As mesas ainda estão em pé, como que à espera de clientes. São os únicos móveis intactos em meio à escuridão que marca o cenário da maior tragédia gaúcha, o interior da boate Kiss, em Santa Maria. O resto é como uma cena de guerra: chão repleto de copos, caliça, pedaços de roupa e cacos de vidro, como constatou a reportagem de GZH ao ingressar na danceteria na tarde da quarta-feira (10).
A visita ao palco da destruição aconteceu 21 dias antes do júri a que serão submetidos os quatro acusados pelo incêndio que consumiu a danceteria, em 27 de janeiro de 2013, matando 242 pessoas e fazendo com que mais de 600 buscassem atendimento médico por intoxicação provocada pela fumaça.
O local, apesar do incêndio e tudo o que ocorreu lá dentro, ainda está, de certa forma, preservado. Não foi destruído, pois, caso necessário, durante o julgamento, testemunhas poderão ser conduzidas até o prédio.
A visitação aconteceu com permissão da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, que desde 2013 luta para que os responsáveis pelo incêndio sejam julgados. O prédio da boate foi cedido pela prefeitura de Santa Maria à associação, e, futuramente, o terreno deverá abrigar um memorial em homenagem às vítimas.
O presidente da entidade, Flávio Silva, não pôde guiar a reportagem, pois está em repouso por recomendação médica, além de muito abalado com a proximidade do julgamento. Ele autorizou que um representante abrisse a danceteria por alguns minutos.
O primeiro choque, com a abertura da porta, é a escuridão. Ela é permanente desde aquela madrugada de 2013, quando o sistema de iluminação foi desligado em meio ao incêndio. É preciso iluminar tudo com a lanterna do celular e com os flashes do fotógrafo Lauro Alves, de GZH. Familiares de vítimas acreditam que alguns dos objetos encontrados no interior da boate, especialmente pedaços de roupa, possam ter sido deixados no local por vândalos.
O cenário é fantasmagórico, com pedaços do forro de gesso arrebentados e pendurados sobre a pista de dança. A escassa luminosidade mostra um ambiente caótico. Copos plásticos espalhados pelo chão, vidro quebrado, caliça por toda parte. Buracos em alguns lugares onde os bombeiros e voluntários martelaram, na tentativa de dar vazão à fumaça que asfixiava os frequentadores da danceteria. Impossível deixar de notar o banheiro, arrebentado, onde dezenas de pessoas entraram, pensando que teria uma saída, e lá encontraram a morte.
O segundo impacto é o cheiro. Mesmo passados quase nove anos, ainda lembra um forno apagado, recendendo a picumã (fuligem). Mesmo de máscara (contra a covid-19), o odor de fumaça é envolvente.
O terceiro abalo vem com as barras de metal em curva, próximas à porta que era a única abertura para os frequentadores da boate (servia de entrada e saída). Os canos estão soldados ao chão, ainda hoje. Era um brete, para impedir que clientes saíssem sem pagar. Virou armadilha intransponível, como relatam sobreviventes que tentaram sair e ficavam entalados na estrutura tubular metálica.
Hoje, as danceterias possuem cerquinhas de cordas com postes móveis, mas na época do incêndio, na Kiss, era tudo afixado com parafusos. Um obstáculo mortífero.
A realidade é que a experiência de ingressar na boate (ou seria sepulcro?) onde morreram 242 pessoas é sinistra, para dizer o mínimo. Sufocante. Até o silêncio é impactante. A vontade é de sair correndo. Ver o céu. Buscar luz. Algo que muitos jovens frequentadores da fatídica madrugada de 27 de janeiro de 2013 tentaram - e não conseguiram.