Completam-se dois meses nesta quinta-feira (20) desde que a Arena recebeu a última partida de futebol: a vitória do Grêmio sobre o Cuiabá por 1 a 0 pela terceira rodada do Brasileirão, em 20 de abril. Depois disso, o mar azul de torcedores que tomava conta das ruas no entorno do estádio deu lugar à lama e ao lixo arrastados pela enchente.
Sem condições de sediar partidas, a casa tricolor no bairro Humaitá, em Porto Alegre, silenciou. Ao redor da Arena, a esperança tenta gritar em cada canto da comunidade que depende dos jogos para sobreviver.
Se não bastasse todo o prejuízo causado pela inundação, a principal fonte de renda dos comerciantes secou. As últimas semanas têm sido de limpeza e organização do que restou. Em meio à tanta destruição, empresários como Luciano Pinheiro Osorio, 53 anos, dono do Bar do Lu, tentam se reerguer.
O Bar do Lu, tradicional ponto de encontro na Rua Luiz Carlos Pinheiro Cabral, costuma receber cerca de 3 mil pessoas em dias de jogos, como estima o proprietário. Luciano havia reforçado os estoques dê olho na movimentação prevista para o início de maio, com Brasileirão e Libertadores no horizonte do Grêmio. A água levou embora o investimento, inutilizou as sobras e deixou um prejuízo que já ultrapassa R$ 100 mil.
— Foi muito chocante. Dá vontade de desistir. Tinha fardo de latão boiando. Perdi 15 freezers, um deles de três portas, que precisava 10 pessoas para carregar. Fora isso, tem as dívidas que ficaram. Sou voluntário , estou entregando marmitas e acredito muito em Deus. Isso me dá vontade de seguir em frente — conta.
O empresário possui o bar no local há 20 anos, ou seja, desde antes da inauguração da Arena. Contudo, quando o estádio abriu as portas, na virada de 2012 para 2013, viu o faturamento dar um salto. São cerca de 300 caixas de cerveja e de 500 a 1 mil sacos de gelo vendidos por jogo, em média, produtos que ele também distribui para os ambulantes revenderem.
Luciano também aluga prédios para reuniões de torcedores. Com a Arena fechada, essa renda desapareceu. O empresário, criado no bairro Humaitá, anima-se com a possibilidade do retorno do Grêmio à Arena em agosto — a direção do Grêmio espera que, até lá, o gramado e as subestações de energia sejam restabelecidos e, assim, existam condições para receber o duelo com o Fluminense, em 13 de agosto, pelas oitava de final da Libertadores.
O trabalho de recuperação é conduzido pela Arena Porto-Alegrense, gestora do estádio. Apesar da expectativa, a conclusão dos reparos pode ser postergada em função de um impasse envolvendo a liberação do dinheiro do seguro do estádio. Saiba mais aqui.
— Setenta por cento da minha renda vêm dos jogos. A minha expectativa é muito grande (para o retorno dos jogos) para poder começar a ter uma esperança. É muito triste trabalhar e não saber o dia de amanhã — acrescenta.
Na boca dos comerciantes, a palavra "esperança" é um grito de gol em um jogo quase perdido. Para Jessica Bueno, 32 anos, proprietária do Bar d'Júlia, na Avenida Padre Leopoldo Brentano, abrir as portas do estabelecimento é urgente. Ela estima que 20 mil pessoas passem pelo bar em dias de grandes compromissos do Tricolor.
— Para nós, a retomada de jogos na Arena representa muita esperança. Por mais que a gente tente ser forte, dá vontade de fechar tudo e abandonar — comenta Jessica, que estima prejuízo de R$ 50 mil em bebidas que já haviam sido compradas.
Lixo e entulhos
Visitado pela reportagem de GZH nesta semana, o Bar do Lu e o Bar D'Julia retratam o que é visto no restante dos estabelecimentos vizinhos: portas abertas somente para limpeza, pintura, reforma e levantamento de prejuízos.
Além dos desafios entre quatro paredes, quem investe, trabalha ou mora perto da casa gremista ainda convive com pilhas de lixo e entulho pelas ruas. Ao circular pela zona norte, o forte cheiro, resultado de muito material orgânico em decomposição, ainda toma conta do ar em vários trechos dos bairros Humaitá e Farrapos.
O poder público não dá conta de tirar tanto lixo.
JESSICA BUENO
proprietária do Bar d'Julia
— O poder público não dá conta de tirar tanto lixo. Isso também gera acúmulo de roedores, bichos peçonhentos. Vai empobrecendo ainda mais esse entorno — avalia Jessica.
O Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) de Porto Alegre afirma que o critério para priorizar a limpeza de determinas vias é a liberação do fluxo de trânsito. De fato, as principais ruas ao entorno da Arena já apresentam um cenário melhor do que aquelas "mais escondidas" no interior dos bairros próximos.
A prefeitura ainda tem trabalhado com o sistema "bote-espera". São terrenos nos quais moradores e empresas podem fazer o descarte de resíduos "pós-enchente". No Humaitá, há uma dessas áreas, na Rua Voluntários da Pátria, sem número, no acesso 4, aberto das 8h às 18h.
Ainda conforme o DMLU, a coleta seletiva está ocorrendo regularmente nos bairros Humaitá e Farrapos. Diariamente, o cronograma de ruas que passam por limpeza é divulgado no site oficial da prefeitura da Capital.
Futuro
Moradora da Padre Leopoldo Brentano, Ibraima de Mello, 59 anos, espera ansiosa para retomar a atividade que complementava, de forma essencial, a renda do mês. Ela aluga quatro espaços na sua calçada para estacionamento de carros de torcedores. São R$ 120 por jogo que deixaram de entrar economia da família.
— Meu salário é uma pensão de R$ 300. É muito pouco. Eu cobro R$ 30 por vaga. Espero que os jogos voltem logo — desabafa.
As dificuldades da região, sejam elas sociais, como o caso da dona Ibraima, ou estruturais, como a exposição ao lixo e às inundações, estão no radar do Grêmio. Aliás, para o clube, o drama elevado ao extremo com a tragédia climática é uma oportunidade para chamar a atenção às demandas históricas.
É muito triste trabalhar e não saber o dia de amanhã.
LUCIANO PINHEIRO OSÓRIO
Proprietário de bar próxima à Arena
No início do mês, representantes do Grêmio entregaram um ofício ao ministro Paulo Pimenta, responsável pela pasta de Apoio à Reconstrução do RS. O documento propõe medidas para os bairros do entorno da Arena, a chamada "comunidade Tri".
Entre as reinvindicações estão melhorias na drenagem pluvial, revisão do sistema de contenção de cheias, investimento em reciclagem, melhorias em saúde e educação, desenvolvimento de projetos sociais, abertura de saída para a Avenida Castelo Branco perto da Arena e conclusão da nova ponte do Guaíba.
— O ministro Pimenta nos disse que é a hora de resolver tudo. É agora que o Estado, o município e a União têm que ter os projetos para resolver tudo. E há muita demanda. A gente não tem porque duvidar no ministro. Ele foi enfático — conta o vice-presidente do Grêmio, Eduardo Magrisso, que participou do encontro.
Pendência judicial
A Arena do Grêmio também convive com um imbróglio na Justiça sobre a execução de obras no entorno do estádio, previstas desde a sua construção. As principais são o prolongamento da Avenida A. J. Renner e a conclusão da duplicação da Avenida Padre Leopoldo Brentano, desde a Avenida Voluntários da Pátria até Avenida A. J. Renner. Em síntese, todos investimentos dizem respeito à mobilidade urbana.
Conforme o colunista Jocimar Farina, após meses sendo apontada como devedora das obras do entorno da Arena do Grêmio, a prefeitura de Porto Alegre conseguiu reverter temporariamente a decisão no 1º grau. Dessa forma, pelo menos por enquanto, as empresas Karagounis, Albizia — que fizeram parte do projeto da Arena concebido pela OAS — e Arena Porto-Alegrense são apontadas como as responsáveis pelas melhorias.
Que não se submeta a população da cidade a tamanho descaso.
EDUARDO MAGRISSO
Vice-presidente do Grêmio
Entretanto, há outros recursos para serem julgados até que essa novela tenha fim. Na prática, busca-se a definição sobre quem deve ser responsabilizado pelas melhorias que a região precisava ter recebido e que nunca saíram do papel.
— A cidade usa como pretexto a ação do Ministério Público para não fazer absolutamente nada. Que se façam as obras, que são responsabilidade do poder público e, depois, se cobre de quem tiver que cobrar. Mas que não se submeta a população da cidade a tamanho descaso — opina Magrisso.
GZH entrou em contato com o Ministério de Apoio à Reconstrução do RS e questionou quais foram os encaminhamentos dados às demandas apresentadas pelo Grêmio na reunião de junho. Não houve retorno até a publicação desta reportagem.