Seja nos palcos, nos cinemas ou na tela da TV, Renata Sorrah é uma potência quando está em cena. Em mais de cinco décadas de carreira, seu currículo acumula superlativos: são mais de 30 novelas, com personagens que ajudam a contam a história da televisão brasileira. Você talvez não se lembre quem matou Odete Roitman, mas certamente se recorda da filha alcoólatra da vilã, Heleninha, que promoveu alguns dos escândalos da trama de 1988, Vale Tudo. Acrescente à lista a memorável Nazaré Tedesco, de Senhora do Destino (2004), considerada uma das maiores vilãs da TV. Inclusive por quem talvez não tenha assistido, à época, as icônicas cenas em que a loira dissimulada jogava seus desafetos do alto da escada. Mais de 15 anos depois, a “Naza” é lembrada na internet.
— Fazer um trabalho com tal alcance popular só me dá alegria e também crença na arte e na cultura brasileira — reflete, em entrevista a Donna.
Além das vilãs inesquecíveis (que não foram tantas assim, costuma frisar), Renata deu vida a personagens que derreteram o coração do público, como a Nivea de Assim na Terra como no Céu (1970) – que precisou voltar à trama em flashbacks mesmo após a morte, pouco antes de subir ao altar, tamanho seu apelo. Neste mês, soma ao currículo uma produção que tem tudo a ver com ideias em que acredita: trata-se de Filhas de Eva, que estreou no Dia da Mulher. O seriado conta as histórias de três mulheres em diferentes fases da vida, com dilemas que conhecemos bem: os altos e baixos da maternidade, os conflitos da vida a dois, as autocobranças por não ter ido atrás de tudo aquilo que sonhava na juventude... Já no primeiro capítulo, Stella, personagem de Renata, pede o divórcio na festa de 50 anos de casamento. Na plateia, a filha, vivida por Giovanna Antonelli, assiste a tudo enquanto convive com a angústia pelas amarras de seu relacionamento falido. O trio de protagonistas conta ainda com Vanessa Giácomo, às voltas com dificuldades financeiras.
— Nunca premeditei nada na minha vida. Premeditei a minha vida toda para você — confessa Stella ao marido, após a separação. — Me deixa viver.
O desejo de viver plenamente parece ter tudo a ver com as escolhas de Renata para a sua própria trajetória. Sem pensar duas vezes, largou a faculdade de Psicologia quando entrou para um grupo de teatro. Desde então, são suas vontades que regem as próprias decisões. Costuma dizer que nunca ficou em um relacionamento “que não fosse ótimo”. Hoje, é uma das personalidades que melhor representam a mulher de 70 que não tem medo de envelhecer. Ao lado da filha, a pediatra Mariana, e dos netos, Betina, de oito anos, e Miguel, 11, descobre, todos os dias, os prazeres da nova fase: ser avó. Mas sem perder a essência da mulher transgressora que sempre foi, como mostra na entrevista a seguir.
Em Filhas de Eva, Stella pede o divórcio depois de um casamento longevo. O que muda na vida de uma mulher que se separa com mais de 60 anos atualmente?
Muitas coisas mudam. A mulher se torna mais independente, livre, passa a ser dona da sua própria vida, dos seus desejos. Não acho que o casamento perde o seu espaço, mas ele não é mais a única opção de felicidade de uma mulher. A questão que se apresenta é social, isso é um problema que a personagem enfrenta na série: ela não consegue encontrar trabalho. Pessoas acima de 60 anos devem ter oportunidades de trabalho e de aposentadoria dignos, e isso não acontece no Brasil.
Sua personagem na série diz ter abandonado muitos sonhos por causa do casamento.
As mulheres ainda abrem mão de muita coisa em nome do ideal romântico hoje?
Existem mulheres da minha geração que são livres e que conquistaram essa liberdade. E existem mulheres jovens apegadas a uma moral que as impede de viver a suas vidas de maneira plena, mas prefiro acreditar que nós estamos avançando e que os conceitos morais não podem determinar o sentido das nossas vidas. Hoje, muitas mulheres ocupam cargos de poder em vários setores da sociedade. Nós precisamos avançar mais e barrar os retrocessos que vivemos.
Você se identifica com o conceito ageless, das mulheres que acreditam não ter “idade certa” para qualquer questão na vida?
Me identifico totalmente com esse conceito. Sempre dirigi a minha vida e tenho consciência dos limites e potências da minha idade. Sempre tive essa noção em cada etapa da minha vida.
O cinema nacional encara desafios com os últimos cortes envolvendo a área cultural.
Com a pandemia, isso se intensifica. Quais serão os impactos do coronavírus para o nosso cinema?
A sociedade precisa se mobilizar contra o desmonte da cultura no Brasil. Um país sem arte, sem cultura, sem educação, é um país morto. Não é só o cinema que sofre duras dificuldades com os últimos cortes na área cultural, mas também o teatro e a dança. Só veremos novamente a cultura florescer se houver investimentos e a consciência de que são atividades públicas e essenciais para toda a sociedade. Essa é a retomada. E se nós todos nos vacinarmos.
Uma das suas personagens mais icônicas é uma vilã, lembrada pelo público até hoje. Como a Nazaré marcou sua carreira? E como foi vê-la ter ganhado tanto poder e repercussão na internet?
Sempre fiz trabalhos marcantes, seja no teatro, no cinema e na televisão. A Nazaré, que amei fazer, é mais um desses trabalhos, assim como foi, por exemplo, a Medeia (2014) e a Mary Stuart (1996) no teatro, a Madame Satã (2002) no cinema, e claro, Nazaré, Heleninha Roitman, Pilar Batista (de Pedra sobre Pedra, 1992), Zenilda (A Indomada, de 1997), Mariana (O Primeiro Amor, de 1972), entre outras na televisão. Todos personagens complexos e instigantes. Fazer um trabalho com tal alcance popular só me dá alegria e também crença na arte e na cultura brasileira. Nazaré é um personagem que fiz há mais de 15 anos e que vibra até hoje. Nazaré foi trending topic mundial e hoje nem me pertence mais.
Você tem uma relação forte com o teatro. Após a pandemia, como será o reencontro com o público?
Tenho certeza de que vai ser lindo o meu reencontro com o teatro. Sonho em chegar no meu camarim, encontrar os meus colegas, fazer os aquecimentos de corpo e voz, passarmos juntos mais uma vez alguns trechos da peça, vestir o figurino, fazer a caracterização e esperar o primeiro sinal. Ouvir o público entrando, abraçar os colegas, falar “Merda!”. Segundo e terceiro sinal, entrar em cena e dar início a um encontro único, especial e generoso com o público. Receber os aplausos de peito aberto e esperar pela próxima noite.
Durante a pandemia, você esteve em uma live para a encenação da peça A Gaivota. Como foi encarar esse novo formato de interação com o espectador?
Fizemos um trabalho, escrito e dirigido por Márcio Abreu, que visitava memórias de uma peça que fiz nos últimos nove anos com a Companhia Brasileira de Teatro e um pequeno trecho da Gaivota do Tchekhov, que fiz em 1975 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, dirigido pelo Jorge Lavelli. Foi uma nova experiência de relação com o público, numa plataforma digital. Milhares de pessoas do Brasil puderam assistir, e isso foi incrível. Numa noite, a gente teve um alcance equivalente ao de um ano inteiro no teatro. Foi importante manter o vinculo com o teatro.
No ano passado, a novela Vale Tudo, um de seus trabalhos mais marcantes, entrou para o catálogo do Globoplay, e o público traçou paralelos da trama de 1988 com o Brasil atual. No que melhoramos e no que não evoluímos enquanto sociedade, enquanto país?
A última cena da novela Vale Tudo mostra um empresário corrupto dando uma banana para o Brasil e indo embora. Hoje, estamos ainda pior. O que acho realmente importante? É que cada um de nós lute por um Brasil melhor.