Da tragédia que matou 242 jovens na fatídica madrugada de 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria, nasceu uma nova e arrojada legislação de segurança e prevenção contra incêndios. Oito anos depois, apesar de flexibilizações, prorrogação de prazos e de entraves culturais e econômicos que ainda impõem resistências e desafiam a aplicação da norma, a Lei Kiss é considerada um marco por especialistas.
O debate sobre o tema teve início dias depois da catástrofe, movido pelo entendimento de que era preciso rediscutir as regras para evitar a repetição do pesadelo. Em 11 meses, a lei complementar nº 14.376 seria aprovada por unanimidade na Assembleia Legislativa gaúcha.
Em Brasília, a discussão ainda se arrastaria por anos. Após meses no limbo, a legislação federal receberia a chancela do então presidente Michel Temer em 2017, com vetos. No RS, o texto foi sancionado na íntegra pelo governador Tarso Genro, mas logo passou por ajustes.
Em 2016, a Assembleia aprovou um novo projeto — encaminhado pelo governador José Ivo Sartori a pedido de setores produtivos —, modificando as obrigações de empreendimentos de baixo e médio risco de incêndio para agilizar a liberação de alvarás. Uma das novidades foi a criação do Certificado de Licenciamento do Corpo de Bombeiros (CLCB), um documento virtual, autodeclaratório (baseado em informações registradas pelos próprios donos), voltado a estabelecimentos de menor risco com até 200 metros quadrados e no máximo dois pavimentos.
Desde então, essas edificações não precisam mais passar por análise e vistoria, ainda que continuem sujeitas a fiscalização e penalidades. A medida não vale para locais como danceterias e casas de show, mas foi o suficiente para desencadear uma série de críticas, que se ampliaram em 2019. Na época, o prazo para adequação à lei foi prorrogado em quatro anos (exceto para boates e espaços que concentram público).
Os deputados cederam às pressões de setores que venderam a ideia de uma legislação muito rígida, quando, na realidade, era uma das mais avançadas do mundo.
ADÃO VILLAVERDE
Autor da Lei Kiss
— Com o passar do tempo, infelizmente, o manto do esquecimento foi tomando conta. A lei foi mutilada. A sociedade deu guarida a isso, e os deputados cederam às pressões de setores que venderam a ideia de uma legislação muito rígida, quando, na realidade, era uma das mais avançadas do mundo — lamenta o ex-deputado estadual do PT, Adão Villaverde, engenheiro civil, autor da Lei Kiss e professor da PUCRS.
Ainda assim, especialistas apontam avanços em relação ao passado. Comandante-geral do Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul, o coronel César Eduardo Bonfanti cita um exemplo simples para ilustrar a evolução:
— Antes, a prefeitura podia fornecer alvará de funcionamento sem que o proprietário do estabelecimento tivesse o alvará do Corpo de Bombeiros. Isso mudou. A nova lei ampliou as responsabilidades e levou a uma procura por regularização, sem contar que os prédios construídos desde então são infinitamente mais seguros.
Coordenadora do Curso de Especialização em Engenharia de Segurança Contra Incêndio da UFRGS, Ângela Gaio Graeff concorda. Representante da universidade no Conselho Estadual de Segurança, Prevenção e Proteção Contra Incêndio — órgão normativo e consultivo criado pela nova legislação —, a professora define a Lei Kiss como uma mudança de paradigma.
É claro que as flexibilizações preocupam quem é da área técnica, mas não há dúvidas de que a lei vem contribuindo para tornar as edificações mais seguras.
ÂNGELA GAIO GRAEFF
Coordenadora do Curso de Especialização em Engenharia de Segurança Contra Incêndio da UFRGS
— É claro que as flexibilizações preocupam quem é da área técnica, mas não há dúvidas de que a lei vem contribuindo para tornar as edificações mais seguras. É importante destacar, principalmente, a introdução de conceitos sobre os quais pouco se falava antes e que fazem toda a diferença — pondera a pesquisadora.
O novo regramento passou a considerar a carga de incêndio dos prédios, ou seja, o material que há dentro deles e seu potencial calorífico, e não mais apenas a geometria e o uso das edificações como critério para as intervenções exigidas. O texto também contempla medidas que não apareciam ou não recebiam destaque na lei estadual anterior, de 1997, como controle de fumaça, avaliação de segurança estrutural, atenção aos tipos de materiais usados em acabamentos e revestimentos e compartimentação das edificações.
Desafio maior é cultural, avalia especialista
Se os avanços são indiscutíveis, isso não significa que inexistam obstáculos. A principal dificuldade continua sendo a adaptação de imóveis antigos que não se enquadram nas flexibilizações (tanto pelas dimensões quanto pelo nível de risco), ainda mais em tempos de crise econômica.
Foi por isso que, em 2019, entidades empresariais pediram mais tempo para a regularização e foram atendidas pelo governador Eduardo Leite — mesmo sob protestos da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria e de entidades como o Sindicato dos Engenheiros do Rio Grande do Sul (Senge-RS).
Os estabelecimentos passaram, então, a ter até 27 de dezembro de 2023 para a instalação de todas as medidas de segurança e a obtenção de alvará dos bombeiros. Mas, antes disso, precisam concluir uma primeira etapa, prestes a vencer: são obrigados a apresentar, até 27 de dezembro deste ano, o Plano de Prevenção contra Incêndio (PPCI), entre outras ações.
Embora não exista um controle oficial sobre quantos empreendimentos ainda não cumpriram a medida, o comandante-geral do Corpo de Bombeiros prevê complicações.
Muitos prédios ainda não se adequaram e correm o risco de notificação, multa e interdição.
CORONEL CÉSAR EDUARDO BONFANTI
Comandante-geral do Corpo de Bombeiros
— Muitos prédios ainda não se adequaram e correm o risco de notificação, multa e interdição. O nosso conselho é: procurem os bombeiros para, ao menos, dar início ao processo — diz o coronel Bonfanti.
O maior desafio, na avaliação da professora Ângela Graeff, é cultural.
— Quando a gente fala em segurança contra incêndio, as pessoas muitas vezes não entendem que isso é necessário para bem de todos. É difícil convencê-las de que não é um gasto: é um investimento. Precisamos superar essa cultura. É um caminho longo, que exige persistência, mas é o caminho certo — ressalta a pesquisadora.
A nova legislação
- Em 26 de dezembro de 2013, entrou em vigor, no RS, a lei complementar nº 14.376, conhecida como Lei Kiss
- De autoria do então deputado estadual Adão Villaverde (PT), o texto foi elaborado a partir de discussões na comissão especial criada para debater o tema na Assembleia Legislativa, com a ajuda de especialistas
- Foram 11 meses de tratativas, envolvendo diferentes setores da sociedade, com o objetivo de revisar as normas de segurança, prevenção e proteção contra incêndios no Estado
- Ao final, a nova lei substituiu o antigo regramento sobre o assunto, de agosto de 1997, ampliando e tornando mais duras as exigências para evitar novas tragédias
- Em 2014, foi publicado o decreto que regulamentou os dispositivos da nova lei; também foi nessa época que o texto começou a sofrer as primeiras alterações
- A principal modificação ocorreu em 2016, quando foram flexibilizadas as exigências para empreendimentos de baixo e médio risco de incêndio
- Outra mudança importante ocorreu em 2019, quando o governo do Estado decidiu prorrogar em quatro anos o prazo-limite para adequação à Lei Kiss
- Na esfera federal, apenas em 2017 foi sancionada lei semelhante, pelo então presidente Michel Temer, seguindo a mesma linha da lei gaúcha