Há seis meses, um grupo de criminosos executava o maior assalto do Estado. Com fardas policiais falsas e armamento de guerra, eles invadiram o Aeroporto Hugo Cantergiani, em Caxias do Sul, e tentaram roubar R$ 30 milhões. O dinheiro de um banco vinha do Paraná em um avião e seria transportado por carros-fortes. A ação na noite de 19 de junho resultou no roubo de R$ 14,4 milhões e na morte do 2º Sargento da Brigada Militar (BM) Fabiano Oliveira, aos 47 anos.
Uma investigação de 70 dias da Polícia Federal (PF) resultou no inquérito e, posteriormente, na denúncia de 19 pessoas à Justiça por parte do Ministério Público Federal (MPF). Com o andamento do processo criminal, detalhes do crime surgiram, como o envolvimento de duas facções, a fuga em uma van escolar e até um possível ensaio para ação criminosa. A reportagem teve acesso à denúncia do MPF. Confira os detalhes:
O crime
Na noite do crime, a ação se iniciou um pouco antes das 19h, quando nove criminosos se aproximaram do aeroporto caxiense em três caminhonetes pretas - uma Frontier, uma Outlander e uma Santa Fé. O voo com os R$ 30 milhões chegaria 19h na aeronave de modelo King Air C90 Gti.
Para acessar a pista, os bandidos uniformizados caracterizaram os dois primeiros veículos com emblemas da PF e acessórios como o giroflex. A intenção era enganar funcionários e vigilantes do terminal. O terceiro veículo ficou em frente ao portão 2 do aeroporto para servir de apoio na fuga.
A ação, como registraram as câmeras do Hugo Cantergiani, começou exatamente às 19h27min, no mesmo portão. Primeiro, os bandidos fizeram três pessoas de reféns para acessar a pista. Quando entraram na área, a transferência dos malotes do avião para os carros-fortes não havia terminado.
Com armamento de guerra, como fuzis .50, o grupo iniciou a troca de tiros com os seguranças da empresa de transportes de valores até conseguir rendê-los. A partir dali, os assaltantes ordenaram que o copiloto e os seguranças retirassem o dinheiro do avião e colocassem nas caminhonetes. Conforme a denúncia do MPF, um dos criminosos atirou na perna de uma das vítimas, já rendida, apenas por considerar que ela estaria demorando com esse transporte.
Com o dinheiro, o grupo reuniu-se na Santa Fé para o início da fuga. Ali, ainda em frente ao portão 2, foram surpreendidos pela Brigada Militar (BM). Foi quando atiraram e mataram o policial de Caxias. Após o tiroteio, fugiram na Santa Fé e na Outlander com R$ 14,4 milhões.
A Frontier ficou para trás com um dos criminosos mortos e R$ 15,6 milhões. Como aponta a denúncia à Justiça, Silvio Wilton da Silva Costa, o Bin Laden, do Primeiro Comando da Capital (PCC), foi morto por "fogo amigo" em um dos tiroteios. Essa ação passou das 20h. Por volta de 20h15min, a região do aeroporto caxiense, no bairro Salgado Filho, já estava isolada por inúmeros agentes das forças de segurança.
Os oito criminosos fugiram até uma área rural do bairro Galópolis, em uma das saídas de Caxias, onde abandonaram os dois veículos e embarcaram em uma van escolar para despistar as autoridades. Eles foram levados até um sobrado em Farroupilha para, dois dias depois, começarem a sair do Estado em direção à região Centro-Oeste.
Apenas a execução demonstra o alto nível de organização e força dos criminosos. O mega-assalto foi o resultado de um plano que iniciou pelo menos 10 dias antes e pode ter tido até um ensaio.
Preparação, ensaio e fuga
A denúncia e a investigação apontam que o assalto tem o envolvimento do PCC e da facção gaúcha Bala na Cara, como havia sido adiantado pelo colunista Humberto Trezzi. Inicialmente, a partir de 9 de junho, dez dias antes do crime, integrantes das duas facções começaram os preparativos. Essa fase baseou-se no transporte dos criminosos, veículos e armamentos para o Estado, especialmente em cidades da Serra ou próximas da região. Ao mesmo tempo, teria ocorrido a aquisição de bens e a escolha de esconderijos para todas as etapas do crime.
Apenas para a preparação do crime, pelo menos 10 veículos foram utilizados. Como detalhado na denúncia do MPF, a investigação da PF analisou os percursos e geolocalização dos envolvidos e descobriu que o grupo modificou diversas vezes as placas dos carros e caminhonetes durante os trajetos. Geralmente, os criminosos não trafegavam sozinhos.
Antes do crime, o grupo hospedou-se e guardou armas em imóveis localizados em cidades como Igrejinha, Alvorada e Riozinho. A preferência do grupo era por sítios. Em Alvorada, inclusive, um dos suspeitos testou um dos fuzis que seriam utilizados no aeroporto caxiense, como aponta a denúncia.
Já uma propriedade rural em Alto Feliz foi o local em que os criminosos se fardaram e partiram ao assalto. Um sobrado em Farroupilha também foi utilizado em todas as fases do crime, inclusive como esconderijo após o roubo e local de espera para iniciar a fuga do Estado, o que ocorreu a partir de 21 de junho. Os envolvidos, inclusive, evitaram ficar por muito tempo nos mesmos locais.
O que mais chama atenção nesta fase é que um ensaio pode ter ocorrido. No dia 13 de junho, quando R$ 10 milhões chegaram ao Hugo Cantergiani, os envolvidos realizaram movimentos parecidos aos que fariam no dia 19 de junho, inclusive utilizando as caminhõnetes com adesivos falsos.
Inicialmente, a investigação da PF cita o ato como "uma primeira ideia" de assalto. A denúncia até referencia o ato ou "como tentativa frustrada de um latrocínio" ou "de um ensaio do crime que seria realizado dia 19". Mas, com ou sem intenção, há indícios de que o ato transformou-se em um ensaio para o assalto no Hugo Cantergiani.
Identificado pela roupa
São 19 denunciados e mais dois identificados que estão mortos. Entre eles, o Bin Laden do PCC, morto na noite do crime. Conforme a investigação, existe a identificação de pelo menos mais uma pessoa que esteve no Hugo Cantergiani. A denúncia do MPF aponta que Diego Rodrigues Andrade, que seria ligado ao PCC, teria sido identificado pela vestimenta que utilizava no momento do crime, com casaco preto com capuz cinza, calça jeans com detalhe branco lateral e o mesmo modelo de tênis que já teria usado antes.
O detalhe chamou atenção das autoridades porque Andrade aparece em investigações de outros crimes semelhantes, como o roubo a transportadora de valores em abril de 2022 em Guarapuava (PR). Ele foi preso em Betim (MG), ainda no fim de junho. A denúncia afirma que Andrade foi incumbido de repassar armas e valores a outros criminosos.
Ainda conforme a investigação da PF, os envolvidos no assalto em Caxias são suspeitos de mais de 20 assaltos do tipo. Um deles é até internacional, em Ciudad del Este (Paraguai).
Já o outro morto, que é ligado ao crime pelas autoridades, é colocado como um dos idealizadores do assalto. Guilherme Costa Ambrosio, ligado ao Bala na Cara e conhecido no Estado como um especialista em crimes patrimoniais, foi encontrado no início de julho em São Paulo pela Polícia Civil.
Segundo a Divisão de Investigações sobre Crimes contra o Patrimônio (DISCCPAT), os policiais foram recebidos a tiros e defenderam-se. Na casa de Ambrosio foram encontrados capacetes camuflados, uniformes falsos da Polícia Federal (PF) e um arsenal com sete armas pesadas. Entre elas, duas metralhadoras calibre .50, de mesmo modelo daquelas usadas no assalto em Caxias.
Assim como Andrade, Ambrosio estava entre os acusados do assalto a Guarapuava (PR). Há indícios, inclusive, de que o gaúcho esteja entre os integrantes do grupo que se hospedou no sobrado em Farroupilha.
Além disso, a denúncia aponta que Ambrosio teria atuado "de forma bastante próxima" com Diego Moacir Jung, suspeito que faria parte do alto escalão do Bala Na Cara. Jung também é apontado pelo MPF como verdadeiro proprietário dos imóveis em Alto Feliz e Farroupilha, que estariam em nomes de laranjas. É citado que o denunciado teve "papel de significativa relevância na organização criminosa".
Fora os 19 denunciados e outros dois envolvidos que estão mortos, as autoridades continuam trabalhando para a identificação de mais suspeitos.
Plano alternativo
Entre os denunciados, há suspeitos que teriam participado ativamente de outras tarefas relacionadas ao assalto, como preparação dos esconderijos, organização e ocultação do armamento e até coordenação da fuga. Um nome indica que o grupo poderia ter um plano alternativo, caso eles chegassem atrasados e o dinheiro fosse transferido do avião aos carros-fortes.
Como descreve o documento do MPF, explosivos foram encontrados no aeroporto e nos veículos abandonados em Galópolis. Junto disso, Jurandir da Silva Barros teria sido identificado dirigindo a Santa Fé ainda na fase de preparação. A denúncia detalha que o suspeito é um conhecido "explosivista", com atuação em parceria com organizações criminosos em São Paulo para execução de crimes patrimoniais, especialmente em detonações de carros-fortes.
Outro denunciado, como revelado anteriormente, é Adriano Pereira de Souza, conhecido como Cigano - considerado uma liderança no PCC em São Paulo. Na denúncia, Cigano é citado como um dos homens que teriam trazido veículos de São Paulo. Ele foi pego na BR-116, em território paulista, no dia 21 de junho.
Processo
Além de uma parte recuperada do valor não especificada, existe a suspeita de lavagem de dinheiro por parte dos envolvidos - uma segunda denúncia é preparada apenas para esse crime. Nesse momento, o processo está em andamento na Justiça Federal.
A denúncia do Ministério Público Federal foi feita ainda em setembro. A projeção do órgão é que audiências de instrução penal ocorram no início de 2025 e que durem por dias, por conta da quantidade de vítimas que serão testemunhas e também o número de pessoas envolvidas.