Guy Sorman é uma referência do pensamento liberal. Nascido em 1944, em Nérac, no sudoeste da França, tem cidadania norte-americana e é considerado um dos principais intelectuais contemporâneos. Em 2001, esteve em Porto Alegre como palestrante do Fórum da Liberdade e, em 2007, voltou para participar do Fronteiras do Pensamento. O filósofo, jornalista, escritor, cientista político e professor já teve como aluno eventual, em Buenos Aires, ninguém menos que Javier Milei, eleito no último domingo (19) o novo presidente da Argentina. Em entrevista exclusiva à coluna, Sorman revela suas impressões sobre Milei, compartilha expectativas em relação a seu futuro governo e aponta avanços e recuos da civilização.
Quais são suas impressões de seu ex-aluno Javier Milei?
Não tive uma relação muito próxima. Ele foi a algumas conferências minhas na Universidade de Belgrano, em Buenos Aires. Também temos uma relação comum com alguns economistas liberais. O problema com Milei é que ele usa o liberalismo apenas como um slogan, com palavras, mas não acho que ele realmente entenda o significado do termo. E também, o que é bastante típico de um tipo de ultraliberalismo na Argentina, é que eles não têm respeito pelas pessoas, não levam a sociedade em consideração, colocam sua ideologia em primeiro lugar. Um verdadeiro liberal tem de entender que pode ter ideias que parecem corretas, mas precisa pensar em como aplicar essa ideia em uma sociedade real. Esse é um trabalho que Milei ainda não fez. Ele, do liberalismo, apenas mantém, de novo, as palavras, o slogan, com ataques e violência extrema. Então, a loucura... Não sei se 'loucura' é a palavra certa, não sou psiquiatra. Não julgo o homem, mas intelectualmente ou politicamente, ser louco é não tentar adaptar suas ideias à realidade. E isso vai ser um grande problema no futuro, porque seu programa é totalmente teórico. Na realidade, não pode funcionar. Será que vai tentar aplicar mesmo assim? De qualquer forma, não tem suporte político. É uma situação muito perigosa para a Argentina. Entendo porque as pessoas votaram nele, queriam se livrar do peronismo. Quando Milei diz que o Estado é o problema, também entendo. Mas, a partir daí, as pessoas poderão ficar extremamente decepcionadas, porque talvez nada aconteça.
Acredita que Milei que ele tentará de fato dolarizar a economia, e fechar o Banco Central?
É impossível. Mesmo que adote a moeda dos Estados Unidos, ainda precisa de um banco central para regular o mercado. Há inflação porque o BC está imprimindo dinheiro, mas o BC está imprimindo dinheiro porque o governo da Argentina pediu, e o BC disse sim. Então, o problema não é a existência do BC, é a independência do BC. De qualquer forma, o futuro da Argentina hoje é totalmente imprevisível. Por um lado, talvez Milei se torne racional e diga 'ok, ganhei, agora vamos ser sérios e ver o que realmente pode ser feito'. Ou será totalmente irracional, o que temo, e vai tentar aplicar, mas não sei como.
Milei diz 'sou liberal' e começa a agir como louco, traz mais desordem à Argentina, e as pessoas que são antiliberais vão dizer 'viu, isso é o liberalismo em ação'.
Quais as consequências de Milei se dizer liberal, mas não se adequar ao conceito?
Milei diz 'sou liberal' e começa a agir como louco, traz mais desordem à Argentina, e as pessoas que são antiliberais vão dizer 'viu, isso é o liberalismo em ação'. Então, ter Milei como representante do liberalismo é terrível. E isso já começou, já comecei a ler na mídia, no New York Times e na mídia francesa, 'olha, esse é o liberalismo, um cara louco propondo dolarizar a economia'.
Como você vê o mundo hoje?
Sou otimista por definição, ou por estratégia. Temos uma saúde melhor em todo o mundo, as pessoas fazem mais refeições do que antes. Mais pessoas têm acesso a água limpa, a atendimento médico, vivem mais tempo. Isso é efeito da combinação da revolução científica e do empreendedorismo privado, então é um progresso. Claro, houve a pandemia de covid. Mas os cientistas foram capazes de produzir uma vacina em um ano, o que é um milagre médico e científico, que salvou milhões de vidas. Temos a mudança climática, que considero real. Não é fácil lidar com isso, mas há progresso. Nos últimos dias, na Califórnia, vi o primeiro gerador de eletricidade mininuclear. Com um gerador, é possível levar luz a toda uma cidade.
As pessoas não estão interessadas em racionalidade, querem emoção. Trump, Bolsonaro, Milei e Putin dão isso ao mundo: emoção e violência.
Tudo mudou para melhor?
No campo ideológico, é positivo que o comunismo, como ideologia, desapareceu. Ninguém promove. Talvez a China, mas não é muito claro, o caminho chinês é especial e difícil de entender. É uma ideia do passado. Na economia, todos concordam que o caminho é o mercado livre, o empreendedorismo privado, as fronteiras abertas. Nem Lula iria contra isso, então até Lula está fazendo progresso, e eu o conheço há 40 anos. Mas há algo novo, tremendamente assustador e violento, que é a política de identidade. É Trump, Bolsonaro, Milei, é apelar à paixão, não à razão. O trumpismo é uma ameaça para o mundo, e as guerras na Ucrânia e em Gaza são baseadas na identidade. 'Sou judeu, você é muçulmano, então vamos lutar, matar um do outro", ou 'sou russo, você é ucraniano, vamos matar um ao outro'. Regras internacionais não são respeitadas, ninguém se importa com as Nações Unidas. Bolsonaro e Milei são políticos de identidade, trazem violência para a sociedade. Sempre digo que a fraqueza do liberalismo é o o fato de ser muito racional. As pessoas não estão interessadas em racionalidade, querem emoção. Trump, Bolsonaro, Milei e Putin dão isso ao mundo: emoção e violência. Em alguns aspectos, a política de identidade substituiu o comunismo como paixão.
Disse conhecer Lula há 40 anos, como o avalia?
É uma carreira política notável. Não há equivalência com outros líderes globais, com carreira tão longa. Muitos vão da presidência à prisão, mas geralmente ficam lá. Sair e voltar é bastante excepcional. Conheci quando ele era um jovem líder sindicalista, na década de 1980. Era extremamente empolgado. Bebia muito café e fumava muitos cigarros. Tornou-se mais velho, mais silencioso, menos à esquerda e mais racional. E tem tido sorte. Napoleão, quando era imperador, dizia 'traga-me um general com sorte'. É um fator-chave na guerra e na política. Foi presidente na época em que os preços de exportações do Brasil estavam no auge. Foi por isso que conseguiu fazer uma política social bem inteligente. Usou a sorte de maneira racional. Nesta vez, teve menos sorte, pois a situação no mercado não é a mesma. Então, as pessoas poderão ficar desapontadas, porque não será capaz de distribuir lucros que não existem mais. Nunca espero muito de políticos. O que espero é que sejam calmos, temperados, racionais. E já é muito, sabe? Ter um líder calmo. Seria bom se Lula parasse de fazer declarações estúpidas nas relações internacionais. Ele diz ser parceiro de África do Sul, Rússia, China. É ridículo. O Brasil não tem nada em comum com esses países. Lula tem nostalgia de um mundo que desapareceu. E vem com esse conceito de 'sul global', que não significa nada. Sei que ele não vai seguir minha sugestão, mas ele deveria ser mais racional, porque os diplomatas brasileiros são muito bons. Entendo, mas é uma pena. O Brasil deveria ser orgulhoso de ser uma democracia e estar ao lado de outras democracias.
Então, meu elogio para Bolsonaro é 'obrigado, senhor presidente, você não fez nada'.
E como avalia a passagem de Bolsonaro pela Presidência?
Diria o mesmo que dizia sobre Trump: 'Graças a Deus, não fez nada'. Esses homens falam muito, mas não fazem nada. Você pode citar alguma reforma importante, uma mudança benéfica significativa na vida dos brasileiros? Nada. Então, meu elogio para Bolsonaro é 'obrigado, senhor presidente, você não fez nada'. E é bom, porque se tivesse atuado, teria sido terrível, poderia ter ocorrido uma guerra civil.
Vê possibilidade de nova eleição de Trump no próximo ano?
A política nos EUA pode mudar do dia para a noite. Jimmy Carter era considerado um bom presidente até que diplomatas estadunidenses foram feitos reféns no Irã e foi derrotado por Ronald Reagan. A situação atual é uma pena, porque Joe Biden é um bom presidente, talvez um dos melhores em muito tempo. Toma decisões muito racionais. Salvou a Ucrânia, gerencia o conflito em Gaza da melhor forma possível, e acertou ao tirar os militares do Afeganistão. As pessoas dizem que não faz o suficiente para a economia, mas isso é ridículo. A economia nos Estados Unidos não depende do presidente. Imagine se hoje tivéssemos Trump, em vez de Biden, como presidente. A Ucrânia não existiria mais, haveria um enorme império russo. Em Gaza, não sei o que Trump teria feito, talvez enviado uma bomba nuclear. Trump pode ser reeleito. O problema é ver se as instituições dos EUA serão fortes o suficiente para resistir.
Poder ser morto apenas por ser judeu é algo que sabia em teoria, porque foi o destino da minha família, mas não me via como vítima potencial. De repente, descobri que poderia ser vítima, só por ser judeu.
Como reagiu aos ataques do Hamas em Israel e como avalia a resposta de Israel?
Sou judeu. Não é central na minha vida, não pratico, mas sou judeu. Então, claro, minha primeira reação foi ficar horrorizado, porque boa parte da minha família foi morta na Segunda Guerra Mundial. Poder ser morto apenas por ser judeu é algo que sabia em teoria, porque foi o destino da minha família, mas não me via como vítima potencial. De repente, descobri que poderia ser vítima, só por ser judeu. Então, lembrei de que, às vezes, não me sinto judeu e, mesmo assim, as pessoas me veem como judeu. Minha segunda reação foi ter pena dos palestinos, porque estão nas mãos desses terroristas. Não têm governo legítimo. E esses pobres palestinos podem ser vítimas da extrema-direita de Israel, mas são mais vítimas da falta de governo legítimo. Então, as vítimas estão em ambos os lados. O Hamas está matando a solução dos dois Estados.
Como vê as contestações internas à União Europeia?
A União Europeia é um dos maiores sucessos diplomáticos e políticos de todos os tempos. Quando viajo para a Ásia ou a América Latina, as pessoas perguntam 'como conseguiram, alemães e franceses se matavam há mil anos, e, de repente, são irmãos?'. Para a minha geração, é a melhor coisa que poderia ter acontecido. Quando era jovem, parte da minha família morava na Bélgica. Para ir de Paris a Bruxelas, precisava de um visto e horas na fronteira. Hoje, meus filhos passam o fim de semana em Roma, Madri e Budapeste. São europeus. Criamos uma nova identidade. Os jovens se definem como europeus primeiro. São 'europeus e poloneses', 'europeus e italianos'. Agora, há tendências nacionalistas, mas são minoritárias. Os britânicos ajudaram muito, pois o Brexit foi um desastre. Ninguém mais quer sair da União Europeia.
*Colaborou Mathias Boni