A história do Inter passou pela sala de Alzira Feijó Medeiros. Filha, irmã, esposa e mãe de presidentes colorados, ninguém mais do que ela viveu os meandros do clube nos últimos 80 anos. Do Rolo Compressor à volta à elite, passando pelo título brasileiro invicto e pelo tetra que bateu na porta, a memória vermelha teve o olhar dela. Ou, até mesmo, seus pitacos.
Quando Alzira completou sete anos, seu pai assumiu a presidência do Inter. Afonso Paulo Feijó era o mandatário colorado em 30 de setembro de 1945, dia em que o Inter ganhou o Gre-Nal de número 89, ultrapassou o rival em número de vitórias e nunca mais perdeu a hegemonia. Era o auge do Rolo Compressor, time que conquistou oito campeonatos em nove anos, o primeiro hexacampeão gaúcho da história.
— Ivo; Alfeu e Nena; Assis, Ávila e Abigail; Tesourinha, Russinho, Vilalba, Rui e Carlitos. Me lembro de repetir isso, mesmo sem saber o que era. Ficava na memória, de tanto que diziam. Só depois fui entender. Via dirigentes do Inter lá em casa, conversavam. Mas eram outros tempos, imagina se meu pai ia me deixar participar de alguma coisa, sendo menina e criança — recorda Alzira, voz firme, memória plena e olhar atento, medindo as palavras.
O pai seguiu atuando no Inter, mas sem o cargo maior. A permanência trouxe uma amizade para a família, com Larry Pinto de Faria, um dos maiores jogadores da história do Rio Grande do Sul. E o tempo também ajudou Alzira a interferir, ainda que involuntariamente, no clube.
Na adolescência, ela iniciou um flerte com um amigo de seu irmão, Marcelo Feijó. Gilberto Medeiros gostava de jogar bola nos tempos que o bairro Moinhos de Vento tinha campinhos nas esquinas. Começaram a sair. O namorado se tornou o grande amigo de Marcelo Feijó. Colorados, contaram com a bênção de Afonso Paulo Feijó para assumir cargos na direção.
Ser mulher naquele período inibia qualquer opinião sobre futebol. Também alegava desconhecimento. Só tinha uma posição firme: Valdomiro era um craque. Hoje, é fácil dizer isso, mas vá dizer essa frase no final dos anos 1960, quando o camisa 7 era vaiado a cada toque na bola.
— Sempre apoiei ele. Mesmo quando todo mundo vaiava, eu acreditava. Ele tinha muita qualidade, quando chegava à linha de fundo, fazia cruzamentos perfeitos — derrete-se.
Pois o tempo lhe deu razão. Em 1978, o irmão de Alzira foi eleito presidente colorado. E Valdomiro fez o primeiro ano ser vitorioso. O camisa 7 marcou os dois gols no Gre-Nal que decidiu o Gauchão. No ano seguinte, o ponteiro direito foi o protagonista de uma das maiores glórias coloradas, o Brasileiro invicto.
O namoro de Alzira com Gilberto havia virado casamento em 1959. A amizade de Gilberto com o cunhado Marcelo virou missão em 1986. Com um Inter afundado em dívidas, ninguém quis assumir o compromisso de comandar o clube naquele ano. Só Gilberto aceitou. Aclamado presidente, saiu-se com a célebre frase, de que tinha chegado para pagar títulos e não conquistá-los. Mesmo assim, chegou à decisão do Brasileirão de 1987, perdendo a final para o Flamengo de Zico.
— Ele tinha uma característica interessante. Enfrentava todos os problemas do Inter lá no Inter. Em casa, mudava completamente. Era tranquilão. Mas sabe que era uma pressão tão grande que ele perdia o sono. Nem no dia que chegou em casa e me disse: "Estou com câncer", meu marido perdeu o sono. Só o vi ter insônia quando foi presidente do Inter.
Se o assunto na casa dos Feijó Medeiros já era o Inter naturalmente, com os novos cargos, o futebol dominou tudo. Alzira não teve alternativa.
— É minha família, não queria ficar de fora de nada. Então comecei a ouvir todos os programas esportivos, ler os jornais, acompanhar os colunistas. Aprendi tudo o que podia. E aumentei a frequência no estádio, que ia desde os tempos dos Eucaliptos.
Essa frequência no Inter lhe trouxe vários amigos. E, principalmente, amigas. Com esposas de dirigentes e atletas e outras tantas mulheres, foi uma das fundadoras do Centro Feminino de Assistência Social do Internacional (Cefasi). O grupo criou diversas ações beneficentes, e o auge eram os desfiles dos atletas com as roupas das Lojas Dallegrave, a mais glamourosa de Porto Alegre. Nesses eventos, arrecadavam fundos para doações a pessoas carentes.
A presença no estádio gerou histórias divertidas. Uma delas foi depois que Gilberto saiu da presidência e, a convite de Pedro Paulo Zachia, aceitou ser vice de futebol (contrariando a orientação de Alzira). Apesar da desobediência do marido, o importante é apoiar a família, e lá foi ela foi ao Beira-Rio em uma de tantas tardes:
— Estávamos no elevador Arthur Dallegrave, Figueroa, um homem que nunca tinha visto e eu. Esse homem falou: "Dallegrave, não tem cabimento o Gilberto voltar". Concordei. Ele insistiu: "Ele está velho, ultrapassado". Concordei de novo. Então ele disse: "Suspeito até da honestidade dele". Daí não aguentei e parti para cima. Ah, não. Gilberto podia ser qualquer coisa, mas desonesto ele não era. Figueroa e Dallegrave me seguraram e quando a porta do elevador abriu ele foi embora. Nunca mais voltei a vê-lo, nem sei quem é.
Alzira já havia passado pelo estresse de ser filha, irmã e esposa de presidentes. Mas sabia que o pior estava por vir. Ligado ao Inter desde a infância, Marcelo Feijó Medeiros começava a participar ativamente da política do clube. Era quase natural. Foi diretor, vice-presidente e, então, candidato à presidência. De cara, a mãe foi contra. Para ela, a família já tinha se doado demais ao clube. Mas o filho não a escutou. Como, aliás, ela faz questão de dizer, repetia uma atitude da adolescência. Marcelo era um jovem inquieto, para usar um eufemismo. Coleciona cicatrizes de acidentes de futebol, brincadeiras e, claro, surfe ("Olha só o que ele foi inventar", ela diz).
Os dois são bastante ligados. Quando passou na UFRGS para o curso de Direito e arrumou uns trocados em seus primeiros empregos, Marcelo se deu de presente uma viagem "para aprender inglês". A história é conhecida. O agora presidente do Inter passou meio ano na África do Sul entre ondas e festas. Depois, resolveu que ia rodar pela Europa. Alzira, então, encontrou a dona Azize Falcão, mãe de Paulo Roberto. Pediu que ela, se pudesse, ajudasse a dar uma olhada no filho, que estaria em Roma por alguns dias. Azize fez Marcelo morar com eles por dois meses. Assim, ao menos, ele poderia manter contatos mais frequentes — e não só as respostas para as cartas que trocavam esporadicamente anteriormente.
A ligação se estendeu ao Inter. Marcelo levou a mãe para Yokohama em 2006, para o Torneio de Dubai de 2008. "A mãe é pé quente", era a desculpa oficial. Nem a derrota no Mundial de 2010 apagou essa imagem. "Não se pode ganhar todas, né?", ele brinca.
Ligação aliás, foi o que fez Marcelo tremer. Na 26ª rodada do Brasileirão de 2016, o Inter perdeu para o América-MG com um gol de nuca aos 46 minutos do segundo tempo. O então candidato estava em casa quando seu telefone tocou. Era Alzira.
— Falei: "Quero que desistas agora mesmo dessa história de ser presidente. Nós vamos cair e não criei filho para comandar o Inter na Segunda Divisão". Ele tentou me convencer que não pode ser colorado só na boa. Aquele papinho manso de filho. Vocês sabem. Quando vi, estava de novo no pátio — relembra Alzira, que insiste para que o filho não concorra mais à eleição.
Talvez pela proximidade — o tempo é sempre um inimigo da análise —, Alzira não tem dúvidas quando a pergunta mais óbvia da entrevista é feita. Afinal, o que é mais difícil: ser filha, irmã, esposa ou mãe de presidentes do Inter?
— Foi crescendo, sabe? Na época do meu pai, não tínhamos tantas notícias, meu pai era mais fechado. Com meu irmão também. O Gilberto conseguia até separar as coisas, mesmo sabendo o quanto complicado foi. Mas o Marcelo não consegue. Ele traz para casa, divide comigo, fala. Acho que por isso sofro mais hoje.
O diálogo final da entrevista foi assim:
— Não tem mais herdeiros dos Feijó Medeiros? — pergunto.
— Só tenho netas. E elas não são muito ligadas. Só a enteada do Marcelo é louca pelo Inter. Frequenta treinos, lê, acompanha. Mas espero que ela não vá por esse caminho. Nossa família já fez muito — ela rebate.
— A senhora tem noção do quanto influenciou na história do Inter? — indago.
— Influenciar acho que não. Sou um elo entre eles, mas não sei se influenciei — responde.
— Mas se a senhora não tivesse casado com o Gilberto, talvez ele não tivesse sido presidente do Inter — continuo.
— Ah, acho que teria. Ele era muito colorado — despista.
— Mas não teria sido cunhado de um presidente, dona Alzira. Além disso, ele poderia ter conhecido outra pessoa. Imagina se uma gremista — insisto.
— Ele não teria tanto mau gosto — ela finaliza, às gargalhadas.