Qualquer que fosse o resultado da eleição deste domingo (19) se poderia definir a Argentina como um romance inacabado de Gabriel García Márquez. Porque o realismo fantástico esteve presente do primeiro ao último ato da eleição. O próximo presidente será Javier Milei, de La Libertad Avanza, um candidato que até dois anos atrás não existia no cenário político argentino. Um economista que se define como anarcocapitalista e que irrompeu como um vulcão nas primárias de agosto, derrubando as previsões dos institutos de pesquisa.
Milei superou Sergio Massa, ministro da Economia de um país em colapso. Na ficção de García Márquez seria natural o principal ministro deste país dilacerado chegar ao segundo turno, mas no mundo real um caso como o da Argentina é raro e de difícil explicação.
Com um discurso ultraliberal, Milei fez campanha prometendo dolarizar a economia e acabar com o Banco Central. Chamou o papa Francisco de “enviado do maligno”, disse que romperia com o Vaticano e que não negociaria com a China, com o Brasil ou com qualquer país governado pela esquerda, o que eliminaria alguns dos principais parceiros comerciais da Argentina.
Com o resultado das primárias, Milei chegou às vésperas do primeiro turno como favorito para vencer no primeiro turno, mas outra guinada a la García Márquez voltou a derrubar as previsões dos institutos de pesquisas. Massa venceu o primeiro turno com quase sete pontos de vantagem sobre Milei, o que em votos nominais passa de 1,7 milhão.
Aqui entra um fator decisivo para explicar a vitória de Milei (ou a derrota de Massa): a terceira colocada foi Patricia Bullrich, da aliança Unión por el Cambio, apoiada pelo ex-presidente Mauricio Macri, que há quatro anos perdeu a eleição para o atual presidente, Alberto Fernández.
Patricia e Macri não só declararam apoio a Milei, como ajudaram o candidato a moderar o discurso. Usaram como argumento a necessidade de varrer o kirchnerismo da Argentina e passaram a borracha nas críticas feitas aos arroubos de Milei. Havia dúvida se haveria transferência automática dos votos, o que garantiria a vitória matemática de Milei — líderes da coligação de Patrícia se dividiram, aumentando a incerteza.
Escaldados por dois erros em sequência, os institutos de pesquisas chegaram ao segundo turno fechados em um empate técnico. A maioria mostrava Milei à frente, mas em alguns Massa aparecia em primeiro. Com 99,18% da apuração concluída, Milei tinha 14.465.577 votos (55,69%), enquanto Massa somava 11.505.612 votos (44,3%). A diferença superior a 10 pontos percentuais surpreendeu.
No único debate entre os dois, Massa se saiu melhor, de acordo com os analistas argentinos, mas a meta dos partidários de Milei era que ele saísse vivo, dado que está acostumado a falar sozinho em seu canal no YouTube e não tem experiência em debates.
Massa fez uma campanha definida por Milei como “do medo”, acenando com o caos em caso de vitória do candidato liberal. No debate, o governista lembrou de suas propostas extravagantes, como acabar com a educação e a saúde públicas, cortar os subsídios que ajudam os pobres a sobreviver com a inflação a 142% e até a liberar a venda de órgãos, definida por ele como “um mercado a mais”.
Aconselhado por Macri, que deverá ser uma espécie de eminência parda no seu governo, e orientado por uma equipe de marketing que corrigiu os erros de rota doprimeiro turno, o leão virou um gatinho. Terminou a campanha prometendo manter a educação e a saúde públicas, abrandou o discurso contra o Papa, disse que manterá relações de Estado com o Vaticano e não falou mais em venda de órgãos.
Mais do que por seus méritos, Milei ganhou pela combinação entre a força de Macri e a desastrosa condução do país pelo governo Fernández, do qual Massa é ministro da Economia. A herança do governo peronista é uma inflação de 142%, o derretimento do peso, o aumento da pobreza, que chega a 40%, o endividamento sem controle e um dado de última hora: a falta de insumos básicos para a saúde diante da dificuldades de importação, porque o país não tem dólares para pagar os credores.