Eduardo Marty é quase um conhecido dos gaúchos: tem milhagem em participações no Fórum da Liberdade, realizado todos os anos em Porto Alegre. Esse economista de 70 anos que defende ideias liberais desde a adolescência está satisfeito com a eleição de Javier Milei, mesmo reconhecendo que ele é um "recém-chegado" ao círculo e não é um liberal "perfeito" e "ortodoxo". Mas o vê como um homem "valente", que vai aplicar suas ideias, inclusive a extinção do Banco Central e a dolarização. À coluna, Marty relatou que já viajou com Milei, que lhe contou ter sido expulso de casa pelo pai aos 16 anos - com quem aparentemente se reconciliou publicamente no domingo de sua eleição. Agora, disse estar preparando as bases de uma reforma educacional na Argentina para se implementada pelo governo de Milei. Neste mês, Marty volta a Porto Alegre para um evento fechado do Instituto de Estudos Empresariais (IEE).
Como os liberais argentinos veem a eleição de Milei?
Alguns estavam um pouco relutantes pelo estilo excessivamente agressivo de Milei. É um jovem, pouco conhecido no ambiente, que usava muitos insultos, de forma quase palhacesca (de "palhaço"). Alguns conservadores liberais resistiram a esse recém-chegado, acostumados a um círculo pequeno. Mas ele popularizou essas ideias. Não professa um liberalismo perfeito, ortodoxo, mas é um homem valente, que conseguiu penetrar em setores que pareciam impermeáveis. E ganhou em 21 das 24 províncias argentinas.
O que se espera com a vitória de Milei?
Milei quer liberar preços e mercados. Ele compreende o funcionamento dos preços, da moeda, do crédito, do país. A Argentina tem uma média altíssima de inflação, já mudou cinco vezes seus símbolos monetários (a moeda). Agora, vai ter de tirar mais três zeros. É um país viciado em inflação, que só se cura fechando a instituição que provê a cocaína. O BC nunca consegue se libertar dos políticos e de sua voracidade fiscal. Quando impostos e dívidas não são suficientes, apelam para a emissão descontrolada de cédulas. Em poucos momentos, o BCRA teve autonomia, funcionou discretamente bem, como de 1935 a 1943, quandou a inflação anual era de 2%, e sob Menem.
Milei vai mesmo extinguir o BCRA?
Acredito que sim. O dólar é uma solução. É uma má moeda, mas perto do que temos feito com o peso argentino, por alguns anos nos daria estabilidade. Seria melhor adotar o ouro, ou o bitcoin, que o governo não teria poder de emitir. Mas é melhor do que o que temos hoje. É preciso entender para o que servem os bancos centrais. Em tese, são os prestamistas de última instância, ou seja, a quem acodem os bancos quando se tornam insolventes. Na Argentina, são os bancos que são pressionados para emprestar dinheiro. O BC foi um instrumento criado para financiar os políticos, a casta, como diz Milei. É uma ferramenta da casta.
O senhor mencionou corte de zeros, então não haveria dolarização?
Vai, sim. Mas vai demorar um ou dois anos para completar o processo. Antes, é preciso eliminar o curso legal (legislação que define a moeda nacional como única que pode ser aceita). Ao permitir que as transações se façam em pesos, reais, dólares ou na moeda que as pessoas desejem, vai se dar o primeiro passo. Naturalmente, as pessoas vão se voltar para o dólar. E, na medida que seja possível, os pesos vão sendo absorvidos. Como hoje o BCRA tem reservas negativas, hoje não tem a base monetária que permitiria a dolarização. Mas tem bônus do Tesouro, emitido pela nação, de US$ 80 bilhões. Milei poderia tentar transferir ou vender esses bônus, na medida que tenham credibilidade. E ele pode gerar essa credibilidade. Nas próximas semanas, Milei deve viajar a Israel e aos Estados Unidos, seus dois melhores aliados. Vai buscar apoio, suporte intelectual. E dólares, vai buscar nos EUA. Vai tratar de gerar essa confiança. Depois, estima-se que os argentinos tenham entre US$ 200 bilhões e US$ 400 bilhões depositados em colchões, em São Paulo, no Uruguai, em Miami, na Espanha, para se proteger da voracidade fiscal. É considerado o segundo país do mundo, depois da Rússia, em quantidade de dólares per capita no mundo.
Então, com o fim do BC e a dolarização, como fica o Mercosul?
Milei está a favor do livre comércio. Acredita que a ideia de que, quando se permite o livre comércio, o conjunto da sociedade se vai prejudicar, é empurrada por industriais protecionistas, que gostam de caçar no zoológico. Fazem produtos caros e de má qualidade para mercados cativos. Muitos até são capazes de competir, mas se acostumaram ao pseudomonopólio. Então, Milei que abrir o comércio, e o Mercosul é um sistema de barreiras de proteção de quatro países. Milei gosta do experimento chileno (o país tem alíquota de importação baixíssimas, adotadas no governo Pinochet, tanto que, por isso, não pôde aderir ao Mercosul). Milei seguramente vai propor a abertura de importações e exportações, ainda que seja gradual. As poucas concessões que fez a industriais é a redução do número de impostos - de 167, vai deixar oito ou 10 - e a redução das alíquotas. Também pretende mudar a lei do contrato de trabalho, que impede de contratar "en blanco" (dentro da lei). Vai tirar os sindicatos do meio.
Na Argentina, onde os sindicatos são muito poderosos, isso não vai significar piquetes todos os dias?
Sim, vai ter. Mas se não está disposto a enfrentar problemas, que não dispute a presidência, nem defenda mudanças. Há segredos da política para lidar com os sindicatos, que Menem conseguiu usar. Existem contribuições sociais obrigatórias que sustentam planos de atendimento à saúde. Foi criado pelos governos militares, que fizeram tanto dano na Argentina. Se são cortadas, os sindicatos ficam sem fundos, e sem o poder tremendo que têm. É uma arma formidável para negociar. Além disso, o fato de não ter havido greves no atual governo, que tem inflação de 140%, desprestigiou os sindicatos. É preciso se embarrar. Se não mudar nada, não tem conflitos de curto prazo, mas terá de longo prazo. O país está doente, quebrado.
Que Milei você conheceu?
Ele saiu de casa aos 16 anos, tem um grande ressentimento. É um homem muito inteligente, aprende rapidíssimo. Todos contribuímos com livros e conselhos. Agora, estou envolvido com a reforma do sistema educativo. Queremos dar responsabilidade aos pais para que possam escolher conteúdos, professores, financiamento. Hoje são decisões tomadas por um politburo em Buenos Aires, baseado no pobrismo de Bergoglio (Jorge, ex-cardeal de Buenos Aires e hoje Papa Francisco).
Como Milei deve se posicionar sobre a relação com o Vaticano?
Benegas Lynch, um liberal que nos educou a todos, propôs romper romper relações, mas Milei afirmou que, dada a característica muito católica dos argentinos, não é o mais indicado. Mas ele se cansou de criticar a postura anticapitalista do papa, que fala em distribuição de recursos, em igualdade. Isso é pobrismo. Milei diz que seu ídolo é Steve Jobs, não Madre Teresa nem Che Guevara.
Qual Milei deve governar, o agressivo da campanha ou o mais sereno do discurso de vitória? No Brasil, havia expectativa de moderação de Bolsonaro, o que não ocorreu.
Ele tem convicções profundas e sabe mais do que Trump e Bolsonaro. Entende dos princípios. Ele entende a importância das ideias e está disposto a aplicá-las. Ele não é um fundamentalista irracional. Mas há pressões quando se chega ao governo. Será preciso ver o quanto resiste. Mas, no mínimo, vai ajudar a frear o declínio da Argentina, a viagem ao precipício. Se ainda eliminar a inflação, será um sucesso.