Um elemento ficou latente no auditório lotado em que promotores de Santa Maria apresentaram a denúncia do incêndio da boate Kiss: a frustração com o fato de o Ministério Público ter responsabilizado menos pessoas do que as apontadas pela Polícia Civil.
Ao assinar as 36 páginas do documento no qual foram denunciados sete (um oitavo não constava nas conclusões da polícia) dos 16 indiciados no inquérito policial, os promotores tinham consciência de que haveria desagrado.
- A frustração vem na mesma medida do tamanho da expectativa que foi criada antes, e que não foi criada pelo MP. Fizemos uma análise técnica e estamos tranquilos em relação a nossas decisões - sustentou Maurício Trevisan, um dos promotores à frente do caso.
No começo da apresentação da denúncia, o subprocurador-geral para Assuntos Institucionais do MP, Marcelo Dornelles, avisou:
- Há divergências em relação ao entendimento da polícia e que são naturais da atividade.
Dornelles introduzia um tema que os promotores já sabiam que iria, ao menos num primeiro momento, repercutir negativamente.
- O MP está fazendo um trabalho técnico. Divergir da polícia ocorre em centenas de casos. A diferença é que eles não têm a mesma repercussão deste de Santa Maria. Se o promotor não puder analisar o inquérito, questionar, divergir, não precisa existir. E o MP existe para também discordar, eventualmente não agradar, mas fazer o certo - atestou Dornelles.
Por trás da defesa da decisão, estão dezenas de detalhes técnicos não esmiuçados durante o anúncio da denúncia, mas que vão permear os desdobramentos do caso. Trevisan e o colega Joel Oliveira Dutra pediram mais investigações em relação a Marlene e a Ângela Callegaro, mãe e irmã de um dos sócios da Kiss, Elissandro Callegaro Spohr.
- Não encontramos no inquérito elementos que as liguem com o poder de decisão sobre os fatores causadores da tragédia, que são a espuma e o fogo acionado. Elas foram indiciadas pela polícia com os mesmos argumentos que valeram para Elissandro e o outro sócio, Mauro Hoffmann, de que tinham poder de mando. Se formos pensar automaticamente, que o que vale para um deve valer para o outro, então poderíamos supor que elas deveriam estar presas assim como os dois sócios estão. No entanto, a polícia nunca cogitou pedir essas prisões, apesar de dizer que elas têm a mesma responsabilidade que os dois - exemplifica Trevisan.
Quantos a agentes da prefeitura, os promotores explicam terem feito um "encadeamento dos atos". Ao cruzar documentos do inquérito com leis municipais e com o funcionamento da máquina pública, Trevisan e Joel concluíram, por exemplo, que o fato de o alvará sanitário da Kiss ter ficado vencido por um tempo sem que houvesse providência da prefeitura em nada contribuiu para a tragédia.
- A inspeção sanitária é para ver, entre outras coisas, se as lixeiras do banheiro abrem com o uso do pé ou da mão. Se a boate tivesse sido fechada pela falta desse documento, abriria 15 dias ou um mês depois e ainda assim estariam presentes nela as circunstâncias que contribuíram para o incêndio e as mortes, como os guarda-corpos, pois são itens que não fazem parte da inspeção sanitária - diz Trevisan.
Para David Medina da Silva, coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal do MP, o trabalho do MP está apenas começando:
- Nem de longe se imagina que isto que aconteceu em Santa Maria possa passar em branco, a exemplo de outras tragédias que ocorreram. Não está passando em branco nem passará em branco. Nós estamos começando um trabalho na responsabilidade penal. Há outras formas de responsabilidade que também virão à tona.
Confira a lista dos denunciados pelo MP:
Denunciados por homicídio doloso e tentativa de homicídio
Homicídio qualificado por fogo, asfixia e torpeza
- Elissandro Spohr, o Kiko (preso), 30 anos. Empresário de era um dos sócios da Kiss. Natural de Santa Rosa, morava em Santa Maria com a namorada, que está grávida. Chegou a cursar duas faculdades na cidade natal - Artes Visuais e Administração - , mas não se formou em nenhuma. Já trabalhou como ator e na empresa GP Pneus, que tem vínculo com sua família. Além de dono da Kiss há quatro anos, também era cantor da banda Projeto Pantana.
- Mauro Londero Hoffmann (preso), 47 anos, empresário e um dos sócios da Kiss. Nascido em Santa Maria, vive com a companheira e tem uma filha. Na década de 80, formou-se em Administração pela UFSM. Morou em São Paulo e na Europa, e voltou a Santa Maria, onde começou a vida de empresário da noite. Em 1989, abriu o bar Grafiku's. Tornou-se sócio e depois dono da boate Expresso 362, e da Bus Club. Na mesma época, manteve outras casas, como a Grecos. Em 1996, ano em que a Bus Club incendiou, começou a trabalhar com raspadinhas e loterias instantâneas. Depois, fundou o Absinto Hall, que foi bar na Rua Coronel Niederauer e, depois, boate no Monet Plaza Shopping, onde funcionou até janeiro deste ano. Nos anos 2000, criou o Absinto Arena que fechou. Em 2012, virou sócio da Kiss e, recentemente, havia aberto a Cervejaria Floriano.
- Luciano Bonilha Leão (preso), 35 anos, produtor da banda Gurizada Fandangueira. Natural de Porto Alegre, é casado, tem Ensino Fundamental completo e era responsável por projetar o palco e deixá-lo pronto e em condições para o show. Cuidava da segurança da banda. Também trabalhava como telemoto em Santa Maria.
- Marcelo de Jesus dos Santos (preso), 32 anos. Vocalista da banda Gurizada Fandangueira. É casado e mora em Santa Maria. Além de músico, durante a semana também trabalhava como azulejista.
Denunciados por fraude processual
- Gerson da Rosa Pereira , oficial do Corpo de Bombeiros, o major é chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros. Segundo a polícia, teria incluído documentos na pasta referente ao PPCI da Kiss após o incêndio.
- Renan Severo Berleze, 31 anos, é natural de Santa Maria. Sargento dos bombeiros, tem Ensino Superior incompleto e é casado. Berleze atua no 4º CRB há 10 anos. Inicialmente, trabalhou em combate a incêndios. No entanto, desde 2005, o militar atuava na Seção de Prevenção a Incêndio (SPI). Ele não trabalhou na madrugada do incêndio, mas foi indiciado pela Polícia Civil por incluir documentos na pasta referente ao PPCI da boate.
Denunciados por falso testemunho
- Elton Cristiano Uroda, ex-sócio da boate Kiss.
- Volmir Astor Panzer, contador da GP Pneus, empresa da família de Kiko. Tentou omitir quem era o sócio investidor da Kiss.
Confira aqui o relatório do inquérito encaminhado pela Polícia Civil
VÍDEO: polícia apresenta vídeos que embasaram indiciamento criminal
VÍDEO: a homenagem aos filhos de Santa Maria
Clique na imagem e confira o perfil das 241 vítimas:
Como aconteceu
O incêndio na boate Kiss, no centro de Santa Maria, começou entre 2h e 3h da madrugada de domingo, dia 27 de janeiro, quando a banda Gurizada Fandangueira, uma das atrações da noite, teria usado efeitos pirotécnicos durante a apresentação. O fogo teria iniciado na espuma do isolamento acústico, no teto da casa noturna.
Sem conseguir sair do estabelecimento, pelo menos 240 pessoas morreram e mais de 100 ficaram feridos.
A tragédia, que teve repercussão internacional, é considerada a maior da história do Rio Grande do Sul e o maior número de mortos nos últimos 50 anos no Brasil.
Em gráfico, entenda os eventos que originaram o fogo:
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