"Hay cannabis."
A mensagem com essa frase curta foi enviada às 13h30min de uma quarta-feira de abril pelo carioca Elmadan Rodrigues, 29 anos. O melhor amigo dele, o potiguar Felippe Villar, 26 anos, vestiu uma camiseta regata do Flamengo, saiu às pressas do hostel onde trabalha e apanhou um ônibus para a viagem de 40 minutos entre o bairro de Carrasco e o centro de Montevidéu. Quando chegou à Rua 25 de Mayo, já havia uma centena de pessoas na fila da farmácia, uma das 14 que se credenciaram para vender maconha no Uruguai.
– Quando somos informados de que chegou uma remessa, o que geralmente acontece por WhatsApp, é importante vir o mais rápido possível, porque geralmente são uns 200 pacotes, que não suprem a todos os usuários – explica Felippe.
Havia gente de todos os tipos na fila: homens e mulheres, jovens e velhos, elegantes e maltrapilhos. Eles eram admitidos no interior do estabelecimento aos poucos, em grupos de cinco. Depois de mais de meia hora, chegou a vez do brasileiro.
– Hola! Qué llevas? – perguntou a funcionária, detrás do balcão.
– Qual son los tipos? – devolveu Felippe, em portunhol.
– Beta 2, que es sativa. Y alfa 2, que es índica.
– Uno de cada. Cuanto está salindo?
– Doscientos pesos el paquete.
– Perfecto!
A mulher estendeu um leitor biométrico, contra o qual Felippe pressionou o dedo. Ouviram-se uns tilintares eletrônicos, confirmando que ele estava autorizado para a compra.
– Ahí. Pronto. Te cobramos por aquí – orientou a atendente.
Felippe dirigiu-se ao caixa, desembolsou em moeda local o equivalente a R$ 50 e recebeu duas embalagens de plástico, de cinco gramas cada, a cota semanal a que cada pessoa tem direito. De volta à rua, caminhou uns quarteirões até a Plaza Constitución, cercada pelo calçadão da Rua Sarandí, pela catedral e pelo antigo Cabildo, onde os presidentes do Uruguai costumavam prestar juramento ao tomar posse. Buscou um dos pacotes dentro da mochila, abriu-o, retirou um bocado de erva e enrolou um cigarro. Fumou-o sem receios, sentado em um banco:
– É tranquilizante estar dentro da lei.
Originário de Natal (RN), Felippe faz parte de uma leva de brasileiros que foram viver no Uruguai, atraídos pela lei 19.172, aprovada em dezembro de 2013 e responsável por transformar o país no primeiro do mundo a legalizar o cultivo e a venda de maconha.
As autoridades uruguaias consultadas por ZH não forneceram dados sobre quantos imigrantes do Brasil se inscreveram para adquirir em farmácias, plantar ou participar de clubes canábicos – as três formas legais de ter acesso à substância. O que se sabe é que, entre outubro de 2014 e dezembro de 2017, 5.234 brasileiros obtiveram os documentos para residência permanente no país – um pré-requisito para ter acesso à droga.
Nem todos se mudaram por causa da cannabis – a crise econômica, a falta de segurança e o cenário político, bem como uma flexibilização das regras para obter a residência em outros países do Mercosul, também podem ter colaborado. Mas há brasileiros instalados no Uruguai que trocaram de país por causa da maconha. Deixaram para trás sua cultura, sua família, seu trabalho e seu idioma e tornaram-se imigrantes.
De Natal a Montevidéu
Felippe e seu amigo Elmadan chegaram em junho de 2017 a Montevidéu. No Rio Grande do Norte, moravam juntos e mantinham em casa um cultivo de cannabis, para consumo próprio. Temiam ser descobertos pela polícia.
– No Brasil, é perigoso, o medo é constante, estávamos sempre em situação de alerta – conta Elmadan.
Além da ilegalidade, os dois usuários se ressentiam do preconceito.
– Você é marginalizado. Tive muito atrito por causa disso. Por eu fumar, um tio apontou o dedo e me disse: "Você é um safado, não tem futuro". Você pode ser uma pessoa boa, ética, trabalhadora. Mas, se fumar maconha, no Brasil, vai esbarrar nesse tipo de coisa – afirma Felippe.
A partir da legalização no Uruguai, amigos começaram a viajar ao país, para ver como funcionava. No retorno a Natal, os relatos que faziam estimulavam o interesse da dupla. Eles começaram a sonhar com um cultivo dentro da lei. Juntaram dinheiro, desfizeram-se dos negócios no Brasil (Elmadan tocava uma escola de música eletrônica) e emigraram, sem nem ter lugar certo para ficar.
Desde então, os dois vivem em hostels de Montevidéu, onde prestam serviços. Já fizeram outros trabalhos. Mas, à parte um auxílio que Felippe deu num cultivo particular, ainda não têm as próprias plantas. Estão em busca de uma casa para isso. Por enquanto, abastecem-se de maconha na farmácia.
– Por mais que seja difícil ficar longe da família, a recompensa vem. É viver a legalidade, a sensação de liberdade, de não ter alguém que te olhe, que te aponte, que te xingue – diz Felippe.