Com a atenção mundial voltada para si após regular o processo de produção e distribuição estatal da maconha, o Uruguai - que deve receber em 2016 o maior número de turistas da sua história - prepara-se para começar neste ano a venda de cannabis em farmácias. É a fase final do seu polêmico projeto de enfrentar o tráfico e buscar a diminuição do consumo por meio da liberação parcial da droga. Para os estrangeiros não-residentes, porém, o ingresso nesse mercado legal está proibido. Se descumprirem a lei, podem parar na cadeia.
O governo uruguaio não quer o rótulo de "Holanda da América Latina" e adota medidas para evitar o surgimento de um turismo canábico como o que marcou o país europeu. O Uruguai investe em inteligência e treinamento policial, estuda a criação de juizados para o microtráfico e prepara uma campanha nacional de conscientização para alertar sobre as regras do jogo - que nem sempre estão sendo cumpridas. Vinte meses depois de a lei entrar em vigor e começar a funcionar, Zero Hora visitou quatro praias próximas à fronteira com o Rio Grande do Sul e constatou que, a despeito das restrições legais, a procura por maconha é intensa. Em hostels, bares e nas ruas, o porro (baseado) está presente e passa de mão em mão, tornando-se um atrativo turístico que pode colocar um ponto de interrogação na proposta impulsionada pelo ex-presidente José Mujica na batalha contra as drogas.
O artigo primeiro da lei que estabelece o controle do Estado uruguaio para a produção e comercialização de maconha e seus derivados é claro ao definir aonde o país quer chegar com a legalização da droga: "Proteger, promover e melhorar a saúde pública da população mediante uma política orientada a minimizar os riscos e reduzir os danos do uso". Aprovada em dezembro de 2013, a legislação chega agora à etapa final. As duas primeiras - cultivo pessoal de até seis plantas e formação de clubes canábicos com 15 a 45 membros e até 99 pés de maconha - já estão valendo e têm servido como laboratório social para o momento mais delicado que se aproxima: a venda em farmácias. Apesar de enfrentar a rejeição de mais de 60% da população no tema, o sucessor de Mujica, o oncologista Tabaré Vázquez, garante que não dará um passo atrás, mesmo tendo restrições quanto à eficácia da empreitada.
- Parece-me que o que precisa ser salientado é que drogas não devem ser usadas a menos que sejam prescritas por um médico. É preciso que haja educação desde cedo - salientou Vázquez ao canal VTV, em uma das poucas entrevistas concedidas pelo presidente, que, em 2006, no primeiro mandato, declarou o Uruguai livre da fumaça do cigarro e comprou uma briga internacional com a multinacional Philip Morris.
Leia mais:
"Turista que comprar maconha vai preso", diz presidente da Junta de Drogas
Especial: Maconha, é hora de legalizar?
Uso medicinal da maconha no Brasil fica mais próximo
Para ser bem-sucedido e seguir diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), o plano herdado por Vázquez sustenta-se em dois pilares: nenhuma pessoa ou empresa criminosa deve estar envolvida com a produção oficial, e a droga não pode se transformar em propaganda turística. Além de atacar o narcotráfico, o Uruguai quer a diminuição do consumo com uma forma diferente da guerra contra a droga: a colocação de um concorrente de peso para tirar espaço do mercado paralelo. Em junho do ano passado, um estudo realizado pelo Conselho Nacional de Drogas (CND) apontou que, no primeiro semestre da nova lei, 9,3% da população usou maconha, em comparação a 8,3% em 2011 - foi o menor aumento contabilizado em 14 anos. O temor é que, com a comercialização em farmácias, esse índice dispare.
- Mais do que preocupados, estamos nos ocupando de todos esses aspectos. Se gerarmos um fenômeno de turismo canábico ilegal, estaremos conspirando contra o projeto - afirma o presidente da Junta Nacional de Drogas, Juan Andrés Roballo, principal autoridade do assunto no Uruguai.
Caipiroska, milho verde e porro
Desde a mudança da lei, as forças de segurança uruguaias vêm sendo treinadas para atuar contra todas as modalidades do tráfico e têm recebido investimentos públicos para tornar as abordagens mais eficientes e menos repressivas. Quem fiscaliza os clubes canábicos, por exemplo, precisa estudar ciências biológicas para ter condições de identificar se determinada planta é autóctone ou teve a semente importada. Qualquer grama de Cannabis charrua, a espécie que será plantada sob supervisão estatal, poderá ser rastreada mundo afora, pois foi patenteada e só pode ser produzida legalmente por meio das empresas Iccorp e Simbiosys, que venceram, em licitação, outras 20 concorrentes. Órgãos governamentais e institutos de pesquisa trabalham em conjunto para gerar dados que interpretem a nova realidade e até revisem a legislação. O governo quer trazer à legalidade milhares de pessoas que acessam a droga de maneira clandestina, e busca impedir o turismo centrado no entorpecente.
- Quando falamos da marca Uruguai Natural, o que queremos transmitir é qualidade de vida. Não temos nenhuma proposta de explorar o tema (da maconha) do ponto de vista turístico. Não seremos vistos como uma nova Holanda - ressalta a ministra do Turismo, Liliam Kechichián.
Órgãos oficiais estimam que há cerca de 160 mil consumidores ativos de maconha para uma população de aproximadamente 3,4 milhões de pessoas. Até agora, 4,4 mil cultivadores e 17 clubes canábicos se registraram - para associar-se, custa, em média, US$ 400 por pessoa. Os estrangeiros estão impedidos de comprar a droga, plantar e entrar nos clubes. Se descumprirem os três pontos principais da legislação e forem flagrados, vão presos e respondem por tráfico - as penas variam conforme a quantidade de cannabis apreendida. Porém, mesmo com o esforço do governo em informar cidadãos e viajantes sobre os limites legais, um comércio informal e uma nova cultura em torno da marijuana começam a florescer, conforme apurou Zero Hora em uma viagem até as praias de Punta del Diablo, Barra de Valizas, Cabo Polonio e La Pedrera, na província de Rocha - na moda por seus balneários seguros, bonitos e ainda pouco explorados.
Caballero em loja que vende produtos canábicos no Chuy
A onipresença da maconha é sentida logo na fronteira, na cidade binacional do Chuí. Ao ingressar no Uruguai, a equipe visitou uma grownshop - loja que vende praticamente tudo relacionado ao plantio e cultivo da maconha, menos a droga para consumo. Há itens como estufas, redes de secagem de camarões (flores da erva colhidas), ventiladores, lâmpadas, medidores de pH, bongs e vasos. Em um canto iluminado por luz artificial, 20 pés de marijuana recebiam tratamento especial do "enfermeiro" Joaquín Caballero, que trabalha com a recuperação de plantas doentes dentro de uma estufa. Participante do movimento pró-cannabis e sócio de um clube nas cercanias de Montevidéu, ele relata que o desejo de muita gente que chega ao país pelo Rio Grande do Sul é comprar maconha direto no caixa:
- A gente explica que a venda não é livre e eles vão embora descontentes. Quando temos alguma coisa (um baseado para fumar junto) para convidá-los, sem problemas, mas nem sempre temos.
O compartilhamento de porros é uma das formas mais comuns de acesso à droga no Uruguai. Apesar de não ser crime o consumo e a posse de até 40 gramas, o turista pode ter problemas e ser detido se entrar neste circuito, que é restrito a cidadãos e residentes. De acordo com Juan Andrés Roballo, presidente da Junta Nacional de Drogas, o delito se enquadra no momento anterior à tragada no baseado:
- Como o adquiriu? Por mais que quem tenha convidado cumpra com todos os requisitos, tu e essa pessoa podem ter problemas. Não por fumar, e sim pelo processo de aquisição.
É necessário, neste caso, um flagrante ou investigação, mediante denúncia, para definir que houve a procura e a venda. Na prática, isso ainda não acontece.
Muitos turistas ignoram o alerta e se aproximam de uruguaios e residentes para obter a droga. É o caso da estudante de Psicologia Nicole Naji Pegorini, 21 anos. Mochilando pela América Latina, ela resolveu incluir La Pedrera no roteiro depois de ouvir de amigos que não era difícil obter maconha:
- Eu não comprei. Fumei todas as vezes com amigos, alguns que conhecemos na viagem e outros brasileiros que encontramos pelo caminho. Sempre tinha bastante.
Já o estudante brasiliense Ítalo Alberto do Nascimento Souza, 21 anos, visitava um amigo uruguaio que conheceu na Europa e resolveu ficar mais tempo no litoral depois de sentir, segundo ele, a liberdade de poder consumir a droga em qualquer lugar sem restrições. Ítalo conta:
- Curti vir na praia, fumar e caminhar por aí sem ter pessoas me olhando de maneira ruim e criticando.
Fiscalização quase nula
Em cinco dias circulando pelo litoral, ZH encontrou policiamento ostensivo somente uma vez, na tarde de 15 de janeiro, em Barra de Valizas. À noite, a presença de policiais é praticamente nula. Isso abre espaço para vendas e trocas. Na noite de 14 de janeiro, em frente a um movimentado bar de Punta del Diablo, um grupo de jovens oferecia abertamente para as pessoas presentes maconha paraguaia, uruguaia e haxixe durante a apresentação de um stand-up comedy que tratava justamente deste assunto. Perto dali, em um pub com mais de 30 pés de marijuana "escondidos" em uma das salas anexas, um casal de americanos, ao sentir o cheiro da erva, pediu um porro para o garçom, que disse não poder fornecer. Na beira da praia, a procura por cannabis confunde-se com lanches e bebidas, como relata o empresário Juan Ignacio Algorta, que tem um quiosque desde 2010 em Punta del Diablo:
- Quando chegam aqui, dizem: "Bom, este é o país do porro. Cadê o porro? Me dá duas caipiroskas, um milho verde e maconha".
Apesar de ser um bar "cannabis friendly", não é permitido fumar no local quando há crianças e famílias por perto. A restrição também é aplicada quando algum cliente reclama.
- Os turistas acham que aqui tem coffee shops. Se as gerações mais novas veem isso como algo habitual, fomenta-se o consumo - pondera Helena Algorta, irmã de Juan Ignacio e também dona do bar.
O ex-presidente Pepe Mujica tem condição de ídolo em Cabo Polonio, "resistência canábica" no Uruguai
O apoio à legalização está longe de ser unânime no Uruguai. Na época da votação da lei, pesquisas apontaram que mais de 60% da população era contrária. A legislação foi aprovada mesmo assim, sem deixar de gerar desconfortos. Na manhã do dia 16 de janeiro, Juan Jose Moreira, dono de uma padaria em Valizas, discutia com cinco jovens que ocupavam as mesas do seu estabelecimento no lado externo enquanto fumavam. Moreira pedia que eles se retirassem e não foi atendido.
Desanimado, não chamou a polícia e tentou contornar o problema com diálogo - neste caso, os policiais teriam de revistar os jovens e encaminhá-los para a delegacia se constatassem alguma irregularidade, o que também não ocorre normalmente.
O presidente da Junta Nacional de Drogas argumenta que o Uruguai não aposta num "Estado policialesco" e fala que a meta principal das autoridades de segurança, no momento, é garantir o sucesso da comercialização em farmácias. Irregularidades como as presenciadas por ZH são atacadas por meio de denúncias e eventuais rondas - a reportagem viu somente uma blitz, para autuar motoristas embriagados na entrada de La Pedrera.
- Tu não vais encontrar polícias de choque que passam por uma esquina e colocam numa caçamba suspeitos. Tampouco verás um policial para cada 20 turistas. Estamos concentrados agora em colocar em funcionamento a terceira ferramenta (venda em farmácias) para o acesso da marijuana. O resto se vai avaliando permanentemente - explica Roballo.
Consumo livre, mas regrado
Redutos tradicionais de viajantes estrangeiros, os hostels são, com os bares, os principais pontos de procura por maconha no litoral uruguaio. Nos 12 hostels visitados por ZH, o consumo era livre, mas como regras e restrições estipuladas. Na maioria, áreas específicas para fumar - maconha ou cigarro - são delimitadas, e a fumaça é proibida na presença de crianças e idosos. Funcionário de um estabelecimento à beira-mar em Punta del Diablo desde agosto de 2015, o mineiro Eduardo Martins do Nascimento Júnior, 26 anos, diz que, para diversos estrangeiros, a razão maior para ficar lá é a maconha:
- Chegam na recepção, fazem o check-in e a pergunta chave é: onde posso comprar maconha?
Em Valizas, num dos principais hostels da cidade - que chega a receber mais de 100 pessoas em épocas de maior movimento, como o Ano Novo e o Carnaval -, a reportagem presenciou o consumo de porros nos três turnos do dia. A argentina Luciana Bocchi, 46 anos, dona do local, tem ressalvas quando opina sobre a legalização. Ela prefere "vender" aos clientes os atrativos ecológicos e culturais da praia em vez de fazer propaganda da maconha.
- As pessoas vêm aqui e perguntam muito sobre isso. Temos cartazes das zonas livres de THC e nicotina. Estamos apenas cumprindo a lei.
O reduto de Cabo Polonio
No pequeno povoado sem eletricidade de Cabo Polonio, que se autointitula a resistência canábica do Uruguai, a relação com a marijuana é intensa e antiga. Distante sete quilômetros de Valizas, com uma população de aproximadamente 100 pessoas no inverno, a praia é hoje o local mais isolado do país. Para chegar até a área, declarada Reserva Natural da Biosfera pela Unesco, é preciso caminhar seis quilômetros pela areia ou subir em caminhões 4x4 que parecem ter saído de um filme de guerra. Após vencer o balanço da boleia em cima de bancos improvisados embaixo de lonas, a cidade se revela com estilo alternativo e poucas construções. Uma de suas praias é praticamente deserta - nela a equipe de ZH cruzou por um leão marinho morto. Em 2006, o cantor Jorge Drexler colocou Polonio no mainstream turístico ao lançar o álbum 12 Segundos de Escuridad, onde homenageia "a noite do Cabo revelada num imenso radar" pelos feixes de luz do farol erguido em 1881, que alcançam 33 quilômetros de distância.
Logo ao descer do veículo, uma plantação de maconha aparece nos fundos de um hostel. Ali estava acampado um homem, dentro de uma barraca, em meio às folhas, que estão por toda parte. Seus cultivadores mostram e explicam, a quem quer que seja, o funcionamento delas. Em uma tarde, ZH visitou três hostels com plantações nas suas dependências, onde proprietários e turistas fumam juntos despreocupadamente. Outras duas plantações foram avistadas ao lado de casas, na rua.
- Damos respostas para os que perguntam. É um hostel cannabis friendly, não temos restrição ao tema - afirma Gonzalo "Ajo" Nuñez, 56 anos, dono de um hostel voltado para a cultura da maconha.
Gonzalo com as plantas que cultiva em Cabo Polonio
Ao lado do filho, o jovem Tomas Nuñez, 21 anos, ele fumou um porro e indicou outros locais onde os visitantes podem obter maconha e produtos derivados dela. Bastou caminhar menos de 200 metros para encontrar uma das indicações de Ajo, a uruguaia Beatriz Pereira, 53 anos. Moradora de Cabo Polonio há 26 anos, ela é conhecida pela comunidade por vender produtos como sabonete, álcool para queimaduras, creme para massagem e azeite, todos derivados da marijuana. Na casa onde hospedava um casal de israelenses, Bea, como é chamada, mantém um viveiro de cannabis de mais de três metros de altura.
- O assunto está pop em todas as partes do mundo e os estrangeiros que vêm aqui acreditam que há porros aos montes e, claro, querem provar - diz ela, que garante não fornecê-los para os visitantes.
Para o governo, é obrigação do turista saber os limites da lei. O presidente da Junta Nacional de Drogas adverte que a falta de informação não pode ser usada como desculpa para quebrar as regras.
- Não se trata apenas da liberdade de um indivíduo de consumir. Não há só um interesse do país, e sim um interesse internacional sobre essa experiência. Ela vai funcionar, e vai funcionar bem. Ela só pode dar certo. Não vamos permitir que se gere um turismo canábico - conclui Juan André Roballo.