Quinta-feira, 11 de novembro. O celular toca. Do outro lado da linha está Luciano Augusto Bonilha Leão, 43 anos. Ele é um dos quatro acusados pelo incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, que matou 242 pessoas. A ideia era encontrá-lo para uma entrevista na sexta-feira (12), mas ele se antecipa. Liga um dia antes do combinado e fala de improviso, emendando frases, emocionado.
— Quero que chegue esse júri logo. Anseio pelo julgamento desde que fui indiciado como responsável por essa tragédia. Preciso dar um norte na minha vida. Sou uma vítima daquele incêndio em 27 de janeiro de 2013, assim como os jovens que estavam lá. Só quem é culpado injustamente e sofre como sofro entende o que eu passo — diz.
Luciano, como prefere ser chamado, se considera o único réu do Caso Kiss (dos quatro que serão julgados) capaz de atravessar Santa Maria de ponta a ponta sem ser incomodado, "caminhando sem vaias". Tanto que continua a viver na cidade onde fez sua vida profissional, a mesma que foi palco da tragédia que marcou sua vida.
— Sou honesto, respeito o próximo. Vou mostrar no júri que, como as outras vítimas, eu também estava na boate. Que eu revejo o incêndio todos os dias, quase morri. Pela graça de Deus, consegui sair — enfatiza.
Luciano diz que entende perfeitamente o anseio dos pais de vítimas e afirma que também é seu sentimento:
— Ninguém pode receber seu filho queimado ou asfixiado. Ninguém merece. Só quero que entendam, eu também estava lá. Não desejei nada daquilo.
O produtor de palco afirma que foi salvo por detalhe, porque também estava sendo esmagado pela multidão em fuga da boate. Ele estava acompanhado de um gaiteiro da banda Gurizada Fandangueira, que morreu no incêndio.
O pessoal gritava para abrirem a porta, ela não abria. E o clarão do fogo chegando... Próximo à porta me deparei com um ferro, não consegui passar. As pessoas caíram por cima de mim, o metal arrebentou. Eu estava perdendo os sentidos, mas tapei o rosto com camiseta e alguém me puxou.
LUCIANO AUGUSTO BONILHA LEÃO
Produtor da banda Gurizada Fandangueira
— O pessoal gritava para abrirem a porta, ela não abria. E o clarão do fogo chegando...Próximo à porta me deparei com um ferro, não consegui passar. As pessoas caíram por cima de mim, o metal arrebentou. Eu estava perdendo os sentidos, mas tapei o rosto com camiseta e alguém me puxou. Um anjo me tirou — descreve.
Luciano informa que buscou atendimento médico, com tosse intensa, falta de ar e vômito de "uma gosma preta". Não chegou a ser hospitalizado, mas teve de fazer nebulização. Foi preso no domingo, logo após o incêndio, e afirma que na prisão teve problemas respiratórios. Fez tratamento hospitalar após sair do presídio e também aconselhamento psicológico prolongado.
— Tenho pânico de escuro, não posso com luz apagada — resume.
Luciano é apontado no processo judicial como produtor da banda Gurizada Fandangueira, na hora em que aconteceu o incêndio. Ele comprou o fogo de artifício usado para iluminar o palco e que acabou provocando o incêndio, ao queimar o revestimento de espuma do teto da boate. A pessoa que vendeu o artefato recorda que Leão optou pelo objeto mais barato, o que solta fagulhas, porque o mais inofensivo (de fogo frio) era também mais caro.
A respeito disso, o advogado Jean Severo opta por falar no lugar do cliente:
— Vamos explicar tudo isso no júri. Infelizmente, pedimos para levar fogos no julgamento, mas o juiz indeferiu. Então faremos um vídeo explicando.
Tranquilizante todas as noites
Luciano Leão diz que há oito anos tenta reconstruir sua vida. A banda Gurizada Fandangueira terminou após a tragédia. Ele nega que fosse produtor do conjunto gauchesco, até porque não sabe cantar e nem tocar instrumento musical.
— Eu era uma espécie de roadie, um carregador de instrumentos, de malas, arranjador das coisas. Contratado por ocasião. Sou DJ de profissão e tenho noção do que as pessoas gostam de ouvir. A banda sabia disso e seguidamente me procurava — explica.
Luciano diz que atuava até como office-boy das bandas. Após ficar meses na prisão e com o fim da Gurizada Fandangueira, retomou atividades que fazia antes. É promotor de eventos: festas de casamento, aniversários. Animador musical, mas sempre com som eletrônico, pois nem violão sabe tocar, salienta. Foram essas atividades que o sustentaram nos últimos oito anos.
Luciano reafirma que entende o que as vítimas e seus familiares passam, porque também tem sequelas.
— Tomo tranquilizante todas as noites para dormir e mesmo assim sonho com a Kiss — sintetiza.
Conversa com pai de vítima
Luciano garante que não tem conversado com outros réus. Afirma que até mesmo o colega da banda não tem visto. E que conheceu os donos da boate na cadeia, não revendo eles depois.
Ao dizer que tenta se colocar no lugar dos familiares de vítimas, relata que foi procurado por um pai que perdeu duas filhas no incêndio.
Eu não abandonei Santa Maria, ela não me abandonou. Queria ser julgado na minha cidade, eu era o único réu que desejava isso. A Justiça não deixou. Então vamos a Porto Alegre, provar que não queríamos nada do que aconteceu, mostrar que somos vítimas também
LUCIANO AUGUSTO BONILHA LEÃO
Produtor da banda Gurizada Fandangueira
— Ele disse que jamais iria me condenar, porque eu estava no mesmo lugar que as filhas dele, que assim como eu acreditaram que o local era seguro. Esse pai disse ver nos meus olhos que jamais eu iria querer tirar a vida das minhas filhas. Choramos bastante...Não é fácil. O resultado do júri não vai tirar a dor desses pais. Nem a da minha mãe, que criou um filho para ser correto e hoje tá num banco dos réus.
Luciano garante que não é hostilizado ao passear na cidade que o adotou e que foi adotada por ele.
— Eu não abandonei Santa Maria, ela não me abandonou. Queria ser julgado na minha cidade, eu era o único réu que desejava isso. A Justiça não deixou. Então vamos a Porto Alegre, provar que não queríamos nada do que aconteceu, mostrar que somos vítimas também — conclui.