Nos últimos dois meses, ao menos oito vezes por dia, equipes da Carris precisaram fazer reparos em algum coletivo da empresa com problemas nas ruas de Porto Alegre. É o que mostram dados internos da companhia, obtidos com exclusividade pelo Grupo de Investigação (GDI) da RBS.
Entre outubro e novembro, foram 488 socorros registrados no sistema interno da empresa, que está em processo de privatização pela prefeitura. Os socorros representam situações em que o veículo estraga em viagem e é preciso enviar uma equipe para o conserto. Isso obriga os passageiros a desembarcarem e a esperarem por outro carro sob o tempo, gerando atrasos e estresse. A Carris, em nota, afirma ter 355 registros de estragos no mesmo período e que muitos desses chamados foram resolvidos nos próprios terminais.
A média de oito pedidos de resgate por dia, ante uma frota operante de 249 ônibus da Carris, representa um índice de quebra de 3,21%. Em Porto Alegre, considerando os números dos quatro consórcios privados que dividem a operação do sistema de transporte, a média é de 10,62 carros quebrados por dia, em uma frota operante de 924 coletivos, conforme dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI). Significa que a taxa de pane na Capital gaúcha entre as empresas privadas é de 1,15% ao dia — o dado da Carris é quase o triplo disso. O índice de quebra da companhia também é superior ao verificado em outras capitais. Em São Paulo, a prefeitura informou que a estatística é de 0,45%. Já em Curitiba, alcança 1,55%, conforme resposta da gestão municipal.
Em Porto Alegre, na maioria dos casos de atendimentos externos realizados pela Carris, aparentemente, o reparo é feito na rua e o carro consegue voltar a circular ou ir até a garagem da empresa. Isso gera uma anotação no sistema de "socorro sem recolhimento".
A reportagem flagrou, contudo, situações que despertam dúvida sobre a exatidão dos registros da Carris. O GDI documentou dois carros da companhia sendo guinchados pela cidade, após terem estragado, e os casos foram anotados no sistema informatizado interno como "socorro sem recolhimento". O primeiro deles ocorreu em 7 de dezembro, no final da tarde, quando o coletivo 0730 era rebocado na Avenida Ipiranga. No dia seguinte, o sistema já apontava que havia se tratado de "socorro sem recolhimento", quando aconteceu exatamente o contrário.
O cenário se repetiu no dia 11: o carro 0871 entrou na garagem da Carris, na Rua Albion, pouco depois das 8h, puxado pelo guincho. Horas depois, o sistema informava: "sem recolhimento". Esse veículo ficou duas horas no interior da garagem recebendo reparos, saiu de lá rodando e, por fim, voltou 40 minutos depois.
Os auxílios mecânicos com ou sem recolhimento representam viagens interrompidas e prejuízos aos passageiros — as exceções são os casos em que os veículos conseguem chegar ao final da linha para o desembarque e esperar lá pelo conserto. Em geral, os usuários são forçados a desembarcar do carro enguiçado e a aguardar o próximo horário para fazer a baldeação, o que deixa os coletivos superlotados.
Os dados obtidos pelo GDI mostram que, depois de reparados, os veículos até voltam a circular. E estragam de novo. Em outubro, por exemplo, o ônibus da Carris de prefixo 0798, fabricado em 2011, precisou de resgate por seis vezes. Em novembro, três carros lideraram o ranking de panes, também com seis ocorrências cada. Foram os prefixos 0789, 0769 e 0697. Este último, aliás, fabricado em 2009, chegou a precisar de socorro duas vezes no mesmo dia — e em duas ocasiões —, nos dias 14 e 16 de novembro.
Durante uma blitz do GDI pelas ruas da Capital, a reportagem flagrou alguns dos veículos que aparecem nos relatórios internos da Carris. E um deles precisou ser socorrido sete vezes entre outubro e novembro. É o carro de prefixo 0688, de 2009, que chamou por resgate cinco vezes em novembro e outras duas vezes em outubro. Outro coletivo registrado pelo GDI é o de prefixo 0695, também de 2009, que precisou ser socorrido cinco vezes em novembro e uma vez em outubro.
No dia 11 de dezembro, o guincho deixou a garagem da Carris conduzido por um mecânico que se deslocou até o Terminal Triângulo, na Avenida Assis Brasil. A reportagem acompanhou o trajeto e os serviços realizados. Primeiro, o homem pegou uma chave e fez reparos nas duas rodas dianteiras do carro 0680, que estava parado no local. Depois, assumiu o volante. Em curto espaço, pisava brevemente no acelerador. De imediato, tocava o freio. Parecia testar o sistema de frenagem do veículo.
Em seguida, o mecânico se deslocou até outro veículo da Carris que esperava por reparo no mesmo terminal, poucos metros adiante. Era o coletivo 0843, cujo braço do espelho retrovisor estava pendurado. Ele removeu a peça danificada, improvisando uma oficina no meio da rua, e foi embora sem substituir o espelho ou guinchar. Em nota, a Carris não quis comentar as situações específicas destes coletivos (confira a nota completa abaixo).
Especialista aponta círculo vicioso
Professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), o especialista em mobilidade urbana Carlos Félix aponta implicações negativas causadas pela quebra de ônibus em operação. As consequências atingem o passageiro, a viabilidade do sistema de transporte público e o ecossistema das cidades.
O principal aspecto destacado por ele ocorre quando as panes se tornam frequentes a ponto de gerar desconfiança.
— O pior é a perda de credibilidade e o aumento da insatisfação. As quebras causam atrasos e interrupções no serviço. O passageiro vai sentir o impacto nas suas atividades e buscar uma alternativa: o carro particular e o transporte por aplicativo. Acaba gerando mais congestionamento e emissão de poluentes. Um círculo vicioso — destaca Félix.
Além de incentivar a fuga de usuários para modais individuais, os ônibus estragados obstruem avenidas e afogam o trânsito.
Félix destaca que as quebras são custos operacionais para as empresas, por demandarem reparos, contratação de mão de obra especializada, serviço de guincho e compra de peças.
— Isso gera pressão financeira. Em algum momento, acaba embutido na tarifa — avalia o especialista.
Responsável pelo Laboratório de Sistemas de Transportes (Lastran) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Fernando Dutra Michel pontua que ônibus mais velhos no sistema acentuam os custos de manutenção e também prejudicam a rotina dos passageiros.
— Ônibus velho é barulhento, traz problema, poluição, tem as quebras que obrigam usuários a fazer baldeação — cita Michel.
Segundo o professor, no atual modelo de financiamento do sistema de transporte em Porto Alegre, com os consórcios sendo pagos por quilômetros rodados e não por passageiros transportados, a renovação de frota poderia ser melhor.
— Ter idade limite entre 10 anos e 12 anos seria bom (atualmente, por força de decreto, a idade limite dos ônibus em Porto Alegre é de 14 anos). Antes, a reclamação era que só a passagem não financiava o sistema, agora, com os subsídios da prefeitura, o dinheiro está entrando — acredita o professor da UFRGS.
Na avaliação de Michel, a idade média de toda a frota da Capital, acima dos sete anos (7 anos e cinco meses), não é a ideal. Considerando apenas os coletivos da Carris, a idade média sobe para 8,34 anos, conforme atesta documento inserido pela prefeitura no edital de privatização da companhia. Com o avanço do tempo de uso, aumenta o custo daquele carro para o sistema:
— Se faz tanta manutenção que o gasto não compensa. Ônibus mais novos têm um índice muito menor de quebra, costumam ter seguro, entre outros itens.
Contraponto
Confira a nota completa da Carris
"A Carris informa que todos os veículos da frota recebem manutenção diária, com o objetivo de minimizar eventuais possibilidades de panes mecânicas ou elétricas, que, infelizmente, podem ocorrer a qualquer momento do percurso e que as vistorias, realizadas frequentemente pela EPTC, estão rigorosamente em dia, garantindo segurança e trafegabilidade. Segundo dados da equipe técnica, nos meses de outubro e novembro, a Companhia Carris registrou 355 chamados. Reforçando que muitos desses chamados são resolvidos nos próprios terminais, possibilitando que os veículos sigam suas tabelas horárias. Como exemplo, podemos citar lâmpadas internas queimadas, campainhas sem funcionamento, reaperto do balaústre etc."