Conhecido pela excelência dos assados, dos laticínios e também pelo segredo bancário, o Uruguai tem ganhado fama por outra experiência, pioneira na América do Sul, a venda legalizada de maconha para uso recreativo. O fim da repressão ao consumo de marijuana foi aprovado em 2013 no país vizinho e a comercialização liberada, parcialmente, em 2017. Desde então, talvez não por coincidência, os uruguaios vivenciaram o maior crescimento de assassinatos dentre os que partilham fronteiras com o Brasil. Foram 382 homicídios em 2018, 35% a mais que os 283 do ano anterior. Mais de uma vítima por dia, algo inédito naquela nação.
O Grupo de Investigação da RBS (GDI) foi ao Uruguai para conferir o fenômeno. Documentou o aumento de crimes em 2018. Percebeu que o medo virou rotina, sobretudo em cidades de fronteira, onde emboscadas ocorrem nas ruas, à luz do dia. Criminosos ofertam granadas e fuzis pelo WhatsApp e combinam assassinatos de rivais. Ataques a carros-fortes e casas de câmbio têm sido frequentes. Policiais brasileiros batem recordes de apreensão de droga rumo a território uruguaio.
Uma mudança e tanto, para pior, no cenário de um país conhecido pela paz. Os fatos indicam que isso ocorre porque quadrilhas, nacionais e internacionais, disputam o rico e crescente mercado da venda da erva. O crescimento do número de assassinatos se dá no contexto em que a procura por droga é maior que a oferta de mercadoria legalizada. Os criminosos se aproveitam dessa falta de estrutura do mercado formal para oferecer venda ilegal — e travam sangrenta disputa pelo domínio desse comércio.
Segundo policiais brasileiros e uruguaios, grande parte dessa marijuana ilegal vem do Paraguai e chega ao Uruguai pelo Rio Grande do Sul, numa triangulação que envolve armamento e dinheiro em troca. Duas áreas no Uruguai se destacam pelo crescimento da violência: a Região Metropolitana — onde o consumo é maior, segundo autoridades —, e as fronteiras uruguaias com o Brasil e com a Argentina (principais pontos de ingresso de droga). Mas o fenômeno é generalizado. De 19 departamentos uruguaios, em 16 o número de assassinatos aumentou no primeiro semestre de 2018 comparado ao mesmo período de 2017, mostram estatísticas do Ministério do Interior uruguaio.
A tendência vem de longe. A taxa de homicídios no Uruguai era de 7,6 por 100 mil habitantes em 2013. Após a liberação da erva, passou para 8,5 mortes para cada 100 mil habitantes, em 2015, que se manteve até 2017. No ano passado, deu um salto, chegando a 11,2 assassinatos para cada grupo de 100 mil pessoas. As estatísticas são do Observatorio de Seguridad de la Fundación Propuestas (Fundapro), ONG ligada ao Partido Colorado, oposicionista, que não tem contestação do governo uruguaio.
Para efeito de comparação, na Argentina, a taxa foi de 5,2 mortes por 100 mil habitantes, em 2017. No Chile, 3,6 por 100 mil 2018 ainda não está contabilizado). É preciso admitir, se colocado lado a lado à realidade brasileira, os uruguaios ainda estão num paraíso: aqui, a taxa de assassinatos é de 30,3 para cada 100 mil habitantes, em 2018.
Conforme a Organização das Nações Unidas (ONU), quando há mais de 10 mortes por 100 mil pessoas é alcançado nível epidêmico.
Entenda
- Consumo: o governo uruguaio estima que o consumo da maconha movimenta US$ 40 milhões/ano (R$ 147 milhões), mas somente US$ 10 milhões (R$ 36 milhões) legalmente.
- Homicídios: a taxa de homicídios no Uruguai era de 7,6 por 100 mil habitantes em 2013. No ano passado, chegou a 11,2 assassinatos para cada grupo de 100 mil pessoas.
- Quadrilhas: em 2012, 29% dos homicídios eram conflito de criminosos — menos de três a cada 10. Em 2018, 58% das mortes aconteceram devido à guerra das quadrilhas.
- Apreensão: em 2012, a Polícia Federal apreendeu ínfimas 42 gramas de maconha no Chuí e Santa Vitória do Palmar. Em 2018, 1,6 tonelada da erva foi interceptada pelos federais.
- Fronteira: Chuy e Chuí registraram 23 homicídios e 10 tentativas de homicídio desde o início de 2017. Somadas, têm 17 mil habitantes.
Vítimas ligadas ao tráfico lideram estatísticas
Não só o número de mortes no Uruguai aumentou, como também o perfil das vítimas.
Em 2012, 29% dos homicídios eram conflito de criminosos — menos de três a cada 10. Em 2018, conforme admite o Ministério do Interior, 58% das mortes aconteceram devido à guerra das quadrilhas. Ou seja, quase seis a cada 10, numa comprovação de que facções acertam contas ao tentar dominar a venda de drogas em território uruguaio.
O próprio ministro do Interior, Eduardo Bonomi, culpou facções, inclusive internacionais, pelo aumento da criminalidade, ao ser questionado no Parlamento pelo aumento dos níveis de insegurança. Ele confirmou também o aumento de 55,8% dos roubos (assalto à mão armada) e de 26,9% dos furtos, em comparação com o mesmo período do ano anterior.