Quando falamos de monogamia, falamos de exclusividade. Na relação não monogâmica, esse contrato de vínculo único é negociado entre as partes do casal, e pode ser colocado em prática de inúmeras formas. Cada vez mais, casais estão descobrindo novas formas de se relacionar e experimentar a liberdade a dois.
Esse modelo de relacionamento virou assunto novamente nas redes sociais após uma declaração da empresária e influenciadora digital Bianca Andrade, de 25 anos. Em entrevista, ela afirmou que não funciona dentro de "relacionamento fechados" e explicou como enxerga suas relações amorosas:
— Amo minha liberdade, ser 100% independente, sem nenhum tipo de posse ou ciúme. É impressionante ver como isso me rege. Com meus amigos e minha família, tudo é tão leve e livre que acho que meu relacionamento amoroso deve ser do mesmo jeito. Da mesma maneira, também não cobro, só que poucas pessoas conseguem amar uma mulher livre. Não é que eu não ame, eu amo, mas um relacionamento fechado não rola. Monogamia, pra mim, não funciona. Não tenho rótulos. Sou feliz desconstruída — afirmou a Boca Rosa à revista Quem.
A declaração repercutiu na internet e levantou a discussão sobre como funcionam esses relacionamentos na prática. Por isso, ouvimos três mulheres, de idades e relações não monogâmicas diferentes, para contar como é a experiência delas.
Confira:
Teca Curio, 38 anos, produtora cultural
"Na minha adolescência, nunca tive relações estáveis, mas sim variáveis, ficava com mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Nunca quis namorar, como os adolescentes sempre querem, aquela coisa certinha de sentar no sofá com a família.
Nós começamos com um relacionamento monogâmico, nos casamos muito cedo. Temos uma filha, que hoje tem 20 anos e sabe da dinâmica da nossa relação, aceita bem. Estamos juntos há 21 anos. Foram dez de monogamia e mais ou menos dez de relacionamento livre. Como a gente nunca foi monogâmico de verdade, cada um sempre teve suas experiências, os seus amigos em separado. A gente saía sozinho, não era como um casal que onde um vai, o outro vai também.
Começamos a ver que a monogamia estava nos sufocando, nos aprisionando, nos oprimindo. E decidimos conversar. E aí surgiram histórias do fundo do baú sobre traições. Foi quando percebi que aquilo não me causava sofrimento. Ficava feliz por ele ter passado por essas situações e vice-versa. Então decidimos abrir a relação. Vivemos um relacionamento aberto em um primeiro momento.
Só que as coisas estavam um pouco confusas, porque ainda existia a sensação de ciúmes. Depois, conheci o Coletivo Rede Relações Livres, que foi fundado aqui em Porto Alegre. Hoje sou coordenadora do projeto, junto com os outros dois fundadores. Foi quando eu vi que a relação aberta ainda tem regras, e isso não servia para mim. Descobrimos então a relação livre, que é a não monogamia que eu esperava para mim e queria para a minha vida, assim como o meu companheiro.
Optamos por ter uma relação livre e começamos a trabalhar nisso. É um processo muito longo, não é uma coisa que do dia para a noite tu simplesmente descobre que é e consegue ser. É complexo. O relacionamento livre respeita o indivíduo como um ser único, que está livre para ter suas vivências, seus amores, sua sexualidade, de uma forma bem liberta.
Traição para mim não é o ato em si. É o esconder, o omitir, o mentir, o enganar. Isso que é muito complicado
TECA CURIO
Acho que todo mundo tem tendência a ser não monogâmico. É só checar o índice de traições em casamentos monogâmicos. A monogamia não funciona porque todo mundo quer preencher alguma coisa que o companheiro não preenche. Não somos perfeitos, não damos tudo o que a pessoa precisa. Na nossa relação, a gente soma, não subtrai. Por isso que outras pessoas acabam entrando nas nossas vidas, porque essas pessoas somam o que o companheiro não supre.
Não existem regras. Traição para mim não é o ato em si. É o esconder, o omitir, o mentir, o enganar. Isso que é muito complicado. Nós somos muito criticados por ter esse estilo de vida, mas a gente não mente, não esconde"
Regina Faria, 50 anos, jornalista
"Faz dez anos que só entro em relacionamentos livres. Atualmente, sou membro do Coletivo Amigas e Amigos Não Monos RS e mantenho um de muito amor, à distância, que já dura anos. Estou começando outro com uma pessoa aqui de Porto Alegre. Tive uma relação livre que durou seis anos e terminou em 2018.
A regra básica que gosto de manter sempre é: vamos compartilhar quando surgir em nossas vidas uma pessoa interessante, uma paixão mais profunda, especialmente se vai provocar efeitos na nossa relação (como menos tempo, para reorganizar as agendas). No restante, acho bacana ter liberdade para contar o que quiser, como em uma amizade. Mas isso não é uma regra. O mais legal é quando acontece naturalmente.
Em rodas com outras pessoas não monogâmicas, você percebe que os acordos variam muito. Há quem queira saber tudinho, faça questão; há quem queria não saber de nada. Cada um ajusta sua relação da forma que acha mais confortável. O importante, eu acho, é que sempre haja mais prazer e alegria do que dor.
Para mim, trair é romper com um combinado explícito, dito, que seja evidente para duas ou mais pessoas. Acho que isso serve para relações amorosas no geral. Agora, limites como 'não pode beijar, não pode se apaixonar', isso não rola nas relações que tenho, porque são relações livres, e não abertas. Cada relação não monogâmica é única, então, um requisito básico é se dispor a investir em comunicação, ter paciência de conversar, ter disponibilidade para aprender. Acho isso lindo porque te aproxima de uma pessoa muito profundamente. Mas não são tudo rosas, de jeito nenhum. Toda relação têm problemas.
Na prática, não monogamia é para quem está decidido a nadar contra a corrente, e isso tem um custo
REGINA FARIA
Eu valorizo muito não me sentir possuída, na linha do que a Boca Rosa expõe. Acho que ninguém nasce monogâmico. Isso porque entendo monogamia não como o simples fato de estar apenas com uma pessoa (nesses dez anos, passei longos períodos com uma só pessoa, e estava tudo bem). Entendo monogamia como a proibição de se relacionar afetiva e sexualmente com mais de uma pessoa ao mesmo tempo.
Essa proibição foi construída socialmente. A humanidade tem 200 mil anos e só vive monogamicamente há 10 mil, no máximo. Então, natural não é. Mas tem um grande 'entretanto'. A regra é ser monogâmico, e isso está sistematicamente em todo canto - nos filmes e canções, na cama que é de solteiro ou de casado, na organização do Estado, que só aceita um cônjuge, assim como o plano de saúde.
Na prática, não monogamia é para quem está decidido a nadar contra a corrente, e isso tem um custo. Família, trabalho, tem as questões formais, a desconstrução que cada um quer fazer. Eu acho que vale a pena. Mas cada pessoa é que deve decidir"
Giulia Andrade, 26 anos, vendedora
"Quando nos conhecemos, eu estava terminando meu relacionamento da época, que também era aberto. Ele também teve experiências prévias em relacionamentos abertos. Eu já me posicionava bastante como não monogâmica. Considero como um posicionamento, porque diz muito sobre o que eu acredito das relações humanas e do amor romântico, sobre a noção de posse.
Já havia decidido não ter mais relações monogâmicas, porque não é o tipo de relação em que me sinto confortável, não funciona para mim. Ele também já tinha os mesmos pensamentos, então foi bem tranquilo. Conforme a relação foi evoluindo, a questão de ser uma relação aberta já havia sido bem discutida. Sempre conversamos muito, sabíamos o que o outro pensava. Foi quase que espontâneo e natural.
Não acho que relações monogâmicas sejam erradas ou nada do tipo. Só acho importante discutirmos por que achamos errada a ideia de sentir atração por outra pessoa e colocar em prática. Também não acredito que ninguém nasce predisposto a ter relações monogâmicas ou não. É mais uma questão social e cultural. A monogamia é um sistema, um padrão de comportamento, fortemente vinculado ao conceito de amor. Na nossa sociedade, temos um discurso compulsório da monogamia. Todos os casais que vemos no cinema, na literatura, na música, normalmente são monogâmicos. Somos expostos a isso, então a tendência é agir desse jeito. É um sistema que internalizamos por exposição.
Não acho que relações monogâmicas sejam erradas ou nada do tipo. Só acho importante discutirmos por que achamos errada a ideia de sentir atração por outra pessoa
GIULIA ANDRADE
Eu decidi aderir à prática não monogâmica porque, apesar de eu amar demais o meu namorado e querer passar os próximos anos da minha vida com ele, outras pessoas também vão ser interessantes por motivos diferentes, de formas diferentes, e eu vou ter toda uma gama de sentimento e atração por outras pessoas - o que não influencia em nada o sentimento e atração que tenho por ele. Então por que negar isso? Por que fingir que eu não tenho esse tipo de atração? Por que exigir da pessoa que eu amo e quero ver bem privação e sacrifício para provar que me ama? Eu basicamente decidi aderir à não monogamia por me recusar fazer o teatro de que esses sentimentos não existem em mim e na outra pessoa.
Eu sei quando alguém é interessante para ele, ele sabe quando alguém é interessante para mim. A gente não precisa esconder essas coisas um do outro. Sinto que nos relacionamentos abertos que tive eu consegui um nível de conexão muito maior porque confiamos mais por conta da liberdade que temos para falar sobre o que a gente sente. Não vejo como poderia ser amor se eu privasse meu namorado de sentir esse sentimento gostoso de fazer o que o deixa feliz.
Sobre as regras, às vezes tu estabelece uma coisa no início, depois não fica confortável com aquilo, e tudo bem mudar. Nós meio que combinamos de contar para o outro quando ficássemos com outras pessoas. Antes de ser namorados e morarmos juntos, somos amigos. Então é natural, é algo espontâneo. Também tem uma ou outra pessoa específica que desencadeiam algum tipo de insegurança na gente, então combinamos de não ficar com essas pessoas. Afinal, não é porque estamos em um relacionamento aberto que não nos importamos com o que a outra pessoa sente.
Traição, para mim, é deixar a minha parte do chocolate na geladeira e no outro dia não estar lá. Acho traição imperdoável! (risos). Traição é comprar doce e não guardar um para mim. É assistir à série que combinamos de assistir juntos. É quebra do contrato. Se isso está estabelecido que não se faz, e a pessoa faz, é traição. Mas, no nosso relacionamento, não temos muitas regras. Uma traição seria ele não me contar de alguém, mas ainda sim não chega a ser uma grande traição, porque eu não enxergo como regra, mas como algo natural.
A nossa diferença é que não nos envolvemos afetivamente com outras pessoas. Não que há uma grande regra sobre, mas nunca aconteceu. Até porque moramos juntos, não teríamos nem tempo para isso (risos). Também por morarmos juntos, acabamos frequentemente conhecendo a pessoa que o outro fica. Não nos importamos de ver o outro com outra pessoa, não é uma questão para nós. Mas, quando algo nos incomoda, conversamos sobre isso, e estamos em constante ajuste"
*Produção: Luísa Tessuto