Quatro cidades situadas na fronteira uruguaio-brasileira vivem dias de violência há dois anos, em decorrência das sangrentas disputas pelo mercado das drogas. Os principais confrontos acontecem na Chuy uruguaia e na Chuí brasileira, gêmeas situadas no extremo sul do litoral e separadas por uma avenida.
Chuy está entre as cidades com mais assassinatos no último ano e meio, no Uruguai. Ela e a brasileira Chuí registraram 23 homicídios e 10 tentativas de homicídio desde o início de 2017. Somadas, as localidades têm apenas 17 mil habitantes e isso representa crescimento de 233% no lado uruguaio dessa fronteira seca e de 136% no lado brasileiro.
Violência similar acontece em Rivera (Uruguai) e Santana do Livramento (Brasil), outra fronteira seca. Foram 127 homicídios e tentativas de homicídio desde o início de 2017, sendo 42 no lado uruguaio e 85 na parte brasileira. Lá, como no extremo-sul gaúcho, há uma disputa pelo domínio no tráfico. A diferença é que, além de serem cidades maiores — o que condiz com alto número de mortos — em Livramento, os assassinatos estão em queda, após pico em 2017 (veja os gráficos acima).
As taxas de homicídio nesses locais também são maiores que às do país. Em Rivera, está em 13,5 mortos por 100 mil habitantes (a região só não é a mais violenta por Livramento puxar a média para baixo). Em Chuy, 11,7.
Morte de brasileiro teria sido estopim das disputas por droga
O assassinato de Emerson Cunha Lima, 43 anos, o Pelezinho, conhecido pelo envolvimento com o tráfico em Chuí e Chuy, é apontado pela polícia como o início da da guerra do tráfico. O homem foi morto, em 6 de abril de 2018. Fã de futebol, jogador habilidoso – como o apelido indicava –, era proprietário de tendas no camelódromo local. E foi morto ali, às 14h. O assassinato foi rumoroso, uma vez que o local estava repleto de clientes quando o alvo foi morto com dezenas de disparos. Conforme as investigações das polícias de ambos os países, Matias Acosta Gonzales e Carlos Henry Oliveira Fretez, teriam chegado pelas costas e fizeram vários disparos contra Pelezinho, que foi socorrido, mas morreu a caminho do hospital. Dois pedestres, que nada tinham a ver com a disputa, foram atingidos, mas sobreviveram.
A dupla, que atuaria mediante pagamento para cometer crimes, fugiu para o Uruguai, onde ateou fogo a um Prisma usado na fuga. Por meio de interceptação de telefonemas e reconhecimento por parte de testemunhas, os dois foram identificados. Conforme a investigação da Polícia Civil gaúcha, eles trabalhariam para Washington Luís Mármol Silva, o Matias, que seria traficante no Uruguai e rival de Pelezinho na distribuição da maconha que ingressa no país vizinho pelo Chuí. O trio foi denunciado pelo Ministério Público e tem prisão preventiva decretada no Brasil — eles são considerados foragidos.
A morte de Pelezinho foi o ápice da disputa entre duas grandes quadrilhas dedicadas à exportação de drogas para o Uruguai e, na contramão desse fluxo, ao contrabando de armas de guerra para o Sul do Brasil. Ambos os grupos são formados por brasileiros e uruguaios — ou por gente das duas nacionalidades (os doble chapa, com raízes nos dois países).
Conforme policiais civis, federais e promotores de Justiça brasileiros, Pelezinho era, no Chuí, o gerente de um grupo de criminosos, chefiado por Lucian de Souza Oliveira, o Doutor, que está preso em Pelotas. Eles seriam aliados comerciais, na zona sul do RS, de uma facção da zona leste de Porto Alegre, conforme asseguram policiais uruguaios que investigam esse bando.
Já a quadrilha que seria liderada por Matias (o uruguaio Washington Mármol), seria receptadora de maconha enviada desde o Uruguai pelo PCC (Primeiro Comando da Capital). Essas ligações foram asseguradas ao GDI por policiais uruguaios, mas a PF brasileira diz que ainda procura mais provas do elo do submundo uruguaio com as facções brasileiras.
A vingança tramada em WhatsApp
Em operações distintas, as polícias Civil e Federal apreenderam celulares de criminosos que comprovam que a morte de Emerson Cunha Lima, o Pelezinho, culminou numa espiral de violência. Em conversas de WhatsApp, cuja cópia foi obtida pelo GDI, uma mulher gerente do tráfico relata que Matias Acosta Gonzales está por trás do assassinato de Pelezinho e recebe promessa de vingança dos aliados do traficante assassinado:
Foram os 'cachorros' do Matias, andam por aí, atirando por tudo...
Vamo matá os cachorros dele, tudo... Mandar um time para matar 3 do Matias agora. Vamos fazer uma limpa aí no Chuí.
Em poucos dias, dois integrantes da quadrilha de Matias foram mortos. Os diálogos foram anexados em inquéritos por homicídio que tramitam na Justiça, em Rio Grande. Nos celulares dos quadrilheiros, também foram encontradas dezenas de fotos de armamentos, incluindo granadas e fuzis. Armas em parte usadas nos homicídios que ensanguentaram o Chuí.
Disputas de facções
O avanço do tráfico é avassalador na fronteira. Em 2012 a Polícia Federal apreendeu ínfimas 42 gramas de maconha no Chuí e Santa Vitória do Palmar. Em 2016, saltou para 164 quilos da droga recolhida naquela região. Em 2017, 510 quilos. E em 2018, 1,6 tonelada da erva foi interceptada pelos federais. A PF prendeu 10 integrantes de quadrilhas binacionais numa operação em outubro, no Chuí.
Foi detectada também a presença de outra grande facção metropolitana na fronteira, enfatiza o delegado Mário Souza, da Polícia Civil gaúcha, que desencadeou em dezembro a Operação Terminus. Mais de 50 agentes do Departamento de Investigações do Narcotráfico (Denarc) prenderam três traficantes e desarticularam 10 bocas-de-fumo na fronteira (em Jaguarão, vizinha da uruguaia Rio Branco) e no Vale do Sinos. A investigação comprovou que traficantes da facção Os Manos (do Vale do Sinos e rival dos Bala na Cara) revendem maconha, na fronteira, por preço três vezes inferior ao estipulado pelo governo uruguaio nas farmácias e nos clubes “canábicos”. A droga vinha do Paraguai até o Vale do Sinos e era encaminhada, por ônibus e carros, para as cidades uruguaias de Melo, Rio Branco e Montevidéu.
Fazendas brasileiras e uruguaias eram usadas como ponto de passagem, mediante pagamento de suborno aos proprietários. As negociações, segundo o Denarc, eram feitas principalmente entre o uruguaio Juan Daniel Pereira González e Gelson Luís Lemos, o Porcão, investigado pela polícia por ser apontado como líder de Os Manos. Ambos foram presos. O traficante uruguaio Wiston Jean Barrios também foi preso.
Quando um inocente morre
Eram 13h de um dia abafado, 12 de fevereiro de 2018, quando o panfleteiro Carlos Alberto Stadnik Cardoso retomou, após o almoço, a rotina de distribuir folhetos publicitários no centro de Chuí. Nem teve tempo de ver o que o atingiu. Foi atropelado, pelas costas, por uma Tucson conduzida por um traficante que fugia da Polícia Federal.
O motorista bateu em Cardoso e ainda o arrastou por cerca de 30 metros, numa cena que traumatizou a quem assistiu.
— Abastecia, no posto de gasolina, quando escutei um estouro. Virei para trás e vi uma Tucson acertar um carro que tinha saído de um estacionamento oblíquo, arrancando depressa. Ela bateu noutro carro e parou, toda amassada. Só depois fiquei sabendo que o motorista enlouquecido era um traficante — descreve uma testemunha que assistiu ao atropelamento, encontrada pelo GDI em Santa Vitória do Palmar.
O traficante é Stievener Rodrigues e Rodrigues, o Stive, que já era monitorado pela PF por envolvimento no bando de Pelezinho e Doutor, traficantes da Zona Sul do RS que estão em guerra com uma quadrilha de uruguaios.
Stive tentou atropelar os federais que o cercavam e fugiu, mas foi preso em flagrante, minutos depois, por agentes da PF e PMs do Chuí. Ele tentou negar ser o motorista da Tucson, mas foi identificado pessoalmente e com base em filmagens de câmeras do posto de combustíveis. Continua preso e é réu por homicídio qualificado e tentativa de homicídio (contra os policiais).
Os federais estavam informados de que Stive carregava drogas na Tucson, mas se espantaram ao revistar o veículo. Transportava 555 quilos de maconha e outros 50 quilos de drogas diversas (cocaína e crack). Rumava para o Uruguai. Parte do pagamento seria em armas, outra em dólares, conforme investigações da PF.
— Um absurdo isso daí. O Chuí era tranquilo. Ficou violento por causa das drogas — desabafa a testemunha.