O ex-vocalista da banda Gurizada Fandangueira Marcelo de Jesus dos Santos disse que parece ter parado no dia 27 de janeiro de 2013, quando o incêndio na boate Kiss matou 242 pessoas e deixou mais de 600 feridas. Era ele quem empunhava um artefato pirotécnico, cujas fagulhas iniciaram o incêndio.
Morando em Santa Maria, decidiu quebrar o silêncio faltando 20 dias para o início do júri em que é réu, marcado para 1º de dezembro. Acompanhado de suas advogadas no processo, Tatiana Borsa e Camila Kersch, o ex-músico concedeu com exclusividade a GZH sua primeira entrevista desde 2013. Aos 41 anos, disse que vive como instalador de azulejos até hoje. Os shows, conta ele, eram um hobby e um complemento da renda.
Orientado pela defesa, evitou responder perguntas sobre a noite da tragédia. Limitou-se a dizer apenas que lembra ter desmaiado com a fumaça tóxica provocada pela queima da espuma que fazia o revestimento acústico do teto. Ele foi retirado para fora da boate e levado ao hospital, onde ficou internado por um dia. Dois ou três dias depois da alta, conta que foi levado de volta à boate pelos policiais para explicar como o fogo começou.
— A minha vida simplesmente parou. Eu não consegui sair do dia 27. Minha vida está trancada no 27 — relata.
Recentemente, Marcelo teve covid-19. Ficou um mês internado, sendo sete dias na UTI. Na data do seu aniversário, no meio do ano, perdeu a mãe para o coronavírus. Foi com a morte dela que ele conseguiu um leito na UTI.
— Eu tinha medo de dormir lá dentro (do hospital), de alguém me conhecer. De alguém que poderia me fazer mal — contou.
A minha vida simplesmente parou. Eu não consegui sair do dia 27. Minha vida está trancada no 27
MARCELO DE JESUS DOS SANTOS
Ex-vocalista da banda Gurizada Fandangueira
Ele conta que ficou com sequelas pulmonares e psicológicas devido à tragédia na Kiss. A covid-19 agravou o problema no pulmão que já tinha por causa da inalação da fumaça. Faz fisioterapia duas vezes por semana para tentar se recuperar.
A vida depois da Kiss
O ex-vocalista recorda que quando saiu da prisão, onde permaneceu por cerca de cinco meses após o incêndio, ficou três meses sem sair de casa. Disse que pensou em deixar Santa Maria, mas decidiu ficar. Depois disso, voltou a trabalhar, mas não saía sozinho. Estava sempre acompanhado de um amigo ou do pai:
— Nunca mais fui no calçadão de Santa Maria. Nunca mais fui no centro de Santa Maria. Eu tenho medo de dar de cara com um pai, um sobrevivente.
Marcelo resumiu sua vida: é de casa para o trabalho e do trabalho para a casa. Vai ao mercado, mas evita ficar muito tempo.
— Eu não quero expor a minha família — justifica.
Por ser réu no processo, perdeu vários trabalhos:
— As pessoas diziam: "Tu és da Kiss, vai ficar ruim com os clientes".
O ex-vocalista da Gurizada Fandangueira também revelou que evita passar em frente ao prédio onde ficava a boate em razão do trauma que ficou do incêndio. Tem duas filhas, uma de 12 anos, que está no Ensino Fundamental, e outra de 21, que cursa Direito:
— A minha filha me falou um dia quando voltou da escola: "Pai, uma coleguinha me falou que tu matou 242, é verdade?"
Sobre o julgamento
Marcelo é réu no caso da Kiss junto com os sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, e o produtor de palco Luciano Bonilha Leão.
O ex-vocalista disse que nunca mais falou com Spohr. Sobre Mauro, conta que o conheceu na cadeia, quando os quatro foram presos poucos dias após o incêndio. Ressalta que nunca teve contato com ele antes e nem depois de serem soltos. Dos réus, o único com quem ele conversa é Leão.
Sobre o julgamento, independente do resultado, acredita que nunca mais terá uma vida normal.
— Tu vais ficar marcado para o resto da vida. O dia 27 vai ficar marcado eternamente. Eu sou uma pessoa que parou no tempo. Eu não consigo pensar o amanhã.
Marcelo quer justiça para o caso. Disse que perdeu amigos dentro da boate. Evitou falar sobre responsabilidades pela tragédia e admitiu ter medo de ser condenado e preso.
— Que a justiça seja feita corretamente — afirmou.
Dor dos pais e dos sobreviventes
O músico disse que não pretende tocar nunca mais. Segundo ele, guarda até hoje as pilchas usadas nas apresentações musicais.
— Eu tenho um baú onde eu guardo tudo isso. Faz nove anos que não mexo nele. Eu nunca mais pensei em cantar na vida.
Ninguém saiu de casa naquela noite para morrer. Mas ninguém saiu de casa para matar. A dor de um pai que perde um filho é imensurável. Eu entendo isso
MARCELO DE JESUS DOS SANTOS
Ex-vocalista da banda Gurizada Fandangueira
Conforme o azulejista, em razão do trauma, ele chega a sair de ambientes onde há música tocando. Entende a dor dos pais das vítimas fatais e dos sobreviventes. Diz que gostaria de um dia poder explicar a eles como tudo ocorreu.
— Ninguém saiu de casa naquela noite para morrer. Mas ninguém saiu de casa para matar. A dor de um pai que perde um filho é imensurável. Eu entendo isso — finalizou.