Na madrugada de 27 de janeiro de 2013, a boate Kiss, em Santa Maria, na região central do Estado, pegou fogo, matando 242 pessoas e deixando outras 636 feridas. Passada quase uma década, amigos e familiares estão prestes a ver um desfecho para o caso. O júri dos quatro réus, acusados de serem os responsáveis pelos mortos e feridos, está marcado para começar no dia 1º de dezembro, em Porto Alegre, e deverá ser o mais longo da história do Judiciário do Rio Grande do Sul.
No julgamento, serão apresentados os materiais apreendidos ao longo do caso, que estarão à disposição da defesa e da acusação. Faltando 48 dias para o início do julgamento, GZH teve acesso, com exclusividade, a todos esses objetos.
São nove caixas e 20 sacos plásticos com uma série de itens. Todo o material estava no depósito criminal da Comarca de Santa Maria e chegou neste ano a Porto Alegre, onde está guardado no Foro Central. O conteúdo está numerado e, por meio dessa identificação, está detalhado no processo.
Serão julgados os sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, e os músicos Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão. Eles respondem por 242 homicídios e 636 tentativas de homicídio, das vítimas que sobreviveram ao incêndio.
Comanda, fogo de artifício e espuma acústica: os objetos apreendidos
Alguns objetos estão intactos. Outros, parcialmente danificados por resistirem ao incêndio. Há ainda materiais que foram apreendidos ao longo da investigação e da tramitação do processo criminal.
Parte dos objetos passou por perícia pelo Instituto-Geral de Perícias do Rio Grande do Sul (IGP). Pelo menos dois itens devem ser explorados no júri: um fogo de artifício e parte da espuma acústica usada na boate — os materiais foram responsáveis pelo início do fogo que terminou na tragédia.
A espuma escura está dentro de um saco plástico lacrado, aparentando ter sido parcialmente queimada. Os fogos de artifício, sem sinal de terem sido danificados, estão em duas pequenas caixas — uma da Chuva de Prata e outra Árvore de Natal.
Artefato pirotécnico semelhante a esses foi usado pela banda Gurizada Fandangueira naquela noite de janeiro de 2013. São fogos de artifício sem som, que trazem luminosidade e que deveriam ser usados somente em ambientes abertos, mesmo que sejam utilizados rotineiramente em ambientes fechados. A banda, por exemplo, usava os fogos desde 2009 em suas apresentações, conforme disse, em depoimento à Justiça, o ex-vocalista Marcelo de Jesus dos Santos. O músico segurava o artefato que provocou o início do incêndio. O fogo de artifício havia sido acionado pelo produtor da banda e também réu Luciano Bonilha Leão.
Em outro saco plástico, há uma pilha de parquets que não estão danificados — provavelmente é o que sobrou do piso da boate. Uma série de comandas com o logotipo da Kiss também está intacta. Nelas constam os itens à disposição para venda naquela noite, como cerveja, refrigerante, água mineral, energético, doses de bebidas destiladas, petiscos e combos. Numa das extremidades, há um aviso para quem perdesse esse item durante a festa: "A perda desta comanda implicará no pagamento de R$ 300".
Frequentadores da boate, naquela noite, disseram que foram impedidos de sair por seguranças quando o fogo estava ainda no início, por não terem pago o que tinham consumido. O chefe de segurança, Everton Drusião, em depoimento à Justiça, no entanto, negou essa informação.
— Primeiro a gente achou que era briga, mas em questão de segundos vimos que era fogo e abrimos as portas imediatamente — disse Drusião na oportunidade, garantindo que nenhum funcionário barrou a saída dos frequentadores exigindo as comandas de consumo.
Em outra caixa, há um lote de pulseirinhas de identificação com o logotipo da Kiss, de várias cores, com a palavra "VIP"; algumas delas também têm com o termo "Acesso Livre". O crachá de Luciano Bonilha Leão, que era assistente de palco da Gurizada Fandangueira, está numa das nove caixas, também intacto. Há uma série de documentos e recibos sem qualquer dano.
Tudo que lembra aquele 27 de janeiro de 2013, o dia que os nossos filhos foram massacrados dentro daquela boate, mexe com o emocional. Dentre esses materiais, pode ter algum pertence dos nossos filhos.
FLÁVIO SILVA
Presidente da AVTSM
Um casaco e um pendrive estão em outra embalagem. Num outro saco, há isopor. Em outra caixa, o que restou do revestimento em gesso da estrutura interna da boate. Num saco lacrado, há um objeto que parece ser um ventilador queimado. Em outro, uma garrafa de cerveja vazia, também intacta, dentro de um recipiente térmico. Há, ainda, madeira e fios queimados.
Os objetos poderão ser utilizados pela defesa e acusação a qualquer momento do júri. Tanto nos depoimentos de testemunhas e réus, quanto nos debates. Estão previstos os depoimentos de 30 testemunhas e dos quatro réus. O juiz Orlando Faccini Neto preferiu não se manifestar neste momento sobre o julgamento. Em junho, em entrevista a GZH, no entanto, projetou que o julgamento “não terminará em dois ou três dias” e que não sabe se “passa de 12 ou 15” dias.
Até então, o júri de maior duração no Estado foi o que resultou na condenação dos quatro réus acusados de matar o menino Bernardo Boldrini, de 11 anos, crime que aconteceu em abril de 2014. Foram cinco dias de sessão no Foro de Três Passos, em março de 2019.
O que dizem as partes
Mauro Londero Hoffmann
O advogado Mario Cipriani lembra que o momento de utilização dos objetos apreendidos depende da estratégia da defesa e da acusação.
— A nossa defesa pretende utilizar parte desses materiais. Tanto que eu já fui até o depósito judicial, já identifiquei os materiais que eu pretendo utilizar. E o juiz já disponibilizou a ordem para que esses materiais fiquem disponíveis desde o início até o final do julgamento. Ou seja, acessível a qualquer tempo para os que tiverem trabalhando no plenário — adianta Cipriani.
Luciano Bonilha Leão
O advogado Jean de Menezes Severo diz que vai utilizar tudo o que for necessário para demonstrar a inocência de Luciano.
— Só que neste momento, devido à proximidade do júri, eu não posso te informar tudo que a gente pretende utilizar no plenário. Mas, sim, nós vamos demonstrar com o que foi apreendido, com os nossos pedidos que foram feitos para juntar outros elementos no processo, que o Luciano é completamente inocente dessa injusta acusação — afirma Severo.
Elissandro Callegaro Spohr
O advogado Jader Marques disse que não pretende utilizar os materiais apreendidos.
Marcelo de Jesus dos Santos
A advogada Tatiana Borsa preferiu não se manifestar.
Ministério Público
A promotora Lúcia Helena Callegari disse que o Ministério Público analisou, duas vezes, os materiais que estão no depósito. Também afirmou que pretende utilizar parte deles em plenário.
Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM)
O presidente da entidade, Flávio Silva, diz que a utilização dos objetos durante o júri vai mexer com o emocional dos familiares.
— Tudo que lembra aquele 27 de janeiro de 2013, o dia que os nossos filhos foram massacrados dentro daquela boate, mexe com o emocional. Dentre esses materiais, pode ter algum pertence dos nossos filhos. Isso vai nos remeter ao 27 de janeiro de 2013. É muito doloroso cada vez que a gente passa por esse tipo de situação — diz Silva.
Flávio Silva perdeu a filha Andrielle Righi da Silva, que comemorava o aniversário de 22 anos com outras cinco amigas que também acabaram morrendo na tragédia. Ela recém havia passado no vestibular para Design Industrial.
Assistente de acusação
O advogado Pedro Barcellos, que representa a AVTSM e é assistente de acusação, diz que não pretende usar os materiais apreendidos.
— A assistência não vê, neste momento, importância de mostrar (esses objetos) aos jurados, porque eles podem ser relatados, já que constam no processo como materiais recolhidos, apreendidos. Então, não há necessidade de ir lá e mostrar para as pessoas. Até porque as pessoas vão relembrar, principalmente as vítimas que restaram vivas — adianta Barcellos.
Como ocorrerá o júri
O júri dos quatro réus do caso Kiss está marcado para começar em 1º de dezembro. Inicialmente ocorreria na Comarca de Santa Maria, onde o processo tramitou. No entanto, após julgamento de recurso, foi transferido para Porto Alegre.
O local escolhido pelo titular da ação penal após discussão do tema com a administração do Tribunal de Justiça, juiz Orlando Faccini Neto, do 2º Juizado da 1ª Vara do Júri da capital, foi o auditório do Foro Central de Porto Alegre, que ainda passa por melhorias. O espaço comportará cerca de 200 pessoas. Também está prevista transmissão em vídeo para quem não puder comparecer presencialmente. A AVTSM chegou a pedir que o julgamento ocorresse num local maior, mas o magistrado manteve o julgamento no Foro.
Tudo indica que os trabalhos serão realizados em três turnos — manhã, tarde e noite — com intervalos entre eles, não avançando na madrugada.
As etapas do júri
Sorteio dos jurados
A primeira etapa do júri é a formação do Conselho de Sentença. Nesse momento, sem a presença de público, são sorteados sete jurados de um total de 150 pré-selecionados.
Depoimentos das testemunhas
O próximo passo, já com a presença de público no auditório, é o depoimento de testemunhas arroladas pelas partes. Primeiro as indicadas pela acusação e depois as indicadas pelas defesas. Serão 30 no total. As vítimas sobreviventes iniciam os relatos, seguidas pelas demais.
O juiz é quem inicia as perguntas, depois a parte que arrolou a testemunha, seguida das demais. Ou seja, se o Ministério Público indicou a pessoa a ser inquirida, ele pergunta após o magistrado, seguido do assistente de acusação e dos advogados dos réus. Se a testemunha foi arrolada pelas defesas, o juiz pergunta primeiro e depois o advogado que fez a indicação, dando sequência aos demais. Não há limite de tempo para cada depoimento.
Interrogatório dos réus
Depois das testemunhas, os réus Elissandro Callegaro Spohr, Mauro Londero Hoffmann, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão serão interrogados. O juiz começa perguntando, seguido do Ministério Público, assistente de acusação e das defesas. Não há limite de tempo para cada depoimento.
Debates
Logo após os 34 depoimentos previstos, começam os debates da acusação e defesa. O juiz Orlando Faccini Neto definiu o tempo de seis horas para Ministério Público e assistente de acusação defenderem suas teses. As mesmas seis horas serão divididas entre os advogados dos réus. Ou seja, cada um terá uma hora e 30 minutos para manifestação. Também foram definidos pelo juiz os prazos para réplica e tréplica. Serão mais quatro horas para réplica e outras quatro horas para tréplica. Há recursos pendentes de julgamento para reduzir esse tempo.
Decisão dos jurados
Após os debates, juiz, os sete jurados, Ministério Público, assistente de acusação, advogados e um oficial de justiça vão para a chamada sala secreta. No local, os jurados vão votar os quesitos. Em recente despacho, Orlando Faccini Neto determinou prazo de até oito horas para votação. Após a votação dos quesitos, os réus serão considerados culpados ou inocentes.
Sentença
Após a decisão dos jurados, o juiz elabora a sentença do processo, que é lida no plenário. Alguns magistrados finalizam a sentença em seus gabinetes ou em outra sala antes de fazer a leitura da peça para as partes e o público. Outros já vão com as possibilidades já encaminhadas e partem direto da sala secreta para o plenário. Em caso de condenação, são estabelecidas as penas de cada réu. Também na sentença o juiz definirá se os réus saem do plenário presos. Os quatro respondem em liberdade neste momento. As partes poderão recorrer da sentença ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.