Desregulamentado até hoje, o homeschooling – ou ensino domiciliar – habita uma espécie de limbo jurídico no Brasil, segundo especialistas. Ainda que não haja uma lei que o proíba, também não há nada que o autorize. Com a realização de aulas remotas, decorrentes da pandemia, a discussão sobre essa prática tomou força entre a população e nas casas legislativas. O ministro da Educação, Milton Ribeiro, também já defendeu o método em diferentes ocasiões.
Muito antes da pandemia, em 2015 a pedagoga e consultora de homeschooling Gê Paier, 51 anos, já havia adotado a prática para educar sua filha, Alícia Paier, hoje com 17 anos. Elas adotaram a educação domiciliar cristã, modalidade na qual os estudos se baseiam nos ensinamentos da Bíblia.
Mãe de três filhos, Gê conta que a escolha desse método foi um processo que envolveu a percepção de como seu filho do meio, hoje com 23 anos, sofria ao frequentar a escola e o incômodo ao perceber que as instituições de ensino cristãs onde seus filhos estudavam permitiam que se tocasse funk no recreio. Em 2014, quando cursava Pedagogia, conheceu duas famílias homeschoolers e acabou chegando a um grupo que praticava a educação domiciliar cristã. Se inspirou no trabalho deles e resolveu fazer resumos de cada capítulo do livro As Crônicas de Nárnia com a filha, que na época tinha 10 anos.
— Enviei o material que produzimos para outras famílias e elas acharam os resumos tão bons que hoje eu vendo esse material e tenho até um clube de leitura, chamado Workbooks Nárnia, no qual fazemos a relação do livro com a Bíblia. É muito gratificante — conta Gê.
Aliás, livro é o que não falta na casa de um homeschooler, segundo a mãe educadora – como são chamadas as mães que praticam o homeschooling com seus filhos:
— Se tu chegas na casa da família homeschooler, vais ver mapas pendurados pelas paredes, globo terrestre, muito livro, normalmente de sebos. A gente vê muito preconceito, acham que a gente é uma família das cavernas porque ainda é algo muito desconhecido, mas não é como as pessoas acham.
Aprender não só para o vestibular
A rotina de Gê e Alícia segue um currículo básico, dentro do ensino domiciliar cristão, no qual se estudam disciplinas como história, geografia, ciências, matemática, entre outros, mas também leva em consideração os interesses da menina. Para a pedagoga, a diferença é que o foco é aprender para a vida, e não para passar no vestibular, cujo conteúdo pode ser ensinado em um cursinho de seis meses, em sua opinião.
Um dos interesses da filha é culinária – a adolescente fez um curso de gastronomia, aprendeu a fazer brownies e os vende pelo Instagram. Com o dinheiro que ganha, ela compra ações na Bolsa de Valores. A mãe educadora traz este como um exemplo de atividade em que se ensina, ao mesmo tempo, sobre empreendedorismo e educação financeira, algo que não está no currículo da maioria das escolas.
O maior desafio, de acordo com a pedagoga, é organizar uma rotina e um cronograma de estudos. Contudo, na opinião de Gê, pode ser uma opção para oferecer um ensino mais personalizado a crianças que, por vezes, “acabam ficando escanteadas” em turmas grandes nas escolas. Mesmo assim, salienta que o homeschooling não serve para todas as realidades.
— Ele (o ensino domiciliar) funciona para quem trabalha em casa, como eu, ou quando o casal opta por um dos dois parar de trabalhar fora para se dedicar ao homeschooling, mesmo que a renda diminua. Mas, ao contrário do que muitos dizem, esta não é uma prática só para quem tem muito dinheiro: há muito material gratuito ou barato na internet — ressalta. E conclui: — Crescemos achando que a escola é a única possibilidade, e não é.
Devido à falta de uma regulamentação, um dos maiores medos de pais que praticam o homeschooling é serem denunciados para o Ministério Público ou o Conselho Tutelar, onde, em caso extremo, podem ser penalizados por abandono intelectual. Gê nunca foi alvo de denúncias, mas conhece famílias que passaram por isso e cujo medo é uma constante, o que ela atribui à falta de informação até mesmo de conselheiros tutelares sobre o assunto.
O que a lei diz sobre o homeschooling
Em 2018, em recurso extraordinário, o Supremo Tribunal Federal (STF) negou o direito ao ensino domiciliar por não haver previsão para ele na legislação brasileira. Em nível federal, um projeto de lei do deputado Lincoln Portela (PL-MG) sobre o tema, que tramita desde 2012 na Câmara dos Deputados, tem sido discutido de forma ampla. A proposta altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação para prever que a Educação Básica possa ser oferecida em casa, sob responsabilidade de pais ou tutores legais. O texto prevê que o poder público faça a supervisão e a avaliação periódica da aprendizagem desses estudantes. O projeto tramita em regime de prioridade, mas ainda precisa ser analisado por mais três comissões de mérito antes de ir para votação.
Além da proposta discutida na Câmara dos Deputados, há projetos semelhantes em tramitação tanto na Assembleia Legislativa gaúcha como na Câmara Municipal de Porto Alegre. Na instância estadual, o deputado Fábio Ostermann (Novo) apresentou um texto que traz as mesmas diretrizes do projeto federal – a ideia é que a criança ou o adolescente seja matriculado em uma instituição de ensino a distância ou em instituição de apoio à educação domiciliar, que receberá registros das atividades pedagógicas. Os estudantes seriam avaliados em exames supletivos.
Já na Câmara Municipal da Capital, os vereadores Fernanda Barth (PRTB) e Hamilton Sossmeier (PTB) fizeram uma proposta na mesma linha. No entanto, prevê que o registro seja feito junto à Secretaria Municipal de Educação (Smed). O comprovante do registro automaticamente dispensaria a necessidade de matrícula em uma escola de ensino regular e serviria como instrumento de comprovação de matrícula e regularidade educacional para todos os fins de direito.
Muitos países do mundo inteiro já adotam o homeschooling, mas eles têm regulamentação para isso, e aqui não há legislação específica. Então, mesmo que o homeschooling exista, não há previsão legal
DENISE SOUZA
Advogada e presidente da Comissão de Educação da OAB/RS
A advogada e presidente da Comissão de Educação da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio Grande do Sul (OAB/RS), Denise Souza, aponta que a Constituição se limita a dizer que a educação é “direito de todos e dever do Estado e da família”, não deixando claro se precisa ser na escola ou não. Ela destaca que a competência para dar uma diretriz geral sobre o tema é do governo federal e caberia a Estados e municípios fazerem regulamentações específicas, mas há quem tenha o entendimento de que seria possível legislar a respeito em nível estadual ou municipal.
— Não é uma questão pacificada. Muitos países do mundo inteiro já adotam o homeschooling, mas eles têm regulamentação para isso, e aqui não há legislação específica. Então, mesmo que o homeschooling exista, não há previsão legal — resume Denise.
Uma pessoa que pratique o homeschooling pode ser denunciada por abandono intelectual, crime previsto no Código Penal, cuja pena é multa ou prisão de 15 a 30 dias. A advogada afirma que esse tipo de punição, porém, não é comum, e, se a família levar o filho para prestar exames e ele mostrar competências, dificilmente ela será condenada.
O posicionamento da Comissão de Educação da OAB/RS é de que o homeschooling precisa ser regulamentado ou proibido, mas que, enquanto houver esse limbo, sempre haverá debates. Na opinião de Denise, o Brasil está pronto para fiscalizar a prática, se necessário.
— Temos mecanismos para fiscalizar se a criança está aprendendo ou não, como o próprio Conselho Tutelar. Se for regulado e fiscalizado, o homeschooling não gera abandono dos estudos porque tu vais ter um cadastro de crianças que estão em ensino domiciliar. A evasão escolar é uma realidade no Brasil, mas não vai ser o homeschooling que vai piorar o que já temos — defende a advogada.
Para professora, modalidade “só teria aspectos negativos” no Brasil
A professora de Educação e Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Andreia Mendes dos Santos salienta que, mesmo que o homeschooling exista em diferentes lugares do mundo, o cenário no Brasil é outro. Na visão da docente, a prática poderia promover um aumento da desigualdade social, já que só quem teria acesso a esse tipo de educação seriam crianças de famílias mais abastadas, o que já feriria o princípio da garantia de uma educação de qualidade para todos.
Citando a filósofa Hannah Arendt, a docente afirma que a função da escola é fazer a fusão do mundo privado com o mundo público da criança e que, por definição, uma sala de aula tem por objetivo a articulação de ideias.
Na medida em que a criança fica em casa, nós quebramos a possibilidade de ela acessar a riqueza do processo escolar, de entender os diferentes contextos e realidades, as diferentes culturas
ANDREIA MENDES DOS SANTOS
Professora de Educação e Psicologia da PUCRS
— Na medida em que a criança fica em casa, nós quebramos a possibilidade de ela acessar a riqueza do processo escolar, de entender os diferentes contextos e realidades, as diferentes culturas. Quando uma criança convive em sala de aula com outra que tem mais dificuldade nos estudos, ela aprende a conviver e tolerar pessoas que têm ritmos diferentes do seu. O homeschooling, no Brasil, só teria aspectos negativos — opina Andreia.
Para a professora, outro ponto preocupante no ensino domiciliar é que ele não oferece diversidade – a criança aprende no processo de imitação e reprodução do que faz sentido para seus pais, e não a partir da pluralidade da troca com diferentes professores e colegas em sala de aula.
— A experiência fica pobre e extremamente controlada do que chega para a criança. A serviço de que estaríamos fazendo essa educação? É quase uma forma de censura: eu faço a seleção do que é importante que tu aprendas. É um projeto elitista — avalia a docente.
Andreia ressalta, ainda, a importância de não se confundir a experiência de ensino remoto com o homeschooling. Segundo a educadora, o ensino remoto atual é um plano de contingência para dar conta de uma crise sanitária, mas o homeschooling é uma modalidade que não envolve professores e colegas nem mesmo de forma virtual.