Na seção Com a Palavra de 29 e 30 de julho, o psiquiatra Sérgio de Paula Ramos criticou a possibilidade de legalizar a maconha e afirmou, entre outras coisas, que o uso dessa droga na adolescência é uma "fábrica de losers".
Há três décadas tratando dependentes, o psiquiatra paulistano Dartiu Xavier da Silveira, 61 anos, tem outro ponto de vista. Voz ativa em defesa da legalização da maconha, ele coordena o Programa de Orientação e Assistência a Dependentes da Unifesp. Condena a política de proibição, por fortalecer o tráfico, e diz que o foco deve ser a dependência. Legalizar, acredita, permitiria estabelecer normas para o consumo, como ocorre com o álcool.
– A grande maioria dos usuários não se torna dependente. Isso é uma verdade – diz Dartiu. – Incomoda? Incomoda. Mas não estou dizendo "usem maconha à vontade".
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Por que o senhor é a favor da legalização da maconha?
A maconha hoje está liberada, o controle desse mercado está na mão dos traficantes. Em uma cidade como São Paulo ou Porto Alegre, tem até serviços de delivery: você liga e, em 15 minutos, vem um motoboy deixar maconha onde você quiser. Acho que a legalização é a forma de tirar o controle da mão do traficante e o Estado assumir. O proibicionismo não evitou que as pessoas usassem drogas ilícitas, a gente sabe que não funciona. O que ele faz é até pior: com esse mercado na mão dos traficantes, você não tem controle do que é vendido, a maconha pode ter uma outra substância tóxica misturada, como costuma acontecer, e não tem uma possibilidade de regulação e prevenção. O álcool é uma droga bastante perigosa, mas tem normas para o consumo. Com uma droga ilícita, como você pode fazer essas regras? Teoricamente, o uso é proibido, então se finge que ninguém usa. Não é que eu seja a favor da maconha ou ache que tudo bem usar maconha ou que as pessoas devam usar maconha. Não, eu acho que o proibicionismo das drogas traz mais males do que benefícios.
Que impacto a legalização teria no comportamento de usuários e não usuários?
Estudos preliminares em lugares onde a maconha foi legalizada, como em vários Estados americanos, mostraram que não houve aumento do uso. Em um dos Estados, houve até diminuição do uso pelos jovens. A gente tem outras experiências, por exemplo, na Holanda, onde a maconha não é legalizada, mas o país é bastante liberal em relação ao uso – curiosamente, existe uma diminuição mais marcante do uso pelos jovens. Ou seja, não é o fato de a droga ter um outro status, de legalidade, que vai fazer as pessoas usarem. Existem regras de consumo. A facilidade (do acesso) interfere, mas está muito maior agora com o proibicionismo. Se a maconha sair da mão do traficante, eu não vou poder comprar maconha em qualquer lugar, não vou mais ter delivery. Tem normas para regular esse mercado.
Então a legalização, na sua opinião, atenuaria os problemas relacionados ao tráfico de drogas.
Atenua muito, diminuem os riscos associados a esse consumo. De uma outra maneira, isso foi feito na lei seca americana, com o álcool. Todo mundo achou que, com o proibicionismo, diminuiria o número de pessoas que usavam álcool. Sim, e diminuiu, mas daquelas pessoas que usam no Natal, num aniversário. Quem era dependente continuou sendo dependente, só que passou a frequentar alambiques clandestinos, onde se produzia álcool de péssima qualidade, e essas pessoas tiveram doenças neurológicas e cegueira por uso de álcool contaminado. Ou seja, o proibicionismo gera formas mais perigosas de consumo.
O senhor condena a "guerra às drogas" e diz que as drogas não são um inimigo a ser combatido, e sim a dependência.
A guerra às drogas foi implantada pelo governo Nixon (Richard Nixon, presidente americano entre 1969 e 1974), na década de 1970, que foi quando se começou todo esse proibicionismo. Esse mercado não diminuiu, passou para traficantes, com a venda de produtos mais perigosos. Aí já não tem o controle do Estado sobre o que está sendo produzido, vendido e consumido. A guerra às drogas foi uma forma de autorizar a ingerência em países produtores. Foi quando os EUA começaram a bombardear campos de produção de maconha na Colômbia, só que com isso matavam também as plantações que as pessoas usavam para sobreviver. Pessoas tiveram câncer por causa desses tóxicos. A ingerência dos EUA no Panamá, em nome da guerra às drogas, na verdade era um interesse pelo Canal do Panamá. A guerra às drogas serve como mote para outras coisas que não têm nada a ver com drogas.
E é uma guerra perdida até agora.
Perdida. Não houve nenhum índice de melhora ou de sucesso em termos de eficácia.
Como seria a sua política ideal?
É até emblemático que o país que lançou a guerra às drogas esteja efetivamente legalizando a maconha, não só o uso medicinal, mas o recreacional também. Os americanos não são idiotas. Eles entraram nessa conversa do Nixon, mas têm pesquisas e viram que era ridícula essa guerra, (que estava) só causando mais mal às pessoas. Não resolveu em 50 anos, por que resolveria agora? No Brasil, o que dificulta é que a gente tem uma mentalidade muito reacionária. Copiamos modelos ineficazes por uma questão ideológica. Michael Klitzner avaliou o impacto da postura proibicionista nas escolas: a eficácia era nula. Pior ainda: na faixa de 12, 13 anos, os programas até estimulavam a curiosidade, e o uso aumentava quando os jovens eram submetidos àquele tipo de estratégia preventiva. O Brasil importou esse modelo depois dessa avaliação de ineficácia, que é o Proerd (Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência). Tem gente muito bem intencionada no Proerd, não estou fazendo nenhuma crítica à intenção das pessoas, só que o programa é baseado no modelo que foi cientificamente avaliado como ineficaz e foi importado depois da comprovação da ineficácia. Como se justifica isso? Só resta uma resposta: pela ideologia. Ele casa melhor com essa ideologia proibicionista reacionária.
E qual deveria ser a abordagem com adolescentes?
Precisa haver muito trabalho de prevenção, baseado em informações verídicas. A prevenção que se faz hoje em dia passa uma informação alarmista. Quem já usou drogas e ouve aquelas besteiras... Qual vai ser a reação da pessoa? "Eu sei que isso não é verdade, então não vou mais acreditar em nada que eles estão falando." Se eu começo um discurso e a pessoa já identifica que estou sendo alarmista, ela não vai querer saber o que vou falar na sequência. Se faço prevenção e digo a verdade... A grande maioria dos usuários de maconha não se torna dependente. Isso é uma verdade. Incomoda? Incomoda. Com isso eu não estou dizendo "usem maconha à vontade". Existe uma minoria que fica dependente, e dependência de maconha é grave. Se a pessoa for psicótica, pode desenvolver um quadro mental grave. Eu posso falar sobre prevenção falando a verdade, não preciso mentir.
Muita gente acha que a maconha é uma droga leve.
Não acho que a maconha seja uma droga leve, mas é mais leve do que o álcool. Tem um estudo do David Nutt que avalia vários tipos de riscos relacionados ao consumo das principais drogas, tanto para o usuário quanto para as pessoas que estão em volta. Numa escala de zero a cem, o grande campeão é o álcool, com uma nota de 70 e tantos. A maconha tem uma nota bem menor, de 20 e tantos, mas eu também acho alta. O que chama mais a atenção são drogas tipo ecstasy ou LSD, alucinógenos, que têm um nível de risco muito baixo, de sete. Essas drogas são proibidas também, são demonizadas por serem ilícitas e, na verdade, têm um nível de risco 10 vezes menor do que o do álcool. O que justifica esse proibicionismo, o que justifica essas estratégias de prevenção alarmistas, que não funcionam, se a gente tem essas evidências de que o risco é baixo?
O que o uso continuado da maconha pode provocar?
Primeiro, a maconha não deve ser usada por adolescentes porque pode alterar a formação de circuitos cerebrais. Os problemas de saúde derivados do uso da maconha são em pessoas que começaram na adolescência. Tem estudos americanos mostrando que quem começou a usar depois de adulto dificilmente vai ter algum daqueles problemas. A maconha é bastante segura para a população adulta, e é algo que não deveria ser usado pela população adolescente, porque tem riscos. Se tivesse uma legalização da maconha, eu poderia colocar esse paradigma como uma meta: não se vende, não se tolera o consumo de maconha para quem tem menos de 18 ou 21 anos. Um traficante não vai fazer isso, ele quer vender.
Então o uso não frequente da maconha – tem gente que gosta de fumar um baseado no final de semana, numa festa – não tem um custo para o organismo?
Não tem um custo se a pessoa for adulta e se não tiver uma história de psicose. Se você usar um cigarro de maconha a cada 15 dias, não vai acontecer nada com você. Agora, se você usar um cigarro de maconha ou mais todo dia, vai começar a ter problemas de concentração, de memória, de motivação. Existem padrões de consumo que são prejudiciais. A maconha também tem isso. A mesma coisa com o álcool: se você tomar uma caipirinha no final de semana, é uma coisa. Se você precisar tomar caipirinha todo dia, está numa faixa de risco diferente.
Há consumidores de álcool que não se tornam dependentes, há consumidores de maconha que não se tornam dependentes. Quais são os sinais da dependência?
Quando uma pessoa começa a beber, você nunca sabe se ela vai ser dependente ou não. Tem estatísticas: de cada cem pessoas que bebem, 15 ficam dependentes. Para a maconha, de cada cem pessoas que usam, nove ficam dependentes. Comparativamente ao álcool, é bem menor o risco de o usuário de maconha se tornar dependente. Mas eu nunca vou saber de antemão. O que a gente usa como regra geral para todas as drogas, seja álcool, seja maconha, seja cocaína: se você é usuário, tente fazer o seu uso dentro do contexto recreacional. Nem álcool, nem maconha, nem cocaína são coisas para você fugir de problemas ou para lidar com frustrações, depressão, ansiedade. É algo para ser usado de forma excepcional, não diariamente.
O que acha da experiência uruguaia, onde o Estado está permitindo o cultivo em alguns lugares e a venda é controlada, em farmácias?
É uma experiência bem interessante, vem muito ao encontro do que estou falando. A única coisa é que a gente ainda não tem um tempo de seguimento a longo prazo para saber realmente onde a coisa funcionou bem e não funcionou bem. Nos Estados americanos que legalizaram a maconha, já tem até estudos mostrando que, por exemplo, não aumentou o consumo dos jovens, coisa que as pessoas temiam que acontecesse. E as experiências de países mais flexíveis, tipo Holanda, Áustria, Suíça, também mostram que a tolerância com relação ao consumo de drogas ilícitas tem sido benéfica para os usuários.
Imagina o Brasil legalizando a maconha?
Imagino e lamento que isso demore tanto. Acho que a gente já deveria estar mais engajado nisso. Não tenho ideia (de quando), só lamento que a mentalidade das pessoas do Brasil – e não só da população em geral, falo até da comunidade científica – seja muito reacionária. Isso atrapalha até o desenvolvimento da ciência, você não consegue nem fazer pesquisa porque é malvisto se pesquisa drogas ilícitas.
O senhor é muito criticado por ser médico e defender a legalização?
Sou criticado pelos colegas brasileiros e sou bastante valorizado pelos colegas estrangeiros. (No Brasil) é bastante mais complexo. Meus colegas europeus e americanos vivem me convidando para congressos, para dar cursos fora. Sou professor da Universidade de Paris também. Existe toda uma valorização do questionamento desse modelo falido pela comunidade científica mais de ponta, mas aqui a gente segue uma visão muito mais alarmista.
Aqui é difícil estabelecer uma conversa sobre esse tema sem que envolva muita emoção, ideologia, convicções inabaláveis. É mais fácil ter esse tipo de discussão lá fora também?
Bem mais fácil. Aqui a situação pega numa questão muito ideológica. Tem gente que me trata como se eu fosse uma pessoa que está fazendo apologia do uso de drogas. De forma nenhuma. Eu trabalho há 30 anos com dependência química, sei o que é o sofrimento de um dependente. Na verdade, estou trabalhando não a favor das drogas, estou trabalhando a favor dos dependentes, para que uma política pública não traga para o dependente mais problemas do que ele já tem com sua dependência.
Anos atrás, o senhor realizou um estudo sobre redução de danos, muito comentado, em que usuários de crack passaram a consumir maconha para diminuir a fissura pelo crack. A pesquisa foi adiante?
Um grupo de pacientes nossos, dependentes de crack, falava: "Tudo o que vocês propõem, a gente não consegue, continuamos recaindo, usando crack, não conseguimos segurar a compulsão". Eles mesmos começaram a falar que a única forma de segurar a vontade era usando um cigarro de maconha. No começo, achamos aquilo uma besteira, mas quando começou a chegar um monte de dependente de crack contando a mesma história, (pensamos): vamos ver o que é esse fenômeno. O estudo foi muito ousado na época (1999). A gente falava para o paciente: se você não consegue controlar essa compulsão pelo crack de forma nenhuma, e a maconha dá certo, toda vez que você tiver essa vontade e perceber que vai perder o controle, você fuma o cigarro de maconha. Fizemos isso com muito receio, muito medo. Ficamos muito surpresos que 68% abandonaram o crack. Pessoas do mundo inteiro começaram a fazer isso nos seus países de origem e a me reportar: "Está dando certo aqui também, estou fazendo a mesma coisa que você". Não deu para levar adiante porque a gente tem essa mentalidade proibicionista. Estou retomando esse estudo, por coincidência, este ano, para estudar isso mais a fundo. A única coisa é que ainda não tenho toda a verba necessária para iniciar. A verba sempre foi difícil por causa do preconceito. Nos EUA, a gente vê muita gente fazendo isso e ninguém acha os pesquisadores malucos.
O senhor já experimentou maconha alguma vez?
Já experimentei, sim. Mas vou te dizer uma coisa... Não gosto nem um pouco, acho horrível o gosto. Para ser bem sincero, achei uma coisa aversiva. Eu não estou fazendo defesa por ser usuário e por isso acho importante dizer a verdade. Normalmente não falo sobre a minha vida pessoal para ninguém, mas acho que é bom para ficar bem pontuado que não estou fazendo defesa em causa própria.