Marcelo Medeiros quer dormir. É público que o agora quase ex-presidente do Inter sofre de insônia, mas o período de quatro anos à frente do clube agravou o problema. A pressão do cargo trouxe também pressão alta e refluxo. Mais: contraiu covid-19, ainda em março, no início da pandemia do coronavírus. Por isso, o filho, neto e sobrinho de dirigentes colorados dedicará, a partir da próxima semana, atenção total à saúde.
Passados quatro anos desde a eleição, ocorrida um dia antes da queda para a Série B, ele garante que frequentará o Beira-Rio quando a pandemia permitir e estará à disposição para ajudar. Mas não mais em cargos. A história dos Feijó Medeiros vai ser interrompida depois de oito décadas. Da sala da presidência do Inter, Marcelo Medeiros atendeu GZH na terça-feira (29) em uma entrevista por vídeo.
São quatro anos à frente do Inter. O sentimento é de missão cumprida?
Vou dividir minha gestão, nos dois primeiros e nos dois últimos anos. Quando assumi o Inter, estava inserido em um contexto que jamais imaginamos estar, na Série B. Quando trouxemos (o clube) de volta à Série A, enfrentando aquele cenário desconhecido, tínhamos o litígio com a CBF com o caso Victor Ramos, que passava ao torcedor uma sensação de que poderíamos ficar na Série A por decisão judicial. A decisão implicava anular três competições, todas as que ele jogou, e isso era impossível. A angústia de ter caído exigia serenidade. O torcedor queria sair da B em março, junho, e sabíamos que seria o ano inteiro. No ano seguinte, conseguimos brigar pelo título do Brasileirão até a 34ª rodada, conseguimos vaga direta à Libertadores. Isso tudo vindo da Segunda Divisão. Aquela aliança na direção estava sólida, entenderam que precisávamos dar andamento ao trabalho.
E a outra metade?
Então veio 2019. Esperávamos colher os frutos, e não vieram. Perdemos a final do Gauchão nos pênaltis. Na Copa do Brasil, passamos por dois dos maiores candidatos, apontados por jornalistas do centro do país, Palmeiras e Cruzeiro, antes da arrancada do Flamengo. Chegamos à final, respeitamos o Athletico-PR e, no primeiro lance, tivemos uma chance clara, com o Nico (López), e perdemos. Fomos ao intervalo empatados, jogando melhor. Mas no segundo tempo não conseguimos repetir a organização. Faltou o título, tenho humildade em reconhecer isso. Em 2020, fizemos um investimento de longo prazo em um técnico estrangeiro (Eduardo Coudet), contrato de dois anos, time mostra rendimento, crescimento, começamos bem a Libertadores, veio a pandemia. Ninguém estava preparado e até agora não sabemos como vai ser. O Alessandro (Barcellos) assume a presidência agora e já tem Brasileirão na quinta-feira. O mundo deveria ter mais tolerância, mas não é o que aconteceu. Missão cumprida, sim. Peguei um clube que começou na Série B e entrego, ao lado de meus pares, um time no G-4, ainda brigando no Brasileirão.
Em 2018, fomos recebidos por dona Alzira Feijó Medeiros, assim como o senhor, sempre relacionada ao Inter. Viu a história do clube passar pela sala de casa. Disse que sofria especialmente com o filho na presidência. Como ela está?
Dona Alzira está na praia, aliviada, feliz. A mãe conhece a intimidade do clube. Não tinha muita vez quando o vô (Afonso Paulo Feijó) era o presidente, mas eram outros tempos, 1945. Depois conviveu com meu tio (irmão dela, Marcelo Feijó, presidente na gestão 1978-1979) e meu pai (Gilberto Medeiros, de 1986 a 1987), e agora comigo. A diferença nesse tempo todo foi isso (aponta para o celular). Ele tira a nossa liberdade, aumenta a belicosidade. Não gosto de usar muito uma ferramenta que aceita notícia falsa. Confio mais no jornalismo ortodoxo, nos grupos de comunicação, que têm anos de serviços prestados. Vejo os jornalistas mais responsáveis.
Terminou a missão dos Feijó Medeiros no Inter?
Terminou. Meu avô entrou na política do clube no início dos anos 1940, depois foi presidente do Conselho Deliberativo, um dos poucos a fazer isso. Meu pai e meu tio, que eram muito amigos, moravam próximos, ingressaram na política do Inter ainda jovens, nos anos 1960. Então são quase 80 anos de contribuição ao Inter. Faltou um título? Faltou. Mas não teve um dia que não tenhamos acordado tentando fazer o melhor.
O senhor sempre disse ter dificuldade para dormir. Isso piorou?
Nunca mais dormi sem remédio. Sempre fui insone, mas piorou muito. Em 2017, no nosso primeiro jogo-treino, levamos um rodião do Tubarão. O doutor Caputo me olhou e achou pálido. Medimos a pressão: estava 19 por 16. Hoje tomo remédio para a pressão. Tenho refluxo. De agora em diante, espero parar de tomar remédio para dormir. Vou cuidar da saúde.
É esse conselho que vai dar ao Alessandro Barcellos (próximo presidente)?
Tive a liberdade de ligar para o Giovanni Luigi, de quem fui vice, para o Fernando Carvalho, que me colocou no clube quando começou, e para o Pedro Paulo Záchia, que também é filho de presidente. Acho importante ouvir quem já sentou nessa cadeira. Hoje (terça-feira) vim aqui, me despedi dos atletas, da comissão técnica, dos funcionários, e o Alessandro esteve aqui, conversamos. O que digo para ele, desde que assumiu o futebol, não é um conselho, é uma sugestão: larga o Twitter. Te blinda, te cerca de pessoas de tua confiança. Se tu te deixar levar pelo que os outros dizem, tua confiança vai ficar abalada. Mas foi só uma sugestão mesmo.
Quando recebeu o clube, investigado pelo Ministério Público, teve algum momento que pensou: "Onde viemos parar"?
Para quem não conhece o clube, a sala da presidência tem um quadro muito bonito. Atrás da mesa do presidente, tem um distintivo grande, de metal, lindo. Quando cheguei aqui, tinha quatro furos na parede. Nenhum distintivo. Tivemos de mandar fazer outro.
Levaram o distintivo?
Não estava aqui. A eleição foi em 10 de dezembro, e o Vitorio Piffero me recebeu dia 12. O distintivo estava lá. Poucas vezes fiz reunião sozinho, normalmente tem algum dirigente junto. O João Patrício (Herrmann, 1° vice-presidente da gestão de Medeiros) estava comigo. Um clube do tamanho do Inter tem algumas liturgias: não permite conversa por telefone, exige ofício. Não pode ter nota fiscal sem contrato. Existem processos. O que aconteceu, e acabou nas páginas policiais, é uma decorrência dos órgãos do clube, Conselho Fiscal, Conselho Deliberativo. As conclusões da comissão especial do conselho foi é que geraram a investigação do Ministério Público. Mas a cena dos quatro furos da parede me chocou.
Na Série B, qual foi o momento mais constrangedor, digamos assim? Que realmente sentiu estar na Segunda Divisão.
Série B... A Série B é uma guerra, ainda mais sendo o clube a ser batido. Mas o momento que marcou foi quando chegamos em Caruaru para jogar contra o Náutico, nem lembro porque foi lá. As instalações do estádio, com todo o respeito à história do Náutico... Não tinha nem chuveiro no vestiário. Estava em obras, tijolo, azulejo, tudo solto. A sala do técnico tinha fios soltos, grade. Parecia uma prisão. Ali foi um cenário que eu não volto mais.
Sua gestão tirou o Inter da Série B, mas afora isso, não conquistou títulos. Os balancetes mostraram alto valor de investimento e de receitas. O senhor gastou demais?
As pessoas confundem resultado financeiro com gastar ou não gastar demais. Tem muita conta que se paga numa gestão que são de muito tempo antes, como reclamatórias trabalhistas, acordos, endividamentos. Podemos ter errado em algumas contratações, mas ninguém acerta todas. Não fizemos loucura, nem aventuras. Ninguém custou o que não podíamos pagar, todos estavam dentro das possibilidades. O que esse ano trouxe de diferente foi a queda de arrecadação. O Inter, no ano passado, teve o terceiro maior faturamento do país. E quanto mais fatura, mais consegue pagar. O Inter, hoje, está em quarto. Se conseguir ficar em terceiro, a verba de premiação aumenta o fôlego. No próximo ano, teremos a volta da negociação dos direitos de transmissão. A última vez que tivemos essa negociação foi em 2016. Nela, entra valor de luvas. Isso mudou: há quatro anos, não tínhamos Amazon, Facebook, Globoplay e Netflix nos direitos internacionais de imagem e som. Os clubes do centro do país estão contratando especialistas nesse mercado. Inclusive, sugeri ao Alessandro que buscasse um profissional para esse ambiente, tem muita grana. Além disso, temos muitos jovens no grupo principal que vão dar resultados expressivos esportivamente e financeiramente.
Ao mesmo tempo que viveu o pior momento, o senhor viu o Grêmio crescer, conquistar títulos. Isso aumentou a pressão?
No dia a dia, não. A pressão é externa, gera ansiedade no torcedor, que põe faixa, faz protesto. Mas é no torcedor. Internamente, sabíamos que nossa escalada seria dura. Nada superou enfrentar essa pandemia.
O quanto a eleição atrapalhou o desempenho do último ano?
O Inter é dividido em três órgãos independentes: o Conselho de Gestão, o Conselho Deliberativo e o Conselho Fiscal. Todos são eleitos em seus ambientes democráticos. O presidente do Conselho Deliberativo não foi eleito, foi aclamado, com a missão de acalmar o parlamento. A relação entre esses órgãos é por meio de ofício. Não existe nenhum ofício no sentido de transferência das eleições. Lá por abril, recebi um telefonema do doutor Aquino (José Aquino Flôres de Camargo), perguntando o que eu achava da transferência das eleições. Respondi que não decidia nada sozinho, que levaria ao Conselho de Gestão a sugestão. Mas não tínhamos notícia de como seria o calendário do futebol. Isso foi tratado de maneira informal. Em ata, constou a decisão: enquanto não houver definição sobre o calendário, não haverá nada sobre a eleição. Em agosto, contrariando o normal do Inter, que tem processo eleitoral deflagrado pelo presidente, fomos informados que as eleições seriam em 25 de novembro. Havia dois requerimentos de conselheiros querendo adiar, em minha opinião o plenário do conselho deveria ter votado o que era melhor para o clube. Não foi. Agora ficamos nessa situação. O Alessandro começa o trabalho dia 4 e dia 7 já tem jogo. Não adianta gritar para resolver as coisas, não no Inter.
Ficou algo da eleição?
O que vamos tirar desse processo eleitoral? Foi só adjetivado, poucas ideias. E o ataque era em mim, que não era candidato. O Inter está sangrando, foram 11 chapas, mais de 1,5 mil pessoas concorrendo ao conselho. Agora temos uma gestão para três anos. Vamos deixar trabalhar. O Alessandro fez dois anúncios e já tem gente dando pau no Twitter. Pô, o sucesso do Alessandro é o sucesso do Inter.
Foi uma eleição curiosa, porque as chapas que disputaram tinham integrantes de sua gestão, mas todas eram oposição.
Todo mundo era oposição, né? Mas um vice de marketing meu estava numa chapa, outro estava na outra. Até outubro, quando o Coudet tomou a decisão de ir embora, estava ótimo, nós em primeiro no Brasileirão, vivo na Copa do Brasil, classificado na Libertadores. Depois mudou tudo.
Sobre Coudet, circulou uma história de que o senhor teria chutado a porta do vestiário depois do empate com o Coritiba porque ele colocou o Musto...
Jamais fiz cobrança pública, nem no Inter, nem na minha vida profissional, nem na pessoal. Vou contar uma história: quando a bola rola, eu viro torcedor normal. Em um jogo desses, a bola foi recuada pela 15ª vez e eu gritei: "Joga pra frente!". O Coudet virou para a cabine e me mandou longe. Pensei: "Pô, ele enlouqueceu". Terminou o jogo, ganhamos tranquilo, acho que dois ou três a zero. Entro no vestiário, vou cumprimentar os atletas, o Coudet vai para a sala dele. Chega o Rodrigo Caetano e me diz: "O argentino quer falar contigo". Vou falar com ele, está com as mãos na cabeça e começa: "Perdón, presi! Perdón!". Respondi: "Coudet, se tu ganhar todos os jogos, pode me mandar longe sempre".
Aconteceu alguma coisa?
Naquele último dia, muita gente achava que a entrevista estava demorando porque tinha jogo do Grêmio. Mas não foi isso. Eu estava conversando com os atletas, lamentando que tínhamos cedido mais um empate levando gols da mesma forma, o Alexandre Chaves Barcellos foi atender a imprensa, e o Rodrigo Caetano me chama. Disse que o Coudet falou que não tinha mais cabeça para treinar o Inter. Pô, mas e o jogo com o América-MG? Daí saí, admito. Fiquei vendo de longe o Rodrigo e o Alexandre tentando convencer um cara, com contrato vigente, a treinar o Inter. Já ouvi muitas teorias, até de que a família dele não tinha se adaptado a Porto Alegre. Ele veio para cá de carro, instalou-se em uma casa na Zona Sul. Sinceramente, acho que ele viu no Celta (de Vigo, na Espanha) uma oportunidade de ir para a Europa, em um clube com menos pressão do que o Inter. As coisas são mais simples.
O Marcelo Medeiros que assumiu o Inter em 2017 sai com mais ou menos amigos do que o Marcelo Medeiros que deixa o Inter hoje?
Acho que mantenho os mesmos amigos. Quem não está do meu lado nunca foi meu amigo. Muita gente mensura a riqueza em patrimônio, dinheiro. Eu mensuro pelas amizades. E aqui fiz muitos amigos. Alguns não foram amigos, e viram em mim um caminho. Mas tudo bem, faz parte. Estou feliz com os amigos que tenho.
Onde entra o Abel Braga entre esses amigos?
Abel é meu amigo, nossas esposas são amigas. Ele é um cara transparente, espontâneo. Lá em 2014, quando tivemos o jogo contra a Chapecoense (Inter levou 5 a 0) e abraçamos ele, demos respaldo ao trabalho. Ali nossa relação se fortaleceu, arrancamos no Brasileirão e fomos à Libertadores.
O senhor participou da conversa para ele ficar?
Convidamos o Alessandro para ir conosco a Salvador. O João Patrício é vice eleito, foi também. Eles falaram com o Abel e ele me disse exatamente o que falou na coletiva, que ia pensar e decidir. Jantei com o Abel segunda-feira à noite, a decisão já estava tomada. Depois cumprimentei o Alessandro pela habilidade em lidar com a questão. E que bom que decidiu por ficar. A pior coisa que existe para um dirigente é trocar de treinador no meio da competição. Faltando 11 jogos, teria outra ruptura.
Que legado o senhor considera ter deixado?
Pensando bem, acho que uma coisa que deu resultado e que vamos ver rapidinho é nas categorias de base. O que se fala em categoria de base, e está cheio de entendido, gente que nunca foi a Alvorada, não conhece nosso alojamento, nossos profissionais. Criticam a base do Inter no ano que o Inter foi campeão da Copa São Paulo.
Quem?
Basta ver os programas que dão espaço aos conselheiros. Eles nem sabem o nome dos guris da base que subiram. Tivemos Johnny, Praxedes, Caio Vidal, Peglow, Zé Gabriel. O Caio Vidal é uma história curiosa. O time do Coudet não usava extremas, o do Abel sim. Daí pedi que o Capa (Centro de Análise e Prospecção de Atletas) preparasse um relatório sobre o Caio Vidal. O Abel se encantou com ele e já o colocou para jogar. O Peglow errou o pênalti contra o Boca e me cobraram sobre ele ter batido. Mas ele é cobrador. Ele mesmo pediu. Tem personalidade.
Tira quantos quilos das costas?
Das costas, não. Do corpo todo. Vou cuidar da saúde. Se eu conseguir dormir bem hoje, está de bom tamanho.