Desde que tomou a decisão de sair da zona de conforto dos grandes jogos e viagens mundo afora, na condição de comentarista da Globo, para reassumir o papel de vidraça como treinador, é o seu momento mais expressivo. Os títulos estaduais no Inter e no Bahia, mesmo que em Salvador fossem 11 anos sem taça, não se comparam a encerrar um Brasileirão distante só três pontos do G-4 com o Sport, cujo orçamento é um terço dos grandes do Sul e Sudeste.
Parecia algo inatingível quando assumiu no lugar de Eduardo Baptista, mas ele tinha convicção de que sim, era possível colocar o Nordeste na Libertadores. Só não o fez por erros suspeitos de arbitragem, segundo sua avaliação. Os dez jogos sem ganhar se transformaram numa arrancada de sete vitórias em 11 jogos. Aos 62 anos, Paulo Roberto Falcão está tão mergulhado em seus planos na Ilha do Retiro que até pede para deixar um pouco de lado os 40 anos do título de 1975, celebrados este fim de semana. Sua história naquela conquista inovadora, sob o comando do visionário Rubens Francisco Minelli, de fato, dispensa maiores palavrórios.
Falcão vive e respira a vida nova no Recife, em um hotel da Praia de Boa Viagem. É dali para o treino, do treino para o hotel. Nessa entrevista, tomada em um café reservado na rua Florêncio Ygartua, no bairro Moinhos de Vento, Falcão foi descoberto por sete colorados, que lhe fizeram a mesma pergunta: "Quanto tu vais voltar?". Sua relação com a torcida do Inter restou fortalecida com a demissão após apenas três meses no cargo - esta é outra de suas certezas. Falcão tratou dela e foi além.
Disse que três reforços o fariam campeão com o Inter em 2011, mas não recebeu nenhum; revelou que Felipão o indicou para o Palmeiras; contou como e quando o Grêmio o convidou para ser treinador. E, claro, esmiuçou o sonho de, com o Sport, derrubar a barreira do preconceito com o futebol nordestino, algo que o Rio Grande do Sul também teve de quebrar, lá atrás. É o voo do Falcão, com o perdão do trocadilho.
Por que o Sport?
Eles já tinham me procurado em janeiro de 2014, mas eu tinha compromisso com a Fox durante a Copa. Queriam que eu colocasse alguém meu e assumisse depois. Disse que não dava. Não era legal. Eles entenderam. Então sugeri que, sem o Geninho, apostassem no Eduardo Baptista, que era o preparador físico. Ele ganhou o Estadual e a Copa do Nordeste. Depois, no Brasileiro, ficou oito jogos sem ganhar. Este ano, não fez as finais do Estadual e da Copa Nordeste. Quando assumi, o time vinha de sete empates, cinco derrotas e uma vitória. Mas a direção bancou o trabalho de longo prazo. Quem saiu foi o Eduardo, para o Fluminense, em julho. Eu pensei: no Sport há pessoas que pensam o futebol um pouco diferente, apesar dos limites financeiros. Quando me convidaram de novo, aceitei.
Mas teve o Atlético-PR e o Goiás, também com limitações financeiras.
E o Palmeiras. No Goiás, foi uma questão de ter um elenco competitivo, trazendo alguns experientes para proteger os guris. Não foi possível. O teto salarial era baixo. Sugeri o Julinho Camargo. Depois de alguns jogos, liguei para o presidente, uma pessoa finíssima, e disse: o senhor tem de contratar. O custo de uma eventual queda seria maior. Mas a parte financeira impediu.
Como você decide quando te convidam?
Primeira pergunta: quais são os objetivos? Aí avalio o plantel. Segunda pergunta: tem possibilidade de contratar? Se eu entender que não tem como obter resultado com aquele grupo e que serei demitido em dois meses, aí não aceito. Não existe magia. Meu perfil não é de trabalhar dois meses aqui e três ali. Este tempo todo parado se deu porque os convites não me motivaram.
Você falou no Palmeiras. Quando e como foi?
Foi quando o Felipão saiu. Ele me indicou. Era finalzinho de campeonato e o Palmeiras tinha, sei lá, 95% de chance de cair, em 2012. O Felipão brincou comigo. Pega rapaz: se tu cair, põe a culpa em mim (risos). Mas exigi ficar de agosto de 2012 até dezembro de 2013, caindo ou não. Aí não acertamos, pois tinha eleição no fim do ano e a direção não podia me assegurar nada.
Você imaginava esses resultados no Sport?
Quando o Sport me procurou pela primeira vez, senti que poderia acontecer de novo. Aí passei a ver todos os jogos. Tenho de ver os times que eu posso ir, né (risos). E tem uma coisa maluca...
Que coisa maluca é essa?
Eu estava fazendo análise e meu analista me disse: "desiste, Falcão. Técnico é estressante demais e as coisas não dependem só de ti. Se a bola entra, presta. Se não entra, não presta". Ele até tem razão nisso, mas numa sessão, do nada, eu disse para ele: "se eu for para o Sport, levo para Libertadores". Eu tinha esta convicção. Por isso não engoli até agora o jogo com Atlético-PR.
Estás falando da arbitragem?
No jogo com o Atlético-PR (0 a 0, em casa) teve pênalti escandaloso no Marlone e outro, no Hernane. Contra o Cruzeiro (derrota por 3 a 0, no Mineirão), o árbitro deu um pênalti quando o meu jogador estava com a mão no peito, colada no corpo. Em seguida houve a infelicidade do gol contra do Durval. Em 15 minutos estava 2 a 0. Nos abrimos. Mas se estivesse só 1 a 0 era outra história. O mesmo lance, na área do Cruzeiro, com o Manoel, toque na mão, e nada. Só nestes dois jogos seriam quatro pontos, no mínimo. O jogo com o Atlético-PR era o da Libertadores. Depois era o Corinthians. Ganhamos de 2 a 0 com motivação natural, mas contra o Atlético-PR os portões eram fechados. Diego e Marlone temiam o marasmo, sem torcida. Aquela arbitragem foi brincadeira. Aliás, ganhamos do três primeiros: Corinthians, Atlético-MG e Grêmio.
Você suspeita de algo além do erro do árbitro?
Depois daquela denúncia da máfia do apito de 2005, em que jogos foram remarcados por suspeita de arranjo, ninguém pode tirar o meu direito, ou o direito do torcedor, de pensar que tem armação. Não quer dizer que tenha. Não é isso. Mas o direitos de as pessoas pensarem assim é normal. Já vivemos isso em 2005, como eu disse. É o problema do Brasil. As pessoas têm o direito de pensar que os políticos, em geral, vivem no rolo. Não quer dizer que todos vivam, mas diante de tudo o que se vê, a gente desconfia.
Já ouvi você falar em preconceito contra o Nordeste. Explica melhor?
Nos anos 1970, só Rio e São Paulo mandavam. O Rio Grande do Sul não existia. O Inter teve de ser campeão brasileiro em 1975 para começar a ser respeitado. E bi em 1976. Em 1978, só o Batista foi para a Copa. No ano seguinte, fomos tri invictos. Não havia mais selecionáveis, um ano antes? Depois, o Grêmio, com aqueles títulos todos nos anos 1990. Aí eles não tinham como nos ignorar. O Nordeste precisa vencer esta barreira também. É um somatório de dificuldades. O Sport andou 40 mil quilômetros no Brasileirão. Isso sem falar no orçamento. Então esse desafio me anima. Ganhar um título com o Sport, para uma torcida apaixonada e maravilhosa, é como uns 10 com Corinthians, Inter, Grêmio.
Como são os teus treinos?
Sem jogo no meio da semana, segunda-feira é folga. Terça à tarde, quem jogou fica com o Paulo Paixão, pois o segundo dia pós-jogo é quando bate o cansaço mesmo. Quem não jogou vai para o campo. Oriento o Thiago (Thiago Gomes, auxiliar técnico) e fico de fora intervindo quando julgar necessário. De fora, você olha melhor quem está brabo por que não jogou para encostar nele, essas questões todas. Na quarta, Paixão trabalha com o grupo todo, recuperando os que não jogaram e treinaram com bola na véspera. Ele faz isso e entrega o grupo para dois ou três trabalhos de intensidade e transição. Quinta é comigo, na preparação do time mais forte, assim como na sexta.
Taticamente, o que te deixou mais satisfeito?
A maneira como os mais experientes abraçaram as ideias. Magrão aceitou a reserva mesmo sendo o maior ídolo do Sport, pois o Danilo faz milagres. Durval me ajuda muito, assim como o Diego, o André.
Isso é mais gestão de grupo, não? E taticamente?
Vou dar um exemplo. O bote do Rithely, volante, é incrível. Disse a ele: pega a bola e, primeiro, tenta o passe vertical, no Diego, no André. Se não der, vai para o passe lateral. Mas tenta sempre, antes, erguer a cabeça e buscar o toque reto, que os homens da frente vão estar preparados. Por isso te falei da importância dos experientes absorverem a ideia. Jogamos com duas linhas de quatro. Se o André e o Diego não compuserem com os volantes sem a bola, não funciona. E eles estão fazendo isso. Contra o Corinthians, conseguimos perfeitamente tudo isso. E tem o balão...
O que tem o balão?
Eu proibi. Às vezes é a única alternativa, mas a regra é não dar o balão. Treino muito essa saída de trás tocando, não só abrindo os laterais. A solução é você dizer que não quer o chutão e, se eles errarem no jogo fazendo isso, a culpa será minha. O chutão é uma enganação. É uma ilusão de 28 segundos: a bola vai voltar. Treino muito essa saída de trás, e não só abrindo os laterais. É bonito de ver quando você sai do brete da marcação, e o bonito não é firula, que fique claro. É futebol.
A chance de ganhar jogando bem é maior, enfim.
É a minha leitura. Quero ganhar jogando bem. Do contrário, a vitória vira só um dado estatístico.
Você gostou do Brasileirão?
Me assustou ver muito time grande com zagueiro dando balão quando podia dominar e jogar. Ou dando bico para fora quando podia recomeçar com o goleiro e ainda bater no braço. E a torcida aplaudindo. Isso me dói. Pode ser uma opção, a de jogar pela segunda bola. Eu acho um horror você ficar na beira do campo berrando pela segunda bola, que é o rebote da defesa depois do chutão. Mas cada um joga como quiser. Outro dado ruim é o absurdo das demissões de técnico. Os nossos gestores precisam evoluir também.
E o Inter e Grêmio?
Seria leviano falar, pois não vi todos os jogos de Inter e Grêmio. Não tenho como julgar. A vitória nossa contra o Grêmio foi o jogo mais difícil que tive.
E a Seleção? Te agrada?
É mais difícil. Você reúne e joga. Não treina.
Mas e a Alemanha, como consegue?
A cultura tática do europeu está a quilômetros na nossa frente. Se bem que a Alemanha quase perdeu para a Argélia na Copa. No passado, em outro estilo, mais conservador, a Alemanha tinha craques. Agora, não: prevalece o coletivo com ótimos jogadores. A rigor, é importante observar, o resultado é o mesmo: os alemães sempre chegam. É a cultura tática de que falo. O segredo é o lado coletivo para exaltar a individualidade.
Quem é melhor técnico do Brasil?
Tite. Tenho história boa com ele...
Que história é essa?
Sempre que nos encontramos, ele me diz: se tu não tivesse me indicado para o Grêmio eu não estaria aqui. Em 2001, eu estava na Globo e toca o telefone no hotel, em BH. José Otávio Germano queria falar comigo. Combinamos de nos encontrar na casa dele, onde estavam Luiz Eurico Vallandro e Dênis Abrahão. Me convidaram para treinar o Grêmio. Eu disse que tinha compromisso com a Globo. "Então me indica alguém", eles exigiram. "Tem dinheiro? Se tiver, pega o Bianchi, do Boca. Não tem? Tite, do Caxias. Olha o time dele: organizado, no 3-5-2", eu respondo. Buscaram o Tite e o resto a gente sabe. O Tite sempre me agradece. E eu brinco com ele: "pô, fala isso para a imprensa!" (risos).
A saída do Inter ficou no passado?
O problema é que onde eu vou me perguntam isso. E perguntam porque ninguém entende até hoje. Resultado não era, pois estávamos na luta por G-4 com Tinga e Andrezinho lesionados, Juan e Oscar na Seleção. Eu tinha pedido um zagueiro, um meio-campo e atacante para jogar ao lado do Damião. Tenho a convicção: se me dessem esses jogadores, a gente seria campeão. Depois que fui embora, e isso me deixou triste, baixaram 60 jogadores. Foi um episódio político. Não se avaliou o trabalho. Minha relação com o Inter é com a torcida. É doido isso, mas esse laço se fortaleceu.
E pensa em voltar um dia?
Eu estava aí, parado (risos). Era só ligar (mais risos). Não, não penso nisso (pausa). Não é meu sonho de consumo, por tudo o que aconteceu. Em 2011 tinha isso, de recomeçar onde me criei. Mas não imaginava que fosse terminar assim. Não houve desrespeito com o ídolo, mas com o treinador. Muitos, depois de mim, ficaram mais tempo no cargo com mais resultados negativos. Foi um fato muito individualizado. Mas enfim: ninguém morre por isso. As coisas passam.
Como é a tua relação com o Inter?
Não tem relação. Conheço todo mundo lá dentro, é claro. De vez em quando alguém me manda um torpedo, mas é raro. Quem me manda torpedo é o Duda Kroeff, ex-presidente do Grêmio (risos).
Isso te incomoda?
Não, porque as pessoas são do tamanho que são. Não dá para espichá-las. Não guardo ressentimento, mas acho que podia ter sido diferente. Estou aqui falando contigo medindo as palavras, pois muitos me dizem que fico falando mal nas entrevistas. Mas eu conto a verdade. Dei aquela a entrevista para o Benfica (Sílvio Benfica, da Rádio Gaúcha) dizendo que o Inter tinha de se qualificar, e usei as palavras "ainda mais". Quer dizer: tinha time, mas precisava de uma reforçada, por cartão, suspensão, calendário. Normal. E eu tinha razão. Mas aquilo foi usado de uma maneira absurda.
Aquela entrevista foi usada por quem não te queria no Inter?
Não vou te dar nomes, é claro, mas tive uma reunião depois na qual me cobraram a entrevista falando que aquele time tinha sido campeão da Libertadores. Eu disse: mentira. Não tinha mais Giuliano, Taison, Sandro. Até mudaram de treinador, do Fossati para o Celso. Aí deu silêncio na mesa. E repeti: preciso desses três jogadores para melhorar ainda mais. Mas passou.
Com a carreira retomada, és feliz no futebol?
Sou sim. Tenho uma família linda e estou trabalhando no que gosto. Vou reclamar do quê (risos)?
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