Filósofo, jornalista, escritor e analista político, o francês Guy Sorman, 80 anos, é uma das maiores referências do pensamento liberal no planeta.
Também cidadão estadunidense, Sorman, que esteve em Porto Alegre em 2001 para participar do Fórum da Liberdade e em 2007 para palestrar no Fronteiras do Pensamento, mora hoje entre Paris e o Estado de Nova York, o que lhe confere ainda mais credenciais para analisar dois dos mais aguardados eventos políticos de 2024: a eleição legislativa da França, no último dia 7, e a eleição presidencial dos Estados Unidos, que ocorre em novembro.
Nesta entrevista exclusiva, Sorman também comenta a volta de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência no Brasil e o início do mandato de Javier Milei na Argentina. Confira:
Como a eleição na França teve uma reviravolta da extrema direita à esquerda em apenas uma semana?
O número de franceses que votaram na extrema direita foi mais ou menos o mesmo nos dois turnos, se manteve constante, aproximadamente um terço dos eleitores votou na extrema direita. Mas no parlamento, tudo depende das coligações, da combinação de votos, e houve um acordo entre o centro e a esquerda para deter a extrema direita. Por isso, a vitória do centro e da esquerda é consequência de uma estratégia tática para deter a extrema direita. Temos agora o que chamamos de parlamento suspenso, onde ninguém tem maioria e ninguém está em posição de governar sozinho. Houve uma ilusão, após o primeiro turno, de que a extrema direita venceria, mas isso não aconteceu devido à resistência tática dos partidos políticos que colocaram a resistência contra a extrema direita como uma prioridade.
Com o parlamento dividido em três forças, como será a governabilidade na França daqui pra frente?
Para a França é uma situação totalmente nova. Esta é uma posição recorrente no resto da Europa, é o caso da Alemanha, da Dinamarca, dos Países Baixos, mas é nova para a França. Agora, existem duas possibilidades. Poderemos ter um governo minoritário nomeado por Macron, este governo tentaria governar, e às vezes obteria os votos e às vezes, não. E a outra possibilidade é uma coligação entre o centro e a esquerda, e acho que é isso que a maioria dos franceses gostaria. O problema é que a esquerda está muito dividida.
Como você enxerga a posição de Macron depois dessa eleição?
A grande surpresa é que ele se saiu até bem, porque, como falei, nenhuma maioria clara emergiu desta eleição. De certa forma, Macron está em uma posição de arbitragem, o que lhe agrada, e a sua ambição sempre foi governar junto com a esquerda moderada e a direita moderada. De certo modo, ele está exatamente onde queria estar, bem no meio, ninguém pode governar sem ele. Também é preciso lembrar que na França a constituição dá enorme poder ao presidente, muito mais do que em qualquer outro país do mundo. Assim, pode fazer de tudo, incluindo nas relações exteriores, alianças militares, o apoio à Ucrânia e assim por diante.
Mesmo não sendo vencedora, a extrema direita recebeu muitos votos na França. Como você compreende esse fenômeno?
O aumento do número de eleitores de extrema direita é realmente impressionante, e há duas razões para isso. Marine Le Pen conseguiu, porque é uma boa estrategista, sem nenhuma ideologia real, tornar o partido dela respeitável, de certa forma. Ela também foi capaz de remover, não completamente, mas a maioria dos elementos racistas, xenófobos e antissemitas de seu partido. Não totalmente, parte deles ainda está lá.
A segunda explicação é que todos os outros partidos se mostraram extremamente decepcionantes. Quando se fala com o eleitorado de extrema direita, nem todos são fascistas, nem todos são nazistas. Alguns são, mas muito poucos. A maioria deles pensa: "vamos experimentá-los para variar, talvez sejam mais eficientes, talvez nos ouçam". Assim, há pessoas apenas curiosas para ver se este partido poderia entregar o que os outros partidos não entregaram. Por isso, de certa forma, o sucesso da extrema direita é um fracasso de todos os outros partidos.
Qual sua avaliação sobre o retorno dos trabalhistas ao poder na Inglaterra?
O Partido Trabalhista venceu as eleições, mas isso não significa que a população britânica tenha ido para a esquerda, significa que o Partido Trabalhista foi mais para a direita. Se olharmos para o programa, a plataforma do Partido Trabalhista é como a do (ex-primeiro-ministro) Tony Blair, basicamente estamos de volta ao livre mercado. Então, eles conseguiram vencer as eleições por dois motivos. Primeiro, as pessoas estavam fartas dos conservadores, que estavam no poder há 14 anos. Em segundo lugar, o Partido Trabalhista foi suficientemente inteligente para compreender que, se quisessem ser eleitos, precisariam ser muito mais moderados.
Você já declarou que um novo conceito de identidade está substituindo as ideologias. O que isso significa?
Essa noção de escuta e de revolta contra a elite é muito forte atualmente. Além disso, por todos os lados do planeta existe uma nova noção de identidade. É uma consequência da globalização, as pessoas estão redescobrindo suas identidades e, às vezes, é a única coisa que elas têm, é uma espécie de propriedade. Há pessoas que consideram que a elite está tirando sua identidade das suas mãos, por causa da imigração, da globalização, e sentem-se realmente ameaçadas.
O que as pessoas querem não é o partido de esquerda ou o partido de direita. Querem um Estado eficiente, um Estado que cuide delas, que as ouça.
Portanto, existe esta nova noção de identidade, que de certa forma é uma nova ideologia. Isso também está muito claro nos Estados Unidos. A campanha do (ex-presidente Donald) Trump baseia-se adequadamente nesta noção de identidade: "tenho uma identidade de homem, heterossexual" e coisas assim. E (o ex-presidente Jair) Bolsonaro também tinha tudo a ver com identidade. Assim, as ideologias desapareceram, mas esse conceito de identidade, que achávamos totalmente obsoleto, está voltando com muita força, e todos os partidos políticos têm agora de levar este conceito em consideração.
Como você observa a disputa entre Trump e Biden, principalmente à luz das críticas que Joe Biden vem recebendo em razão de suas condições físicas?
Trump está, e isso é claro, em uma posição muito forte. E por causa dos democratas, que se colocaram em uma posição difícil. Todos os dias ouvimos e lemos mais coisas sobre a saúde de Biden, e mesmo o New York Times e muitos democratas dizem que Biden deve sair da disputa, mas Biden não quer ir. Portanto, Trump está em uma posição muito forte, não necessariamente por sua causa, mas por causa do comportamento muito decepcionante de Biden. Joe Biden tem sido um ótimo presidente, mas ele não sabe, como todos os atores, quando é o momento certo para sair do palco.
Donald Trump seria mais radical em um eventual segundo mandato?
Em palavras, ele fala muito. Mas se você olhar o que ele realmente fez, fez muito pouco. Ele reduziu os impostos, mas John Kennedy fez o mesmo. Ele não começou nenhuma guerra, não parou nenhuma guerra. Basicamente, o homem é preguiçoso. Ele é preguiçoso, gosta de conversar, gosta de ser o centro das atenções, gosta de se ver na televisão, mas não é produtivo, e não há continuidade. Ele começou a conversar com a Coreia do Norte e de repente parou de conversar com a Coreia do Norte. Ele ameaçou os membros da OTAN de que os EUA deixaria a organização, mas não o fez. Portanto, a nossa sorte, de certa forma, é a preguiça de Trump e a incapacidade de dar seguimento às suas próprias ideias.
Contudo, talvez agora ele esteja rodeado de pessoas mais eficientes e com uma agenda mais extremista. Mas acho que ele ficará tão feliz por ser presidente novamente que se olhará no espelho e dirá: "eu sou o presidente novamente", e será isso. E também, como mencionei que o presidente francês é o presidente mais poderoso de qualquer democracia, nos EUA o presidente tem menos poder. Ele tem o poder de falar, mas, além do discurso, o presidente não tem tantos poderes. Portanto, a sua capacidade de mudar as coisas é mais modesta.
Os democratas deveriam ter preparado melhor a vice-presidente Kamala Harris para substituir Joe Biden?
Kamala Harris é desconhecida do grande público, mas este tem sido o caso de quase todos os vice-presidentes. Ela não é responsável pela sua própria invisibilidade, é uma invisibilidade da instituição. Agora, se Biden saísse da corrida e fosse substituído, então Kamala Harris provavelmente seria a candidata mais óbvia. E ela é muito boa, na verdade. Ela é uma debatedora dinâmica e extremamente qualificada, e seria uma adversária formidável para Trump. Mas outra questão seria: estariam os Estados Unidos prontos para aceitar uma mulher negra como presidente? Essa é verdadeiramente uma questão. Não é um país progressista, é um país muito conservador, cada vez mais. Portanto, não tenho certeza se eles estão prontos.
Kamala Harris seria uma adversária formidável para Trump. Mas outra questão seria: estariam os Estados Unidos prontos para aceitar uma mulher negra como presidente?
Quais são os principais tópicos impactando as eleições nos Estados Unidos? Economia, imigração, segurança nacional, aborto?
Bem, a economia vem em primeiro lugar. Você se lembra da famosa citação da campanha de Bill Clinton, "é a economia, estúpido"? Se você não entender que tudo se resume à economia, você perderá. E Trump está priorizando a economia, ele está dizendo: "sou um administrador melhor, os impostos serão mais baixos, os salários serão mais altos". Imigração, depende de onde você mora. No sul, a imigração, sim, é uma questão forte, mas em Nova York ninguém se preocupa com a imigração, querem mais imigrantes porque precisam de trabalhadores. Segurança nacional, sim, também é sempre importante. Aborto, não sei. Os democratas querem colocar o aborto no topo da sua agenda, mas se olharmos para as sondagens de opinião, essa não é uma prioridade. O aborto não fará um presidente.
Como Pequim e Moscou observam a eleição nos EUA?
Pequim e Moscou gostariam de Trump, porque Trump não é a favor dos Estados Unidos como interventor. Ele mal sabe onde está o resto do mundo. Portanto, prefeririam Trump devido à sua ignorância e porque ele é um presidente muito fraco nas relações exteriores. Ele sabe muito pouco sobre esse assunto, não é do seu conhecimento, e não é nisso que ele está interessado. E basicamente porque ele não quer interferir, ele não entende que os EUA deveriam interferir. Ele também parece ser contra a OTAN. Deixaria a Ucrânia de lado? Não tenho certeza, porque, mais uma vez, o presidente não decide tudo sozinho nos EUA. Portanto, se Trump disser que vai abandonar a OTAN, esquecer Taiwan e a Ucrânia, tenho certeza de que os militares o convenceriam de que isso colocaria em risco a própria segurança dos Estados Unidos.
Como avalia a presidência de Javier Milei na Argentina até o momento?
Ele é um desastre. Ele é um desastre para o seu país e é um desastre para o liberalismo. Por que ele é um desastre? Bem, eu olho para os números da produção na Argentina desde que ele foi eleito presidente, caiu mais de 5%, e reduzir o volume da economia em 5% em pouco tempo assim é impressionante. E, claro, as pessoas mais afetadas são as pessoas mais pobres. Claro, se você pertence à elite, se você tem muitos dólares, a vida está indo bem, e a elite, ou a burguesia na Argentina, sempre trabalhou no sistema do dólar, nunca usaram a moeda argentina. Então Milei, e as pessoas que apoiam Milei, dizem: "olha, a inflação caiu". Bem, a inflação hoje ainda é de quase 300% ao ano. Se você não tem nada para vender, se não tem comprador, os preços caem. Portanto, a diminuição da inflação é consequência da pobreza das pessoas que não têm dinheiro para comprar nada e, de qualquer forma, não há nada para vender. Assim, é absurdo dizer que esta política econômica é um sucesso.
Em segundo lugar, não se pode aplicar este tipo de violência às pessoas da noite para o dia, e sem explicar o porquê. Ser liberal exige que você explique para onde está indo, e você deve fazer isso com a participação da população, você deve debater com a população. Você deve discutir com seus oponentes, pois a base do liberalismo é a negociação, a discussão, a coalizão, e não impor como um ditador da noite para o dia que você não terá mais assistência social, sua escola será fechada, sua empresa será fechada e que o preço do metrô aumentará vertiginosamente. Não sei como isso vai acabar, mas não será bem.
E quanto ao terceiro mandato de Lula no Brasil?
Como ser humano, eu gosto dele, é uma personalidade muito calorosa. Como político, você sabe, um político precisa ter sorte, e quando Lula foi eleito presidente pela primeira vez, teve muita sorte, porque os preços das commodities, das exportações, subiram muito. Isso trouxe enormes lucros para o Brasil, e Lula foi capaz de redistribuir os lucros para as pessoas mais pobres do país, aumentando o bem-estar. Agora a situação é muito mais complicada, porque os preços mundiais estão em baixa e Lula não tem mais condições de redistribuir a riqueza como fazia antes. E acho que as pessoas estão um pouco decepcionadas com isso. Além disso, não entendo por que Lula quer fazer parte deste "sul global" e ser parceiro da Rússia e de outros. Quer dizer, Lula foi eleito democraticamente, é um democrata, disso não há dúvida. Portanto, estou realmente muito desapontado por ele se juntar a esta aliança de ditadores com uma ideologia bizarra. É uma decepção.