesa já foi apresentada no processo."
A Mascarello não atendeu as chamadas da reportagem. A informação recebida é de que a indústria está em recesso e retomará as atividades em meados de janeiro.