Responsáveis pela denúncia criminal do Ministério Público (MP) no caso da boate Kiss, os promotores Joel de Oliveira Dutra e Maurício Trevisan acompanham de longe — e em silêncio — o desfecho jurídico da maior tragédia do Rio Grande do Sul. Oito anos e 10 meses depois do incêndio que matou 242 pessoas e deixou mais de 600 feridas, ambos se desligaram do processo após um período difícil e preferem não falar sobre o assunto.
Os dois ingressaram no MP no mesmo concurso, em 1996. Tomaram rumos diferentes até se tornarem colegas em Santa Maria — onde Dutra chegou em 1999 e Trevisan, em 2007. Coube à dupla a hercúlea tarefa de examinar as 13 mil páginas do inquérito policial e de elaborar o parecer do MP na esfera criminal. A denúncia foi apresentada em abril de 2013, e eles seguiram no caso até 2019.
O desligamento do processo ocorreu a pedido da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM). Isso ocorreu depois que pais de mortos na danceteria foram processados por promotores — incluindo Dutra e Trevisan — por calúnia e difamação.
Na ocasião, Paulo Carvalho, um dos pais, publicou textos criticando o que definiu como “corporativismo” e “protecionismo” dos promotores, que se sentiram ofendidos e reagiram. Carvalho e outros pais nunca aceitaram o fato de que o MP deixou de fora da denúncia uma série de nomes apontados pela Polícia Civil. Dos 28 responsabilizados pelos delegados Marcelo Arigony e Sandro Meinerz, os promotores denunciaram sete e incluíram um nome que não estava na lista.
Com aval de Dutra e Trevisan, o MP também arquivou pedido de apuração envolvendo o promotor Ricardo Lozza (autor do termo de ajustamento firmado com a Kiss em 2011, que levou à instalação de espuma na boate) e o processo de improbidade administrativa que incluía o ex-prefeito Cezar Schirmer. Após a publicação da reportagem, o MP enviou nota dizendo que a decisão de arquivar a apuração contra Lozza "foi do procurador-geral de Justiça, único com atribuição para atuar nestes casos". Na nota, a instituição informa ainda que Dutra não teve participação nas apurações relativas aos casos de improbidade administrativa, apenas na área criminal.
Os promotores sempre sustentaram o embasamento técnico e a fundamentação jurídica do trabalho realizado, mas tudo isso deteriorou as relações com a associação.
Hoje, Dutra segue em Santa Maria, atuando como 1º promotor da Promotoria de Justiça Cível do município. Trevisan transferiu-se para Porto Alegre, onde coordena o Centro de Apoio Operacional de Defesa da Ordem Urbanística e Questões Fundiárias.
Procurados por GZH, eles preferiram não se manifestar sobre o processo, a vida pós-Kiss e o júri, em respeito aos colegas que assumiram o caso. Os réus — Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, sócios da boate, e Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão, integrantes da banda Gurizada Fandangueira — irão a julgamento em Porto Alegre a partir de 1º de dezembro.
Os quatro são acusados pelo MP de terem agido com dolo eventual (quando se assume o risco de matar) pela morte de 242 pessoas na madrugada de 27 de janeiro de 2013. Os quatro respondem, também, por tentativa de homicídio em razão dos 636 feridos na tragédia.
O que diz o MP sobre o caso
Em nota, o Ministério Público declara que os promotores não foram afastados ou desligados de suas funções no caso da boate Kiss a pedido da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM). Conforme o órgão, "ambos deixaram de atuar no caso por decisão pessoal".
O MP informa ainda que a decisão de arquivar o pedido de apuração sobre a atuação do promotor Ricardo Lozza em inquérito civil envolvendo a Kiss (motivado por perturbação do sossego da vizinhança) não teve qualquer aval de Dutra e Trevisan e "foi do procurador-geral de Justiça, único com atribuição para atuar nestes casos".
O MP ressalta que o termo de ajustamento de conduta (TAC) firmado com os donos da casa noturna em 2011 não levou à instalação de espuma na boate, "pois não há qualquer referência à colocação de espumas no TAC". O argumento relacionado à espuma faz parte da defesa de réus do caso.
O MP corrige a informação de que Dutra tenha tido participação nas apurações relativas aos casos de improbidade administrativa. Ele atuou apenas na área criminal. Já o promotor Maurício Trevisan, junto da promotora Ivanise de Jesus, promoveu "o arquivamento parcial do inquérito civil no que se referia à conduta dos servidores municipais e do prefeito Cezar Schirmer". Esse inquérito, conforme a nota, "teve sequência e foi conduzido pela promotora Jocelaine Dutra Pains, a qual, após mais algum tempo de tramitação, ratificou a promoção de arquivamento", mais tarde homologada pelo Conselho Superior do Ministério Público.