Fafá de Belém, você sabe, é uma mulher que gargalha alto – foram umas 10 risadas ao longo dessa entrevista. O riso solto, intenso, espontâneo, praticamente uma assinatura dessa paraense de 65 anos, nunca a impediu de se posicionar e abordar seriamente os temas que considera importantes.
Aliás, a Maria de Fátima Palha de Figueiredo, com sua gargalhada, parece mesmo a pessoa ideal para as duas “frentes” de batalha citadas ao longo das respostas enviadas via WhatsApp, numa tarde de quinta-feira, pouco antes de ela voltar para a capital paulista, onde mora, depois de um dia de compromissos em outra cidade. O ritmo de trabalho se mantém, mesmo após uma pequena intervenção cirúrgica na coluna, realizada em janeiro (por isso a bengala na foto, que ela ainda deve usar por mais um tempo).
— Antes de responder a essas perguntas, fiz fotografias, gravei “merchan”, “publi”, almocei com colaboradores, tudo aqui no Guarujá, e agora estou voltando para São Paulo. Lá, faço acupuntura e chego em casa para mergulhar na Netflix (gargalhada, a primeira) — conta.
Em uma dessas “frentes”, ela está quase naturalmente, e com muita autoridade, apenas por ser quem é, dada a sua trajetória, ligada à emancipação feminina em tantos aspectos. “Sou uma pessoa muito na contramão”, reconhece.
— Desde que era criança, o padrão de beleza que se tem, que se quer, que se estampa, é de mulheres retas. Depois, todo mundo sarado, barriga tanquinho. Essa não é a realidade de uma brasileira comum. Eu sou uma brasileira comum. Sempre tive peito, cintura, quadril, coxa grossa, bunda… e tinha dificuldade no que vestir, nem encontrava pronto. Mamãe costurava bem. Assisti a um filme da Sophia Loren e voltei encantada, porque ela valorizava as curvas. Curvas que eu tinha e ainda tenho, graças a Deus, e ela também ainda tem (outra gargalhada). E passei a desenhar as roupas e a minha mãe a fazer: decotes, saia rodada, espartilhos, valorizar o colo… Emociona encontrar pessoas que ainda hoje me agradecem por essa libertação. De trazer para a TV, para a mídia da época, uma mulher brasileira real — pontua.
Outra “frente” de batalha é ajudar a retirar a capa de invisibilidade que a sociedade joga sobre pessoas a partir de determinada idade. O The Voice+, programa para talentos musicais com mais de 60 anos, do qual é jurada, tem contribuído para a missão.
— É uma bandeira que estou levantando, desde o princípio da pandemia com mais força, e está tendo uma grande aderência. Nós somos a próxima revolução — avisa, sem dar risada.
Fafá revela que está começando a contar suas histórias e que “vem coisa por aí”, talvez se referindo a um livro de memórias. Não há dúvidas de que uma paraense que canta desde os nove anos, que construiu um repertório original e variado, incluindo guarânias, fados, lambadas, carimbós, baladas, sambas-canção, rock e boleros, que foi para Rio de Janeiro com 13 anos, que “gosta de gente” e que faz sucesso há mais de quatro décadas tem muito a contar. Vai ser difícil determinar quando acaba.
— A minha curiosidade pela vida não diminui e nem vai — finaliza.
Entrevista: “Meditar: recomendo vivamente”
Como foi o processo de assumir seus cabelos brancos?
Já faz uns quatro ou cinco anos que eu queria deixar o cabelo branco. Vinha acompanhando, primeiro na Europa, as mulheres deixando de pintar. Depois, adolescentes descolorindo, para ficarem com fios cinzas… O meu cabelo é de índio, expulsa a tinta. Estava tendo de pintar de sete em sete dias. Viajava com aqueles sprays, que são ótimos, para refazer a raiz no meio das turnês. Quando começou a pandemia, tinha passado um mês viajando sem pintar. Aí fui gravar um filme da Thalita Rebouças (Pai em Dobro). Era para eu usar uma peruca, e ali comecei a tirar a tinta. A pandemia deu cabo do resto. Gosto do cabelo como está, mas cresce e alguns são escuros (risos). Voltei a usar vinagre de maçã para limpar bem os fios e uso xampu roxo. Testei cinco marcas até chegar à que ficou bacana no meu cabelo.
Você mantém uma rotina de atividade física? E em relação à saúde mental? Faz meditação?
Gosto de água: natação, hidroginástica. Gosto de caminhar ao ar livre e, uma vez por ano, vou ao Rio Grande do Sul, para minha temporada em um spa. Faço isso há 23 anos. Adoro. Uma vez por ano, mergulho de 10 a 15 dias cuidando de mim aí. Meditação comecei a fazer há tempos e voltei na pandemia. Recomendo vivamente. Quem não tiver como fazer um curso, tem vários apps de meditação. A prática regular traz uma paz, um equilíbrio, principalmente em momentos complicados. Sempre busquei por mim. Nunca fui uma “pessoa normal”, então, desde criança, eu recebi muitos nãos, porque sou muito “na contramão” (gargalhada). Mergulho em terapias holísticas, meditação, reiki, constelações familiares, estudo um pouco tudo isso, estou sempre me buscando e gosto. Agora estou fazendo uma terapia de hipnose, para localizar medos, que estou adorando. A busca para se estar plena é muito melhor do que ficar tentando se adaptar a uma realidade que não é a nossa.
Dá para dizer que você praticamente mora em dois países, Brasil e Portugal. Como é a rotina? Qual a sua impressão sobre as lutas e conquistas femininas por lá?
Eu vivo entre Brasil e Portugal há 40 anos. Há cinco, tenho casa em Portugal, o que me faz ir para lá com muita frequência. Gosto de casa e de hotel com cara de casa. Esses hotéis muito hypados, não tenho paciência não... redes muito grandes também não gosto. Sobre a luta das mulheres por direitos, é algo que está em todo o mundo, estamos acordando para isso. A minha geração é anos 1970. Por ali, a gente começa… pensa em Chiquinha Gonzaga, bicho, a mulher enfrentou tudo e todos. Está ganhando corpo cada vez maior o mutirão de mulheres se conhecendo, se reconhecendo. Para mim, a grande novidade são as mulheres se apoiando. Vivemos em um machismo estrutural, mas também vivemos um matriarcado machista. Essa é a grande revolução: a gente está se apoiando, conversando, se respeitando… essa é a grande mudança desse milênio.
Você tem contato diário com suas netas, Laura e Julia? Como é a Fafá avó?
Falo todos os dias com elas. Sou coruja mesmo, apaixonada por elas. E hoje acho que estou mais com Mariana (a única filha de Fafá) do que enquanto ela crescia. Quando ela nasceu, eu estava explodindo. Eu passava meses viajando e nunca a levei para não desestabilizar a vida dela, a escola, a rotina. É interessante que o nascimento das netas nos aproximou mais ainda. Como é que sou como avó? (gargalhada) Eu adoro elas. Mas não tenho paciência para criança mal-educada, ok? Criança excessiva não suporto. A educação é o princípio básico da convivência consigo e com o outro. Então não sou aquela avó “que estraga”. Aqui você pode tudo? Não. Aqui não pode tudo, meu amor. A pequenininha, que é terrível, (diz) “mas lá em casa”... eu digo “lá é a sua casa, aqui é a casa da vovó”. Mas estamos sempre juntas, viajamos, ligo todo dia para dar beijinho, sinto muita saudade quando a gente está longe.
As novas gerações geralmente nos atualizam, nos fazendo perceber e entender as novidades. O que suas netas já ensinaram ou ensinam a você?
Está ganhando corpo cada vez maior o mutirão de mulheres se conhecendo, se reconhecendo. Para mim, a grande novidade são as mulheres se apoiando
FAFÁ DE BELÉM
Elas são muito crianças ainda. A Julia tem seis anos e a Laura, 10. Então, o que elas me ensinam? TikTok (gargalhada), a mexer nos computadores… Mas eu gosto de gente jovem. Gosto de gente. E os jovens me ensinam muitas coisas, ou me reensinam ou me reeducam para afinar o olhar sobre algumas coisas, para afinar o olhar principalmente em relação ao preconceito, que a gente sempre tem sobre alguma coisa, mesmo não admitindo. Gosto de ouvir pessoas da nova geração de música, assistir a shows delas. Tenho amigos que me trazem coisas novas para ouvir e tudo isso é muito bom, para a gente saber quem é, para a gente aprender através de um olhar mais contemporâneo.
Me chamou atenção no seu Instagram uma foto em que aparecem você, sua filha e o pai dela, Raul. Você cita na legenda a música-tema do programa A Grande Família. E a Mariana comentou: “Amo nossa família nada tradicional”. O que ela quer dizer? Como é essa família “nada tradicional”?
Essa música é a nossa cara. Eu me separei de Raul logo depois que Mariana fez dois anos. Ele é um músico maravilhoso, somos grandes amigos, mas temos jeitos muito particulares. Não somos uma família de todo domingo se falar, de todo Natal estar junto, até porque cada um vive em um lugar do mundo. Mas nós nos amamos profundamente. A brincadeira era essa. Ser uma família, como várias outras, diferente do tradicional, convencional, e nos amamos, nos divertimos tanto, damos risada de tudo, até da gente.
Ainda sobre seus posts no Instagram: a foto abraçada ao Elton John é demais! Suas memórias podem render livro, não? Tem algum projeto de autobiografia vindo por aí?
Eu cheguei de Belém e morei no Rio de Janeiro dos 13 aos 16 anos. Voltei para lá já cantando, com 17 para 18 anos. Sempre gostei de conhecer gente. Então, tenho histórias e fotografias maravilhosas desde 1970, fora as anteriores, na minha casa, nas praias do Pará. Um livro de fotos, uma fotobiografia seria maravilhosa, não pensei nessa possibilidade. Mas estou começando a contar as minhas histórias. Vem coisa por aí. A minha curiosidade pela vida não diminui e nem vai. Eu adoro viajar para lugares inusitados, descobrir coisas novas… é parte de mim.
Alguma vez você já sentiu a idade como um problema, um obstáculo? Você fez uma declaração potente no programa The Voice+, falando da capa de invisibilidade que precisa ser tirada das pessoas com 50+.
Eu nunca soube direito a minha idade nem me baseei nela para viver. Mas a gente percebe, sabe e ouve coisas inacreditáveis. Até de pessoas que você acha que tinham superado o julgamento do tempo. Quando eu lancei o Tamanho Certo para o Meu Sorriso, disseram que me reinventei aos 60 anos. Fui convidada por um grupo chamado Geração 60+, de mulheres e alguns homens, amigos de faculdade, que viajavam juntos, casaram, vieram os filhos, estavam sempre juntos. Aí, depois de um tempo, começaram a perceber que uns começaram a falhar nos encontros… e isso é a tal da capa da invisibilidade. É como se a sociedade nos jogasse para um canto: você não tem direito mais ao prazer, você não tem direito mais à alegria, nem a descobrir coisas novas, você não tem direito. Você tem só deveres: ficar em casa, cuidar dos netos enquanto os filhos saem, enfim. A gente adora tudo isso, mas a gente não é obrigado. Não podemos ser obrigados a abrir mão dos nossos sonhos porque passamos dos 50 anos. Então, o The Voice+, para mim, está sendo maravilhoso como uma plataforma de discurso. Esse povo do geração 60+ me convidou para ser uma das madrinhas do projeto geração X+. É isso. A gente tem de se mexer, temos de nos fazer respeitar ou somos tragados por uma sociedade que acha que depois de 45… mulher então… o homem pode ter sua barriguinha, seu grisalhinho. Já a mulher, depois dos 40 não esquenta. É ridículo tudo isso. Essa é uma bandeira que estou levantando, desde o princípio da pandemia com mais força, e está tendo uma grande aderência. Nós somos a próxima revolução.
Como está sendo a experiência como técnica no programa? O que mais encantou você até agora nas gravações?
Estou amando. O que mais me encanta são os candidatos. Pessoas que estão ali, de peito aberto, se jogando, lutando pelo que acreditam, pela música, brigando pelo seu espaço, contando suas histórias. Histórias lindas que, com certeza, encorajam muitas pessoas a descobrir que a vida continua.
Tem algum arrependimento na vida? Ou algo que, se pudesse, faria diferente?
Não me arrependo de nada. Se pudesse, colocaria o nome da minha biografia de “Confesso que vivi”. Mas Neruda fez antes de mim (gargalhada).
Estar em um relacionamento amoroso é importante para você? Sente falta disso nesse momento da vida?
Deixa eu te falar que nunca senti falta disso para ser feliz. “Ah, eu preciso achar alguém…”, nunca. A paixão acontece e ela vem para completar, fazer você vibrar, ser feliz, ver as estrelinhas nos olhos, as borboletas na barriga, aquele frio na coluna… a expectativa do encontro. Agora, depender de estar com alguém para se sentir viva? Não. Para mim, é muito pouco. Tenho uma vida inteira, todos temos. Adoro meus amigos e sempre que aconteceu um grande amor, me joguei de cabeça, mas com muita discrição.
Com quais projetos estás envolvida ou virão por aí?
No final do ano passado, eu estava completamente envolvida com um projeto que, a partir do convite do The Voice+, virou fumaça. Muita coisa está se desenhando pela frente, mas te dizer vou fazer isso, vou fazer aquilo, está muito cedo. Atualmente, estou completamente voltada para o programa, para esse repertório, para ouvir e ver as pessoas com coração mais aberto possível, poder falar coisas boas para elas, de incentivo, poder escolher meus candidatos, sempre que tocam meu coração e pela afinação, é claro. Mas um projeto que gostaria muito de fazer, muito mesmo, é o Leontina das Dores, essa ópera urbana feita, desenhada por Luiz Coronel, que conta a história dessa menina dos Pampas desde 11 anos. O crescimento dela, a paixão, o casamento, o filho, a separação e ela pelo mundo. Então, eu cutuco sempre o Luiz Coronel. Um dia desses, eu voei com o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, por quem tenho uma grande simpatia, e cutuquei também: “Escuta, cadê a nossa Leontina?”. Então, é uma provocação para todos que fazem cultura no Estado, para mostrar essa Leontina não só em Porto Alegre, mas como foi feito com Maria, Maria, há 40 anos. Mostrando essa mulher negra mineira, cantada por Milton Nascimento e Fernando Brant. Mostrar essa Leontina, essa mulher pampeana para todo o Brasil, nas palavras de Luiz Coronel e nas canções de grandes autores gaúchos.