Acompanhe, em 10 passos, como foi o processo de legalização no Uruguai:
I. Proibição
A proibição das drogas é um fenômeno recente na história da humanidade. Até o início do século 20, elas eram vendidas nas farmácias, com fins medicinais. A Bayer comercializava heroína, a Merck era a maior fornecedora de cocaína. Conforme relatório da ONU, 25 milhões de pessoas usavam ópio em 1905. O primeiro tratado para controle de substâncias só foi assinado em 1912, em Haia, impulsionado pelos EUA. Foi a Convenção Internacional do Ópio, pela qual os países se comprometiam a controlar substâncias como a morfina e a cocaína. Em 1961, na Convenção Única sobre Entorpecentes, a cannabis foi incluída na lista.
Os resultados dessa política proibicionista são controversos. Como já havia ocorrido com a Lei Seca nos EUA (1919-1933), que criminalizou as bebidas alcoólicas, o consumo continuou na clandestinidade, promovido por organizações criminosas que guerreiam entre si. O narcotráfico tornou-se uma das maiores preocupações mundiais. Encheu presídios. Um de cada cinco apenados do mundo está sentenciado por delitos ligados às drogas.
No Brasil, a população carcerária pulou de 361 mil para 473 mil entre 2005 e 2009. O índice de condenados por tráfico, nesse período, passou de 9,1% para 19,22% do total de encarcerados. Havia, em 2009, 91 mil brasileiros presos por causa das drogas. No Uruguai, o índice rondava os 10% do total de reclusos.
II. O drama da violência
Em 2010, quando o ex-guerrilheiro José Mujica tornou-se o 40º presidente do Uruguai, o país estava em sobressalto por causa da violência. Para mais da metade da população, a insegurança, o crime e a droga haviam se transformado nos maiores problemas nacionais.
A percepção do aumento da criminalidade era confirmada pelas estatísticas. O número anual de roubos com violência pulara de 1.578, em 1985, para 21 mil, duas décadas depois. Os homicídios acompanhavam essa tendência. Haviam sido 190 em 2005, chegavam a 289 em 2015. Segundo as autoridades, 40% estavam ligados às guerras do tráfico. Entre 2012 e 2014, esses acertos de contas deixaram 162 mortos e 1.063 feridos. O governo sentia-se forçado a agir, e essa intervenção passava por examinar o problema das drogas.
III. O nascimento de uma ideia
O governo Mujica era amado pelas esquerdas, mas a inspiração veio de um ícone do liberalismo econômico, o norte-americano Milton Friedman. Ele defendera durante décadas que as drogas deveriam ser liberadas, argumentando que isso significaria, no caso dos EUA, reduzir pela metade a quantidade de presídios e de presidiários, evitar
10 mil homicídios ao ano e permitir que as pessoas tivessem segurança em bairros pobres. Argumentava que a proibição não reduzia o consumo, apenas gerava clandestinidade e guerra entre gangues.
O ex-guerrilheiro e líder tupamaro Eleuterio Fernández Huidobro, transformado em ministro da Defesa no governo Mujica, encontrou nas propostas de Friedman um norte para enfrentar a crise da violência no Uruguai. Concluiu que, legalizando a maconha, deixaria o tráfico sem seu maior mercado (conforme dados da ONU, dos 250 milhões de usuários de drogas ilegais do mundo, 180 milhões consomem cannabis).
Levou a ideia a Mujica, que gostou. E mandou Huidobro seguir adiante.
IV. Idas e vindas
A partir da proposta de Huidobro, uma comissão foi criada no governo uruguaio para discutir como seria a legalização. Em uma primeira versão, seria permitida a compra mensal de determinada quantidade. Para adquirir a droga, o usuário apresentaria um documento e entregaria o filtro dos baseados já fumados. O cultivo para consumo próprio não seria permitido, por ser considerado de difícil controle.
Nessa fase, Mujica insistia em que a legislação previsse também que os usuários de drogas pudessem ser recolhidos à força e internados de forma compulsória para tratamento – ideia que horrorizava ativistas, que consideravam-na contraditória com o princípio da legalização. Na campanha eleitoral, em 2009, ele já defendera a ideia e falava em enviar viciados para "picar pedras".
– Se não ages com vigor, não consegues nada – dizia.
Em junho de 2012, o governo finalmente apresentou seu pacote antiviolência, com 15 medidas. Entre elas, constava legalizar a cannabis. Em 8 de agosto, enviou ao Congresso um projeto de lei estabelecendo que o Estado assumiria "o controle e a regulação das atividades de importação, produção, aquisição a qualquer título, armazenamento, comercialização e distribuição da maconha e seus derivados".
V. Uma proposta contra o povo
Em dezembro de 2012, poucos meses depois do início da discussão no parlamento, o governo uruguaio encomendou uma pesquisa de opinião pública e descobriu que 64% dos uruguaios eram contra a legalização. Mujica argumentou que o apoio popular era fundamental e mandou que se pusesse freio no processo.
O esforço foi direcionado a conquistar esse apoio, por meio de uma campanha comandada por entidades da sociedade civil. A estratégia original era vender a ideia de que o Uruguai sempre estivera à frente em termos de garantia de direitos – voto feminino, divórcio, aborto – e que a legalização da maconha era um coroamento desse pioneirismo. Submetido a grupos de testes, esse discurso sofreu rechaço. Assustava os uruguaios.
Especialistas e militantes de diferentes partes do mundo, que tinham vindo ao Uruguai para ajudar na campanha, anunciaram o que devia ser feito. Para começar, nada de apresentar folhas de cannabis e usar a cor verde. Os spots tinham de ter as cores da bandeira nacional. A mensagem da defesa da liberdade individual, tão cara aos ativistas, também deveria ser deixada de lado. Era importante investir no discurso do uso medicinal, ao qual ninguém se opunha, e no dos efeitos na segurança pública. Dinheiro havia, e veio na maior parte de um outro ícone do capitalismo, o bilionário George Soros, que se tornou o 23º homem mais rico do mundo investindo no mercado de ações. Ele doou US$ 630 mil a instituições uruguaias, para que investissem em políticas de drogas (Mujica encontrou-o para uma conversa de 45 minutos, nos EUA, e recebeu promessas de ajuda). Outro doador importante foi o também bilionário Peter Lewis, dono de uma grande seguradora americana.
Com o mote Regulação Responsável, a campanha foi veiculada em 2013. Quando chegou ao fim, o apoio à legalização havia aumentado. Mas miseráveis três pontos percentuais.
VI. A tramitação
Apesar das pesquisas de opinião desfavoráveis, Mujica resolveu levar a legalização adiante. Em 31 de julho de 2013, o projeto de lei foi à votação na Câmara dos Deputados e passou por muito pouco. Foram 50 deputados favoráveis, 46 contrários e três ausências. Faltava o Senado.
As pressões eram fortes. Ao legalizar a maconha, o Uruguai transgrediria convenções internacionais sobre drogas das quais era signatário – e havia o temor de que pudesse sofrer represálias. Mas o governo desmontou essa argumentação lembrando que o maior defensor da política de guerra às drogas, os EUA, tem unidades federadas em que a cannabis estava legalizada, sem maiores consequências.
No Uruguai, também havia quem tentasse brecar a lei. Em novembro, uma delegação brasileira – formada pelo então deputado federal Osmar Terra (ex-secretário da Saúde do Rio Grande do Sul e atual ministro do Desenvolvimento Social e Agrário), pelo psiquiatra Sergio de Paula Ramos e pelo médico Marcelo Dorneles – chegou a viajar ao país para manifestar sua oposição contrária à legalização.
No dia 10 de dezembro de 2013, o projeto de lei foi votado. A acalorada sessão durou 12 horas. A lei foi aprovada por 16 votos contra 13. A maconha estava legalizada.
No dia seguinte, a Junta Internacional de Fiscalização de Estupefacientes (Jife) acusou o Uruguai de ter rompido com a ordem internacional.
VII. A hora de pôr em prática
O texto final da lei 19.172 estabelecia três formas legais de obter maconha. Cada usuário teria de escolher apenas uma delas. Poderia plantar para consumo próprio (com um máximo de seis plantas), participar de um clube de cultivo (com 15 a 45 sócios e até 99 plantas) ou comprar a maconha oficial (no máximo 40 gramas por mês, ou 10 por semana). Menores de idade ficavam excluídos. A publicidade estava proibida.
A lei não começou a valer de imediato. Só em maio de 2014 o governo publicou o decreto que regulamentava a nova legislação. Mesmo assim, havia pendências. A venda da maconha era a principal delas. Não se sabia quem produziria, onde aconteceria a venda e como seria o registro dos usuários.Para complicar a situação, era o último ano do governo Mujica.
Seu provável sucessor, o oncologista Tabaré Vázquez, do mesmo partido, estava longe de ser um entusiasta da legalização. Presidente entre 2005 e 2010, ele projetara o Uruguai internacionalmente ao adotar uma política de restrição ao fumo.
Na campanha eleitoral, fez uma declaração que deixou de cabelo em pé os consumidores de maconha: afirmou que o registro para compra da cannabis serviria para que o governo tivesse mais conhecimentos sobre os usuários e começasse mais cedo a reabilitação.
VIII. Produção e venda
O cronograma inicial previa que a venda da maconha oficial começasse em junho de 2015, mas o processo andava com lentidão sob a batuta do novo presidente, Tabaré Vázquez. Apenas durante o mês de outubro, o governo anunciou as empresas que haviam ganho a concorrência para produzir a erva: a International Cannabis Corp (ICC) e a Symbiosis, ambas formadas por capitais uruguaios e internacionais.
Elas deveriam produzir duas toneladas por ano, ao preço de US$ 1,30 o grama. Desse valor, US$ 0,90 ficavam com a empresa, US$ 0,27, com a farmácia e US$ 0,13, com o Instituto de Regulación y Control del Cannabis (Ircca). Os contratos só foram assinados em janeiro de 2016. Devido à demora, as empresas não conseguiram cultivar nos meses de mais luz e calor, e a primeira colheita rendeu só cem quilos.
Além da questão do cultivo, as autoridades precisavam desenhar como seria o registro dos usuários – e que garantias dariam de que eles não seriam identificados. Decidiu-se pelo reconhecimento biométrico, ou seja, não haveria necessidade de apresentar um documento no momento da compra. Os interessados teriam de se inscrever em uma agência dos Correios, apresentando identidade e comprovante de domicílio. Responderiam a um questionário anônimo e, no fim, deixariam a impressão digital. As inscrições começaram em maio de 2017.
Para garantir que sua privacidade seria preservada, os dados dos cadastrados foram colocados em um servidor de alta segurança, que só poderia ser acessado – por ordem judicial – com a presença simultânea de três chaves eletrônicas, de um total de sete distribuídas entre setores diferentes da administração. Tentativas de acessar o sistema sem as chaves fariam os dados serem encriptados.
Por pressão do Ministério da Saúde, ficou estabelecido que a cota mensal de 40 gramas não poderia ser adquirida de uma única vez – seriam permitidos 10 gramas por semana, para não haver risco de overdose. Em julho do ano passado, depois de vários adiamentos, a cannabis finalmente começou a ser vendida em farmácias uruguaias.
IX. Um balanço
No mês passado, o Ircca publicou o relatório Mercado Regulado da Cannabis, que oferece um balanço estatístico da política de regulamentação da maconha. O documento revelava que, em 5 de abril de 2018, 34.108 pessoas estavam habilitadas a ter acesso a maconha de forma legal. Desse total, 8.418 cultivavam a planta para consumo próprio, 2.529 eram membros de 90 clubes canábicos e 23.161 estavam cadastradas a comprar a erva em farmácias. Conforme as estimativas, 54% dos usuários uruguaios de maconha estavam tendo acesso à droga pela via legal.
O levantamento apontava que, dos compradores em farmácias, 49,5% dos usuários tinham entre 18 e 29 anos, 33% entre 30 e 44 anos e 17,4% acima de 45 anos. Os homens correspondiam a 70,4% do total. De cada três pessoas cadastradas, uma tinha nível superior de escolaridade.
Desde o início da comercialização em farmácias, em 19 de julho do ano passado, até o dia 5 de abril, venderam-se 150 mil pacotes de 5 gramas, totalizando 752.155 gramas vendidas. Dos 23.161 registrados para comprar, 17.567 efetivamente o fizeram, o equivalente a 75,8% do total.
X. Violência não diminuiu
Passados quatro anos, o objetivo declarado de golpear o narcotráfico e de reduzir a violência a ele associada não se concretizou. Pelo contrário, o Uruguai vive uma onda inédita de assassinatos, em grande parte relacionados com ajustes de contas entre traficantes rivais. Conforme as estimativas oficiais, essa foi a causa de 77% dos homicídios em 2012 (29% do total), 81 em 2013 (31% do total) e 127 no ano passado (45% do total). No primeiro trimeste de 2018, o índice chegou a 58%, de um recorde de 138 mortes violentas.
Em entrevista recente a uma emissora de rádio, o director nacional de Polícia do Uruguai, Mario Layera, reconheceu que o crime aumentou e que o narcotráfico não foi abalado pela legislação:
– No ano passado, registramos os maiores níveis históricos de apreensão de droga, o que nos leva a crer que o tráfico no Uruguai não se ressentiu de maneira notável.
Segundo a Brigada de Narcóticos, a droga mais apreendida em 2016 foi justamente a maconha – mais de quatro toneladas, em comparação com as 2,5 toneladas no ano anterior. Entre os observadores que têm se mostrado alarmados com a questão está o ex-presidente Julio Maria Sanguinetti. Embora não defenda uma revogação da lei, ele tem feito críticas severas à legalização em artigos recentes. "Como o mercado ficou maior, o narcotráfico não perdeu nada", escreveu. "E agregou, claramente, a cocaína e as drogas sintéticas, como o ecstasy. Tudo indica, além disso, que se internacionalizou a imagem de que o Uruguai é a nova Holanda, o paraíso da legalização das drogas, e então passamos a ser também um lugar de passagem importante. A lei de legalização produziu uma banalização generalizada do consumo de drogas."