Quando criança, ela dispensava os gibis e passava horas lendo livros de receita, mas não se atrevia a entrar na cozinha - sua avó era a soberana desse lugar da casa. Roberta Sudbrack, gaúcha, que hoje mora no Rio de Janeiro, só recebeu o chamado das panelas quando foi morar sozinha, nos Estados Unidos, para fazer um curso de veterinária, e precisou cozinhar para si mesma. Foi na busca de um outro sonho que descobriu a paixão pela gastronomia e se tornou uma das chefs mais renomadas do Brasil. Roberta também foi a primeira mulher a comandar a cozinha do Palácio da Alvorada, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.
O que começou com a venda de cachorro-quente nas ruas da Capital federal para viabilizar o curso nos EUA, hoje é a paixão da chef com reconhecimentos internacionais. Os sete anos em que pilotou o fogão do Palácio da Alvorada a estimulou a abrir, em 2005, o restaurante que levava seu nome, o RS, localizado no Rio de Janeiro. Sofisticado, com toda a pompa que a alta gastronomia exigia, o lugar a fez colecionar inúmeros prêmios, inclusive três estrelas do Guia Quatro Rodas e uma estrela Michelin - tão sonhada por muitos. Em 2015, foi eleita a melhor chef mulher da América Latina, pela revista inglesa Restaurant.
Mas, em 2017, Roberta olhou para trás e percebeu que estava caminhando para o lado oposto a tudo que acreditava sobre a gastronomia e tomou a decisão de fechar o RS.
- Eu rompi com a forma da alta gastronomia, ou seja, com aquele restaurante de elementos muito caros, muitos talheres, muitos copos, muitas pessoas trabalhando. Tava tudo demais e eu achei que precisava dar uma parada - conta a chef.
Um ano depois, decidiu dar mais um passo na sua carreira, mas, desta vez, de volta às origens, de volta à cozinha da vó Iracema, quem tanto a inspirou. Ela abriu o Sud, o Pássaro Verde, uma casa no Jardim Botânico, também no Rio de Janeiro, sem placas e com uma decoração simples e intimista, é daqueles lugares para se sentir em casa mesmo. O forno de barro à lenha é o principal utensílio da cozinha comandada por Roberta.
- O Sud é aquele passinho para trás que, na verdade, são vários passos para frente - explica Sudbrack.
Depois de uma mudança total de rumo e de conceito, em 2020, o restaurante, que não aceita reservas e conta com apenas 12 mesas, foi eleito um dos 10 melhores restaurantes do mundo, pela revista Food & Wine.
"A comida é como comida caseira, que foi preparada pelo seu amigo mais talentoso na culinária com acesso aos mais belos produtos que você possa imaginar", assim descreveu Besha Rodell, uma das críticas responsáveis pela lista. Os avaliadores são totalmente anônimos e um dos critérios de avaliação é a forma como os restaurantes se comunicam com a comunidade em que estão inseridos.
Conversamos com a Roberta, que é nossa colunista e madrinha do Destemperados, para conhecer um pouco mais sobre a sua história, sobre sua cozinha, além de entender como o Sud, o Pássaro Verde está se adaptando ao novo momento em que estamos vivendo.
Quais são as suas primeiras lembranças na cozinha? Você tinha um prato favorito quando era criança?
Minhas melhores lembranças, quando criança, são da cozinha e do quintal da minha tia-avó, Jaçanã, em Pequiá, Minas Gerais, onde eu passava as férias com meus avós. O fogão à lenha estava sempre acesso para cozinhar ou passar um cafézinho. Ela e a minha avó Iracema cozinhavam e tagarelavam o dia inteiro, colocando as fofocas do ano em dia. Era uma cena deliciosa, meio poética, eu ficava sentada ao pé da escada da cozinha, ouvindo todas aquelas histórias, o barulhinho da lenha pipocando e tentando decifrar os cheiros que vinham de dentro. O meu prato preferido sempre foi o frango ensopado com polenta que a minha vó fazia. O dela sempre teve batatas sujinhas no molho e, por mais que parecesse redundância, dois carboidratos, sempre parece que a polenta sem a batata fica meio órfã.
Qual era a sua ligação com a cozinha antes de você se tornar chef? Você sempre gostou de cozinhar?
Eu sempre gostei de livros de cozinha, eram como gibis para mim. Mas, na cozinha não me atrevia a entrar. Minha avó era soberana naquele lugar e tinha mãos de fadas, delicadíssimas tanto nos preparos, quanto na estética. Só me aventurei quando fui morar sozinha, muitos anos depois, nos EUA, e precisei cozinhar para mim mesma. Foi ali que recebi, digamos assim, o chamado.
Como você avalia a relação das pessoas com a gastronomia hoje? Você acredita que as pessoas sempre dedicaram essa atenção ou isso é algo que tem surgido recentemente?
Culturalmente, temos uma ligação muito própria com a cozinha e com o jeito de nos alimentarmos. Essa relação é muito forte, mas de um jeito nosso, muito mais conectado com a comida caseira do que à ideia de ir a um restaurante. Com o tempo, isso foi mudando e, hoje a nossa relação se divide entre esses dois momentos. Acho que o interesse cresce a cada dia, hoje viajamos mais, temos acesso a tudo muito mais rápido e fácil. A profissão de cozinheiro também passou a ser muito mais respeitada e isso ajudou a despertar um interesse maior.
Qual o impacto de premiações como essa na vida de um chef de cozinha?
Olha, eu até acredito que para algumas pessoas, os prêmios tenham uma grande importância, e acho isso absolutamente válido. Afinal, o dia a dia numa cozinha profissional é muito duro, e os prêmios não deixam de ser um reconhecimento. Mas eu sempre tive muito cuidado com isso. Sempre me preocupei que a minha cozinha ou a minha equipe perdessem aquela coisa genuína de cozinhar por prazer e por amor. Então, sempre lidamos isso como algo que faz parte, mas não muda a maneira de encarar o nosso ofício.
Com o RS você já havia conquistado muitos prêmios, inclusive uma estrela Michelin. Hoje, o Sud entra na lista de melhores do mundo. O que mudou de lá para cá?
Tudo mudou. A minha relação com a cozinha, com a minha equipe, com a minha vida. A decisão de fechar o RS teve justamente a ver com o fato de achar que tudo estava demais. Deixei para trás os excessos. Me instalei numa casinha discreta, sem placa na porta, difícil até de encontrar. Aboli os excessos para poder manter a qualidade, a relação com os pequenos produtores, a proximidade com o campo, quem planta e quem colhe. Nossa maior vontade, no Sud, é cozinhar com total liberdade, sem amarras e sem estarmos presos a nenhuma regra. O Sud nasceu justamente dessa vontade de romper com o que eu acredito que esteja demais, em excesso, sobrando. Mas as revistas Food & Wine e Travel and Leisure são muito sérias e obviamente, nesse momento tão delicado, nos deixou muito honrados e felizes.
Você defende que a cozinha brasileira precisa voltar às origens e focar nos ingredientes locais. Isso seria uma tendência ou uma demanda do público?
Isso é uma necessidade. A natureza nos mandou um dos maiores recados durante essa pandemia, a necessidade de olharmos para dentro e para fora de nós. Prestar mais atenção em como estamos consumindo, em como estamos nos relacionando com a comida e com quem produz. E, principalmente, com a natureza, que se expressou de forma tão clara enquanto só ela tinha licença para ir e vir. Não é possível que a gente não tenha aprendido nada...
Tem uma frase sua que foi tema de uma coluna em Destemperados: “vamos voltar a tirar fotos com as batatas”. Como você vê a importância do pequeno produtor e da agricultura familiar na cadeia produtiva da gastronomia?
Essa frase define o meu pensamento, hoje, ontem e amanhã. O pequeno produtor sempre foi o ator principal na minha cozinha. Eu tenho uma outra frase que hoje é repetida por chefs do mundo inteiro que é: "O meu mise en place não começa na cozinha, começa no quintal do meu produtor". Eu sempre me movo a partir do que a natureza me oferece, o meu desejo é o que ela pode me dar. E é cuidando, comprando, e se relacionando com mais proximidade do pequeno produtor, que podemos fazer uma gastronomia mais conectada com as necessidades de todos e mais próximas às possibilidades da natureza. Quando eu disse "vamos voltar a conversar com as batatas" em um congresso internacional, eu estava querendo chamar a atenção justamente para necessidade de abolirmos tantos excessos que, de repente se mostraram tão desnecessários, e voltar a ficar mais próximos de quem é importante de verdade: o pequeno produtor.
Como é esse resgate da essência da sua cozinha? E como ele ocorre no dia a dia?
O Sud nasceu justamente dessa vontade de me reconectar com tudo que eu sempre achei essencial, a proximidade com o pequeno produtor, conhecer o produto, ter mais tempo para essas pessoas. Com o boom da gastronomia, todos nós, de alguma maneira, acabamos nos distanciando de tudo isso. Nós somos um restaurante que preza pela simplicidade no jeito de ser, uma casinha, como se fosse uma casa de vó, que não tem placa, não tem manobrista, tem pouquíssimos garçons, ou seja, a busca pelo o que realmente é essencial. O importante é a comida, o que vem no prato, é o que sai direto do fogão à lenha para a sua mesa. Sobre o resgate da minha cozinha, na verdade, eu nunca me separei dela, eu rompi com a forma da alta gastronomia, ou seja, com aquele restaurante de elementos muito caros, muitos talheres, muitos copos, muitas pessoas trabalhando. Para se ter uma ideia, no RS, eu tinha um funcionário para cada dois clientes, isso não cabe mais no mundo de hoje. Tava tudo demais e eu achei que precisava dar uma parada. Hoje, o Sud é essência, é o retorno às nossas origens. Eu tenho mais tempo para conversar com o meu produtor, trocar ideias e estar mais próxima da minha equipe. O Sud é aquele passinho para trás que, na verdade, são vários passos para frente. É o que eu chamo de involução e evolução. Às vezes, a gente precisa parecer estar "involuindo" quando, na verdade, está evoluindo.
Como você tem lidado com esse novo momento em que muitos negócios de gastronomia tiveram que se reinventar para sobreviver?
Aconteceu com todo mundo. Alguns, em um primeiro momento, fecharam as portas e aguardaram o que iria acontecer, a gente optou por se manter funcionando e tivemos que se reinventar com o barco no meio do oceano, a gente teve que reaprender com muitas coisas. Eu tinha muito preconceito com o delivery, mas tive não só que aprender a fazer, como também a gostar dele. E, hoje em dia, as quentinhas são a possibilidade que a gente tem de se expressar e de manter esse elo com o cliente. Acho que essa é a única maneira que o cozinheiro tem de se comunicar com plenitude. O delivery me fez crescer muito como cozinheira, apesar de ter 27 anos de estrada, isso foi absolutamente novo para mim. No início, me causou muito sofrimento, mas agora eu tenho um carinho imenso por ter mantido o Sud vivo em um momento tão difícil. A gente ainda segue com a telentrega, ainda não chegou a hora de reabrirmos, queremos fazer isso quando tivermos um nível aceitável de segurança, não só para os clientes, mas para os nossos colaboradores e funcionários também.
O que você tem feito para manter o Sud, o Pássaro Verde durante a pandemia?
A gente criou uma maneira diferente de fazer o delivery para manter a filosofia do Sud. A comanda chega, a gente prepara o pedido totalmente na hora. Quem transporta o pedido, normalmente são taxistas que também estavam sem trabalho nesse período. Temos uma forma de nos manter mais próximos do cliente, a gente faz questão de ter essa troca. É um delivery mais pessoal, feito no momento, com os ingredientes mais frescos possível. O menu muda todo dia e trabalhamos com o que temos de melhor na data, com o que a natureza nos presenteia. Eu sempre digo que eu não ligo para o pescador dizendo que eu quero pargo ou quero atum, eu pergunto o que ele tem e, com o que ele tem, eu faço o meu menu. É como se o Sud estivesse funcionando. O nosso delivery é muito próximo do atendimento presencial. A gente escreve cada dia uma história nova.
Qual é o ingrediente ícone da sua cozinha hoje? Por que?
Acho que não um ingrediente em si, mas uma característica que é o frescor. Ele sempre vai ser fundamental. A produção local, a produção orgânica, os ingredientes da estação. Tem uma máxima da cozinha italiana que diz que "se está na estação é bom, se não está não é bom". É uma máxima que eu uso e pretendo usar sempre. Mas o quiabo tem uma importância muito grande na minha carreira. Com o estudo que eu fiz e com a minha determinação de fazer não só ele, mas os ingredientes do dia a dia, como o maxixe, o chuchu, a fruta-pão, a jaca e esses ingredientes meio renegados, com que as pessoas aceitassem e experimentassem. Tem uma frase minha que eu gosto muito que é "não transformar um ingrediente em algo que ele não pediu para ser". É trabalhar um quiabo para que ele seja sempre um quiabo, com a sua essência e com a sua personalidade. Foi através dele e do estudo que eu fiz sobre ele, que eu desenvolvi o caviar vegetal, preparado com as sementinhas do quiabo. Com essa descoberta, eu viajei o mundo inteiro para falar sobre a cozinha brasileira. Desde o RS, há quase 15 anos, eu mostrei ao mundo que, se trabalhadas as sementes de certa forma, elas tinham uma sensação de caviar na boca, isso foi icônico na gastronomia brasileira e vai ficar para sempre marcado.
Se você pudesse fazer um jantar para alguém que você admira, quem seria e qual seria o cardápio?
Com toda certeza seria para a minha avó Iracema e o meu avô Fontoura que, na verdade, foram os meus pais. As pessoas que, não só me criaram, mas me ensinaram a viver. Eu faria um arrozinho branco que formasse aquela rapa no fundo da panela, meu avô adorava! Faria o franguinho assado no forno à lenha do Sud, que eu acho que tanto ele, quanto ela, iriam gostar. Faria um quiabinho orgânico grelhado na lenha e uma farofinha de ovo caipira bem pedaçuda com farinha de milho flocada, lá da Mercearia Paraopeba, de Minas Gerais, a melhor do mundo! Eu acho que eles iriam gostar desse jantar ao lado do forno de barro do Sud, ouvindo o barulhinho da lenha.